Opinião

O estado de coisas inconstitucional do cárcere

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20 de novembro de 2023, 21h50

Figura existente de longa data na jurisprudência da Colômbia, o “estado de coisas inconstitucional” foi aplicado pela primeira vez pela Corte Constitucional daquele país em 1997 para enfrentar a violação estrutural e massiva de direitos fundamentais individuais existente dentro dos estabelecimentos carcerários colombianos [1].

Seu reconhecimento, portanto, exige cumprimento de requisitos predeterminados que muitas das vezes não são verificados no plano prático. Tomando como exemplo a jurisprudência colombiana, somente em dois cenários foram constatados a existência do Estado de Coisas Inconstitucional: no caso de “desplazamiento” [2] — deslocamento forçado — e da situação do sistema penitenciário e carcerário do país que permanece até os dias atuais [3].

Segundo Carlos Alexandre de Azevedo Campos, o reconhecimento do estado de coisas inconstitucional pelo judiciário tem como característica constitutiva o ativismo judicial estrutural que, satisfazendo os requisitos próprios e não implicando supremacia judicial, revela-se como uma postura legítima a ser adotada pelo Poder Judiciário (página 209, 2015). Assim, com a finalidade de reconhecer o estado de coisas inconstitucional é necessário que se preencha ao menos dois requisitos, o institucional e o político. Da mirada institucional, a Constituição da República de 1988 possui uma ampla carta de direitos e mecanismos processuais que permitem tanto a tutela objetiva de direitos fundamentais quanto a tomada de ordens estruturais voltadas à superação do estado inconstitucional (CAMPOS, página 209, 2015).

Nesse cenário, é importante pontuar que o amplo rol de direitos e garantias fundamentais previsto no título II da Constituição da República não são apenas direitos subjetivos, mas também elementos da ordem jurídica objetiva da comunidade. Campos (2015) explica, “são direitos que devem nortear a criação de todo o arcabouço jurídico brasileiro e a definição de políticas públicas, assim como a interpretação dessa mesma ordem, impondo a tomada de decisões que levem em conta a dimensão objetiva”.

As ditas ações de controle concentrado fortalecidas pela Constituição da República de 1988 servem como verdadeiros instrumentos capazes agir em defesa da ordem jurídica. Nesse contexto, Carlos Campos defende, entre todas os instrumentos processuais disponíveis no ordenamento jurídico brasileiro, o uso da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental como forma de superação do Estado de Coisas Inconstitucional do sistema carcerário brasileiro (página 30, 2015).

Em relação ao requisito político, traduz-se pela presença de falhas estruturais, interligadas a bloqueios tanto políticos quanto institucionais, omissões legislativas e pelo temor das autoridades de tomarem posicionamentos mais incisivos por conta da repercussão social (CAMPOS, página 31, 2015).  Nessa perspectiva, é de suma relevância trazer ao texto a condição desumana vivenciada dentro dos muros das prisões brasileiras por aqueles tratados como verdadeiros inimigos no exercício real do poder punitivo como trabalhado por Zaffaroni [4].

Segundo dados presentes à plataforma do Departamento Penitenciário Nacional [5], em junho de 2020 haviam 702.069 pessoas em cumprimento de Pena Privativa de Liberdade e Medida de Segurança em Unidades Prisionais estaduais, sendo quase a metade delas cumprindo pena em regime fechado.  Oficialmente, excluindo-se do cálculo os presos da Unidades de Monitoramento Eletrônico e do Patronato de Curitiba (PR), há no sistema penitenciário nacional 446.506 vagas, sendo ocupadas por 678.506 pessoas, o que significa dizer que há um déficit atual de 231.768 vagas.

Todavia, ressalta-se que seria apressado concluir que a solução estaria no empenho estatal na oferta de novas vagas. Verifica-se que outras propostas, sobretudo fundamentadas na criminologia crítica, devem disputar o curso dos discursos. Nesse sentido, há forte debate travado por movimentos sociais com viés antiprisional, que militam pela criação de nenhuma vaga mais, ou seja, contrária a expansão do sistema penitenciário nacional.

Nessa esteira, os dados fornecidos pelo Departamento Penitenciário Nacional expõem que entre os anos de 2010 e 2019, apesar do crescimento de número de vagas (157,128%) no sistema penitenciário ter sido superior ao crescimento de número de presos (152,195%), quantitativamente, o déficit de vagas no sistema penitenciário nunca foi suprimido, pelo contrário, apresenta forte tendência de aumento.

Dessa forma, é notório o esforço estatal em fortalecer o sistema penitenciário nacional, chegando a aumentar o número de vagas em 157,128% nos últimos 10 anos, incluindo 259.023 pessoas ao sistema carcerário. Contudo, apesar da política pública de expansão prisional, criando 160.829 vagas nos últimos anos, o déficit saltou de 214.741 para 312.925. É dizer, o problema da sobrepopulação nos estabelecimentos prisionais não foi solucionado, pelo contrário, mostra-se agravado no cenário atual.

Os complexos prisionais existem por diversos fatores estranhos ao próprio cometimento do delito (DAVIS, 2020). Portanto, pode-se afirmar que na verdade há pessoas demais nos presídios e não presídios de menos. Ainda, os dados do Departamento Penitenciário Nacional apontam que 209.257 (duzentas e nove mil, duzentas e cinquenta e sete) pessoas que compõem o sistema penitenciário são presas de forma provisória, representando cerca de 30% da totalidade de presos.  Tal realidade, todavia, não é exceção na América Latina e tampouco recente como bem pontua Zaffaroni:

“En América Latina se opera con una generalizada medida de seguridad por peligrosidad presunta (bajo la forma de prisión preventiva pervertida) y solo excepcionalmente con penas, con lo cual toda propuesta de destinar penas o medidas de mera contención para los enemigos pierde bastante de su sentido, dado que éstas se emplean desde el comienzo mismo del proceso de criminalización secundaria e indiscriminadamente.”

É diante desses assombrosos números que se constata uma verdadeira política pública encarceradora. O sistema penal utiliza todo seu aparato e edita leis como a dos crimes hediondos (Lei nº 8.072 de 25 de julho de 1990), o atual “pacote anticrime” (Lei 13.964 de 24 de dezembro de 2019) contra os “infratores do mal”, criando verdadeiras barreiras para que esse indivíduo atinja o status liberdade novamente (FLAUZINA, 2017, página 101/102). 

Nesse sentido, o grande número pessoas presas em conjunto com o déficit de vagas estão estritamente ligados ao estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro, uma vez que a superpopulação e a superlotação carcerária promovem a condição insalubre de tais estabelecimentos, sobre o tema cita-se medida provisória prolata pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Complexo Penitenciário de Curado.

É fundamental trazer ao debate a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental de número 347 (ADPF 347/ DF), na qual tinha como pedido o reconhecimento da figura do “Estado de Coisas Inconstitucional” relativa ao sistema penitenciário brasileiro e a adoção de providências estruturais em face de lesões a preceitos fundamentais das pessoas presas.  A petição inicial assevera que as prisões brasileiras são “verdadeiros infernos dantescos, com celas superlotadas, imundas e insalubres, proliferação de doenças infectocontagiosas, comida intragável, temperaturas extremas, falta de água potável e de produtos higiênicos básicos” (PSOL, 2015).

Nessa linha, Carlos Campos pontua que “as penas privativas de liberdade aplicadas em nossos presídios convertem-se em penas cruéis e desumanas; os presos tornam-se ‘lixo digno’ do pior tratamento possível, sendo-lhes negado todo e qualquer direito à existência minimamente segura e salubre” (2015).  Assim, Davis apresenta um dos grandes dilemas enfrentados por aqueles que lutam contra a existência do complexo prisional: “levar adiante um trabalho que crie ambientes mais humanos e habitáveis para as pessoas na prisão sem reforçar a permanência do sistema prisional” (p. 112, 2020).  

Diante disso, Juarez Tavares em parecer realizado a pedido da Clínica de Direitos Fundamentais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) descreve a impossibilidade de se observar nos entre muros dos estabelecimentos prisionais a realização da função preventiva especial positiva da pena (2015).

A situação carcerária se mostra mais feroz contra as minorias que têm sua restrição de liberdade imposta pelo Estado (MORAIS, MELLO e AMAZONAS, 2018), como é o caso já declaro pela Corte IDH no caso do Complexo Penitenciário de Curado presente na resolução de 2016.

Nesse cenário, o Supremo Tribunal Federal reconheceu de forma inédita o Estado de Coisas Inconstitucional, julgando parcialmente procedente o pleito cautelar requerido pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Restou, portanto, configurado os pressupostos para sua determinação. É dizer, o sistema penitenciário brasileiro apresenta falhas estruturais, interligadas a bloqueios tanto pelas vias políticas quanto institucionais. Pode-se verificar, ainda, omissões de ordem legislativa que impedem o respeito aos direitos individuais dos indivíduos que estão custodiados pelo Estado. Conforme voto do Ministro Luís Roberto Barroso, constata-se que “existe um conjunto de ações e omissões notórias que fazem com que se tenha esse estado de generalizada inconstitucionalidade por falha estrutural do sistema”. Assim, é notável que os problemas enfrentados pelos presos não são problemas pontuais, individuais e excepcionais. Os dilemas são estruturais, coletivos e a regra do sistema carcerário brasileiro. Por esta razão que o juiz ao aplicar a pena restritiva de liberdade deve levar em conta não só o dever ser, o direito penal abstrato aplicado no caso, mas sim “a realidade letal” dos nossos sistemas penais concretos (BATISTA, página 91, 2018).

Além disso, em voto a Ministra Cármen Lúcia pontua ser preciso “não apenas fazer mais prédios com o mesmo modelo, mas fazer uma grande revolução, porque morreu, faliu, esse tipo de penitenciária que vem sendo feita”, realizando uma crítica ao modelo carcerário atual, porém acreditando que há outra saída para “salvar” o sistema penitenciário.

Nessa perspectiva, após o reconhecimento do ECI, não parece ter realizado tantas mudanças positivas na realidade vivenciada pelos presos no cárcere nacional.  Apesar de redução do déficit de vagas, o número total de presos não foi reduzido, pelo contrário apresentou forte crescimento.

Por fim, termina-se o esse artigo com a pergunta de Salo de Carvalho, reproduzida por Vera Batista (2018): “é possível, nos tempos de grande encarceramento, ter o abolicionismo como meta e o garantismo como estratégia?”

REFERÊNCIAS
BRASIL. Supremo Tribunal Federal, Arguição de Preceito Fundamental 347, J. 09/09/2015.

BRASIL. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Disponível em: <https://www.gov.br/depen/pt-br/sisdepen>. Acesso: 30/10/2020.

CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Da Inconstitucionalidade por Omissão ao “Estado de Coisas Inconstitucional”. Rio de Janeiro, 2015.

COLOMBIA. “Mirada al estado de cosas institucional del sistema penitenciario y carcelario en Colombia;” Disponível em: http://www.politicacriminal.gov.co/Portals/0/documento/cosas%20institucional.pdf. Acesso: 30/10/2020.

COLOMBIA. Sentencia T-153/98. J. 28/04/1998. Disponível em <https://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/1998/t-153-98.htm>. Acesso: 22/10/2020.

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Resolução de 28 de novembro de 2018. Medidas provisórias a respeito do Brasil. Assunto do Complexo Penitenciário do Curado. Disponível em: [www.corteidh.or.cr/docs/ medidas/curado_se_04_por.pdf]. Acesso em: 30/10/2020.

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Resolução de 23 de novembro de 2016. Medidas provisórias a respeito do Brasil. Assunto do Complexo Penitenciário do Curado. Disponível em: [www.corteidh.or.cr/docs/ medidas/curado_se_06_por.pdf]. Acesso em: 30/10/2020.

DAVIS, Angela. Estarão as Prisões Obsoletas? 5º Edição. Editora Difel. Rio de Janeiro, 2020.

MENDES, Gilmar; BRANCO, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11º Edição. Editora Saraiva. São Paulo, 2016. 

MORAIS, Neon Bruno Doering; MELLO, Marilia Montenegro Pessoa de; AMAZONAS, Maria Cristina Lopes de Almeida. Direito e população LGBT em cárcere: uma análise a partir da experiência pernambucana do Complexo do Curado. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 145. ano 26. p. 241-280. São Paulo: Ed. RT, julho 2018.

EVARISTO, Conceição. Becos da Memória. 3º Edição. Editora Pallas. Rio de Janeiro, 2017.

FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo Negro Caído no Chão: o Sistema Penal e o Projeto Genocida do Estado Brasileiro. 2º Edição. Editora Brado Negro. Brasília, 2017.

MALAGUTI, Vera. Introdução Crítica à Criminologia Brasileira. 2º Edição. Editora Revan. Rio de Janeiro, 2012.

PSOL. ADPF 347. Clínica de Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito da UERJ. Disponível em: [http://uerjdireitos.com.br/estado-de-coisas-inconstitucional-no-sistema-prisional-adpf-347/]. Acesso em: 30.10.2020.

STABILE, Arthur. Dona Teresa, Mãe de Preso, Negra e Periférica, dá a Letra sobre a Guerra Às Drogas. Plataforma Ponto. Disponível em: <https://ponte.org/dona-teresa-mae-de-preso-negra-e-periferica-da-a-letra-sobre-a-guerra-as-drogas>. Acesso: 30/10/2020

TAVARES, Juarez. Parecer Sistema Carcerário. 2015. Disponível em: <https://patriciamagno.com.br/wp-content/uploads/2015/09/Parecer-Sistema-Carcer%C3%A1rio-Vers%C3%A3o-Final.pdf>. Acesso: 30/10/2020

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2007.


[1] Sentencia T-153/98. Disponível em <https://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/1998/t-153-98.htm>. Acesso: 22/10/2020.

[2] Colombia. Corte Constitucional, sentencia T-025 de 2005, M.P. Manuel José Cepeda Espinosa.

[3] Nas seguintes decisões: Colombia. Corte Constitucional, sentencia T-153 de 1998, M.P. Eduardo Cifuentes Muñoz. 3 Colombia. Corte Constitucional, sentencia T-388 de 2013, M.P. María Victoria Calle Correa. 4 Colombia. Corte Constitucional, sentencia T-762 de 2015, M.P. Gloria Stella Ortiz Delgado

[4] Segue pequeno trecho do livro “El Enemigo en el Derecho Penal” de  Eugenio Raul Zaffaroni: “(…) Cabe entender que en América Latina casi todos los prisionizados son tratados como enemigos en el ejercicio real del poder punitivo.”

[5] Os dados presentes na plataforma virtual do Departamento Penitenciário Nacional podem ser acessado através do seguinte link:

<https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiMjU3Y2RjNjctODQzMi00YTE4LWEwMDAtZDIzNWQ5YmIzMzk1IiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9>.Acesso: 23/10/2020

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