Opinião

'Apropriação indébita' previdenciária: crime formal ou material? (parte 2)

Autores

  • Heloisa Estellita

    é professora da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas e coordenadora do Grupo de Pesquisa em Direito Penal Econômico e da Empresa na mesma instituição.

  • Marcelo Costenaro Cavali

    é professor da pós-graduação em sentido estrito da FGV-SP e da Uninove-SP. Consultor Legislativo do Senado. Advogado.

17 de novembro de 2023, 9h16

Como dissemos na primeira parte deste texto, no julgamento do REsp 1.982.304, recorreu-se à mítica distinção entre crimes formais e materiais, aparentemente incorporada pela SV 24: se é crime material, há necessidade de se aguardar o término do processo administrativo fiscal para a consumação do delito. Porém, como demonstraremos adiante, a incidência da súmula vinculante só faz sentido naquelas figuras que pressupõem que o sujeito passivo (contribuinte ou responsável) não tenha realizado o autolançamento [1], e isso independentemente de as classificarmos como crimes formais/materiais, de mera conduta ou de resultado, de dano ou de perigo. Vejamos o porquê.

Os principais crimes tributários estão descritos nos artigos 1º, caput,  e 2º, II, da Lei nº 8.137/90; e nos artigos 168-A, caput e § 1º, I, 334 e 337-A, CP. Todos eles têm algo em comum quanto ao efeito das condutas incriminadas: delas decorre um prejuízo patrimonial para o sujeito ativo da obrigação tributária, que deixa de receber, na data devida, uma quantia de dinheiro à qual tem direito [2]. Denomine-se esse efeito de resultado naturalístico, de resultado jurídico, de dano ou de perigo concreto, fato é que, por se tratar de elemento comum a todas essas figuras, não poderia, logicamente, ser utilizado como critério de discriminação para decidir sobre a aplicação ou não da SV 24. Então, o critério para uma distinção, se houver, tem de estar em outro lugar. E, a nosso ver, ele está na forma de constituição do crédito tributário.

Em todos esses casos subjaz uma obrigação tributária, uma relação jurídica entre um devedor e um credor que nasce com o “fato gerador” (rectius, fato jurídico tributário) [3], mas que não nasce exigível. Pelo lançamento, constata-se e declara-se a ocorrência do fato jurídico tributário, seu sujeito passivo, sua base de cálculo e o montante da prestação devida (artigo 142, CTN), tornando o crédito tributário exigível. Diferentemente de um credor privado — que conhece desde o nascimento da relação obrigacional o ato que gera seu crédito, quem é o devedor, os elementos e o valor da dívida, a administração tributária depende das informações que lhe são fornecidas pelos sujeitos passivos para conhecer a ocorrência do fato jurídico tributário e tornar exigível o crédito, seja por declaração (artigo 147, CTN) seja pelo autolançamento (artigo 150, CTN) [4].

Se o sujeito passivo não o fizer, o Fisco não só terá de descobrir a ocorrência do fato jurídico tributário — o que será quase acidental em virtude do caráter massivo, anônimo e da ausência de imediatidade das relações jurídico-tributárias —, como terá, ainda, de fazer o lançamento de ofício (CTN, artigo 149).   

São essas distintas formas de constituição do crédito tributário que, em nosso sentir, diferenciam as formas de ataque ao bem jurídico selecionadas pelo legislador penal. Muito embora, como visto, todas exijam um prejuízo patrimonial, enquanto as figuras dos artigos 1º, caput, Lei 8.137/90, 334 e 337-A, CP, pressupõem que o crédito tributário não tenha sido tornado exigível, total ou parcialmente, as dos artigos 2º, II, Lei 8.137/90, e 168-A, caput e §1º, I, CP, não fazem essa exigência.

A reprovabilidade das condutas previstas no primeiro grupo de figuras se assenta no descumprimento do dever de tornar o crédito tributário exigível pelo autolançamento ou pelo fornecimento de declarações, mantendo o Fisco em estado de ignorância quanto à existência da obrigação tributária e obrigando-o, se e quando tomar ciência da ocorrência do fato tributário, a proceder ao lançamento de ofício. As segundas não. Sua reprovabilidade decorre da traição a um dever fiduciário instituído em lei que, de um lado, obriga o responsável tributário a descontar ou cobrar do contribuinte o tributo por este devido (“descontada ou cobrada”) e, de outro, obriga-o a recolher esse valor aos cofres públicos [5].       

É, assim, a diferente forma de ataque ao bem jurídico que importa para fins de apreciar a necessidade ou não de aguardar o pronunciamento da administração tributária, já que a SV 24 atribui relevância à discussão administrativa que tenha por objeto o crédito tributário (em todos seus elementos).

Se o sujeito passivo procedeu ao autolançamento tornando o crédito tributário exigível, não há que se falar em necessidade de descoberta e lançamento de ofício por parte da administração tributária [6]. Declarado e não pago o tributo, a administração tributária pode inscrever o crédito tributário imediatamente na dívida ativa e ajuizar uma ação de execução fiscal. É o próprio STJ quem o diz, na sua Súmula 436: “A entrega de declaração pelo contribuinte reconhecendo débito fiscal constitui o crédito tributário, dispensada qualquer outra providência por parte do fisco”. E é justamente o que sucede no caso das figuras irmãs-gêmeas dos artigos 2º, II, Lei 8.137/90 e 168-A, caput e § 1º, I, CP [7].

Se, porém, o sujeito passivo (contribuinte ou responsável) sequer procedeu ao autolançamento, total ou parcialmente, omitindo a informação sobre a ocorrência do fato jurídico tributário e seus elementos, então, quem terá de fazê-lo é a administração tributária, por meio de lançamento de ofício. Aqui, diz o CTN, só a autoridade fiscal pode proceder ao lançamento (de ofício), não podendo fazê-lo nem o membro do Ministério Público, nem mesmo um órgão do Poder Judiciário. É nestes casos em que é cabível impugnação do sujeito passivo para discutir a validade do crédito tributário, a qual dá início ao procedimento administrativo.

Esse modo de compreender as figuras penais deixa claro que o procedimento administrativo tributário não exerce papel algum na consumação desses crimes, mas diz respeito à correção do lançamento de ofício e, assim, pode ter uma força persuasiva [8] quanto a alguns elementos da tipicidade objetiva desses crimes.

De forma direta: se o responsável efetivamente desconta os valores do contribuinte e os declara (ou seja, procede ao autolançamento), mas não os recolhe na data legalmente determinada, traindo o dever fiduciário imposto por lei, a administração tributária pode inscrever o crédito na dívida ativa e ajuizar a execução fiscal (artigo 168-A, caput e § 1°, I, CP, ou artigo 2º, II, Lei 8.137/90); se ele não os declara, total ou parcialmente (porque quem declara a menor, deixa de declarar parte do que deveria ter sido declarado), a administração tributária terá de descobrir esse fato dentro do período de cinco anos, proceder ao lançamento de ofício, franquear o direito de defesa e, só após o encerramento da discussão na esfera administrativa, sobrevindo o não pagamento, poderá inscrever o crédito da dívida ativa e executá-lo (artigo 337-A, CP, e artigo 1º, caput, Lei 8.137/90) [9].

E com isso podemos retornar ao caso apreciado pelo STJ. Em primeiro lugar, suspeitamos que não se tratava ali, verdadeiramente, da figura do artigo 168-A, § 1o, I, CP, mas de um caso que invocaria a figura do artigo 337-A, CP, porque o acórdão proferido no ProAfR no REsp 1.982.304 (DJe 21/9/2022) alude à existência de um procedimento administrativo tributário que teria “constituído definitivamente o crédito” o que, como se viu, é dispensável na hipótese da primeira figura, além de mencionar tributos (contribuições previdenciárias) devidos pela pessoa jurídica na qualidade de contribuinte e não de responsável, o que ou é conduta penalmente irrelevante (mera inadimplência), ou não houve autolançamento, total ou parcial, atraindo a figura do artigo 337-A. Aliás, os precedentes do STF invocados logo no início do voto da e. Relatora, especificamente o Inquérito 3.102 e o RHC 132.706, tratam do crime do artigo 337-A e não do artigo 168-A, CP.

Ao fim de seu voto, a e. relatora, inclusive, reconhece que “não se pode afirmar, com absoluta certeza, como e quando se deu o lançamento definitivo, em especial, porque não foi juntada aos autos a cópia integral dos Processos Administrativos Fiscais descritos na denúncia”. Se se tratar realmente do crime do artigo 168-A, CP, não se concebe por qual razão teria havido um processo administrativo fiscal, já que, como exposto, bastaria para o Fisco a inscrição do débito em dívida ativa e o ajuizamento da execução fiscal.

Se, porém, se tratasse da figura do artigo 168-A, § 1o, I, CP, o início do prazo prescricional — que ocorre com a consumação do crime (artigo 111, I, CP), no momento em que “nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal” (artigo 14, I, CP) — ocorreria no dia seguinte ao último dia do prazo para recolhimento do tributo descontado de pagamento efetuado a segurados, a terceiros ou arrecadada do público. E isso vale para todos os crimes analisados neste artigo, pois em todos eles a consumação exige a falta de entrega do valor devido na data fixada pela lei. Em outras palavras: o delito do artigo 168-A, § 1o, I, sempre se consuma na data em que deveria ter sido entregue o valor devido, sendo esse o marco inicial para a contagem da prescrição da pretensão punitiva (artigos 14, I, c.c. 111, I, CP). Note-se que a ambígua dicotomia entre crimes formais e crimes materiais não oferece nenhuma vantagem sobre a pesquisa simples e direta dos elementos do tipo objetivo para fins de determinação de sua consumação.  

O regime instituído pela SV 24 (suspensão da pretensão punitiva na pendência de discussão administrativa) atingirá, assim, apenas aqueles casos nos quais o lançamento do tributo teve de ser feito de ofício, pois o sujeito passivo não efetuou, contrariamente ao seu dever, o autolançamento (total ou parcial): só aqui há uma discussão sobre a própria existência do crédito tributário, com consequência impeditiva da persecução penal (por conta da Súmula, deixe-se bem claro, não por força de lei [10]). E, nesse caso, o crime praticado será o do artigo 337-A, CP ou o crime do artigo 1º, caput, Lei 8.137/90 — nunca os crimes do artigo 168-A do CP ou do artigo 2°, II, da Lei 8.137/90

Parece claro, assim, que a classificação dos crimes tributários entre crimes “formais” ou de mera conduta e crimes de resultado não é efetivamente relevante para a ratio que inspira a SV 24 [11].

Que tenhamos tido de percorrer esse longo e espinhoso caminho para demonstrá-lo é decorrência de um regime penal-tributário disfuncional, do qual a SV 24 e sua má compreensão em cascata é apenas um sintoma [12].

À guisa de conclusão, a consumação do crime do artigo 168-A, § 1º, I, do CP, ocorre quando se esgota o prazo para recolhimento do tributo descontado do pagamento efetuado a segurados, a terceiros ou arrecadada do público. As aporias geradas pela SV 24, embora merecidamente criticáveis, não podem ser contornadas com a amputação de um dos elementos do tipo penal por meio de uma fraude de etiquetas: “o fato de chamarmos o cão de gato não vai alterar o fato de que ele ainda assim latirá” [13].


[1] Preferiremos esta expressão à outra comumente utilizada – lançamento por homologação – apenas para tornar o texto mais conciso.

[2] No sentido de falta de um acréscimo patrimonial que lhe era devido (lucrum cessans), cf. HORTA, REC 81, p. 194.

[3] CARVALHO, Curso de direito tributário, p. 283.

[4] Razão pela qual Gaede denomina as fraudes fiscais de “fraudes comunicativamente orientadas” (GAEDE, § 370 Steuerhinterziehung, número marginal 76).

[5] Sustentando que, pela estrutura legal do desconto neste caso, trata-se de hipótese de prisão por dívida QUANDT, Comentários ao direito penal econômico brasileiro, p. 470 e ss.

[6] Salvo se ela discordar da atividade do contribuinte, no prazo de 5 anos, CTN, art. 150, ̕§4º.

[7] A discrepância entre as penas dessas figuras criminosas, como se vê, não se assenta no desvalor da conduta, que é o mesmo. Poderia, talvez, assentar-se no resultado, mas não nos parece que seja assim, como se pode conferir em ESTELLITA, RBCCrim 36, passim.

[8] Quanto à materialidade de algumas elementares objetivas, como afirmou um dos coautores em MOURA/CAVALI, Revista do Advogado 154, p. 6. Cf. também, em sentido próximo, LEARDINI/TAFFARELLO, Revista do Advogado 154, p. 147.

[9] Se essa reserva de competência do CTN é adequada ou não, ou se se deve aguardar o pronunciamento final da autoridade administrativa acerca da impugnação do contribuinte/responsável ao lançamento de ofício são questões que não cabem discutir neste espaço.

[10] Não é tarefa tão simples como pode parecer ler a expressão “processo” empregada no art. 116, I, CP, como procedimento administrativo. Em um ambiente no qual se considera a prescrição um instituto de direito penal material que interfere em direito fundamental e cuja regulação, consequentemente, está sujeita ao princípio da reserva legal, discutir a validade de uma possível analogia in malan partem ou da interpretação extensiva parece ser um pressuposto essencial para sustentar a tese que acompanha a SV 24.

[11] Com isso, nos afastamos do entendimento de TOLDO, Revista do Advogado 154,p. 128, e da literatura na qual se apoia.

[12] No âmbito do Grupo de Pesquisas em Direito Penal Econômico e da Empresa da FGV Direito SP, iniciaremos pesquisa que pretende, justamente, produzir uma proposta de reforma legislativa para o tratamento penal e processual penal dos crimes tributários. Cf. GDPEE. Evasão fiscal: uma proposta legislativa para debate. Disponível em: https://direitosp.fgv.br/projetos-de-pesquisa/evasao-fiscal-uma-proposta-legislativa-para-debate.

[13] GRECO, Lo vivo y lo muerto en la teoría de la pena de Feuerbach, p. 207.

Autores

  • é advogada, professora da FGV Direito SP, doutora em Direito Penal pela USP e pós-doutoranda nas Faculdades de Direito da Universidade Ludwig-Maximilians, de Munique, e de Augsburg, com financiamento da Fundação Alexander von Humboldt e Capes.

  • é professor da pós-graduação em sentido estrito da FGV-SP e da Uninove-SP. Consultor Legislativo do Senado. Advogado.

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