Opinião

ADI 4.851 e direito de migração previsto na Lei da Bahia nº 12.352

Autor

  • Dirley da Cunha Júnior

    é juiz titular da 16ª Vara Federal da Bahia pós-doutor em Direito Constitucional e autor do “Controle Judicial das Omissões do Poder Público” entre outros livros.

16 de novembro de 2023, 6h02

Pende de julgamento no STF (Supremo Tribunal Federal) a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.851, relatora ministra Cármen Lúcia, proposta pelo procurador-geral da República em face da Lei baiana nº 12.352, de 8 de setembro de 2011, que dispôs sobre a outorga, mediante delegação a particulares, dos serviços notariais e de registros no estado da Bahia.

Referida lei assegurou aos servidores legalmente investidos na titularidade das serventias oficializadas a opção de migrar para a prestação do serviço notarial ou de registro em caráter privado na modalidade de delegação instituída por ela (artigo 2º).

Sustenta o PGR que a opção de migração assegurada pela lei questionada violou a exigência constitucional de concurso público prevista no artigo 236, § 3º, da Constituição de 1988.

A discussão está centrada nos seguintes argumentos fáticos e jurídicos:
(i) o estado da Bahia nunca realizou concurso para outorga, em regime privado, de delegação de serviços notariais e registrais;
(ii) que em 2004, o Tribunal de Justiça da Bahia realizou concurso para prover, dentre outros, os cargos de Oficial de Registro de Imóveis, Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais, Oficial do Registro de Títulos e Documentos, Suboficial de Registro de Imóveis, Suboficial de Registro de Títulos e Documentos, Suboficial do Registro das Pessoas Naturais, Subtabelião de Notas, Subtabelião de Protestos, Tabelião de Notas e Tabelião de Protestos de Títulos;

(iii) que os servidores investidos nesses cargos foram submetidos a concurso apenas de provas e pertencem ao quadro do Tribunal de Justiça da Bahia, ocupando cargos públicos equivalentes ao de Analista Judiciário. A partir da privatização dos cartórios baianos, ocorreu a extinção dos cargos de natureza cartorária acima enumerados; e

(iv) Não obstante, as normas impugnadas permitiram que os ocupantes desses cargos pudessem optar pelo regime privado, na condição de delegatários.

Ao final, requereu o PGR que seja julgado procedente o pedido, para o fim de se declarar a inconstitucionalidade do caput e §§ 1°, 4° e 5° do artigo 2° da Lei n° 12.352/2011, do Estado da Bahia.

É incontroverso que a Lei n° 12.352/2011 garantiu aos servidores públicos, então investidos na titularidade das serventias oficializadas, a opção de migrar. Mas afirmar-se que essa previsão legal é inconstitucional é um equívoco.

Com efeito, cumpre inicialmente observar que antes da Lei n° 12.352/2011 o Estado nunca havia realizado concurso para outorga, em regime privado, de delegação de serviços notariais e registrais, exatamente porque esses serviços ainda eram oficializados, não assistindo razão nem sentido a narrativa do PGR, sintetizada no item “i” acima.

E justamente por ainda serem oficializados, o Tribunal de Justiça da Bahia realizou o necessário concurso público para prover essas serventias, cumprindo, à época, o comando constitucional do concurso público, cuja regra geral — imposta para toda a administração pública brasileira, com as estreitas ressalvas que indica para os cargos em comissão declarados em lei de livre nomeação e exoneração — já estava insculpida no artigo 37, II, do texto constitucional.

O fato de o concurso público ao qual os servidores se submeteram à época ser apenas de provas, e não também de títulos, não desqualifica o rigoroso, impessoal e republicano processo de seleção e aferição do mérito dos candidatos aprovados e investidos na titularidade das serventias oficializadas.

Fundamentar a inconstitucionalidade de uma Lei — como pretende o PGR na ADI em tela — apenas no argumento de que ela garantiu o direito de migração a servidores públicos (também concursados), tendo em vista que o concurso foi apenas de provas de conhecimento, sem a prova de título também prevista no artigo 236 da Constituição, é absolutamente desproporcional, se confrontado tal argumento com a segurança jurídica e a proteção da confiança.

É que, em razão do artigo 32 do ADCT da Constituição de 88, “o disposto no artigo 236 não se aplica aos serviços notariais e de registro que já tenham sido oficializados pelo ppder Público, respeitando-se o direito de seus servidores”. É o caso do Estado da Bahia, que à época possuía serventias oficializadas. De fato, por força das Leis estaduais nº 1.909/63 e 3.075/72, o Estado da Bahia já havia oficializado os seus serviços notariais e de registro, não se aplicando a esses serviços a determinação do artigo 236. Isto porque, o artigo 32 do ADCT, relativamente aos serviços notariais e de registro que já tenham sido oficializados pelo poder público em período anterior à Constituição de 1988, excepciona a regra do exercício, em caráter privado, desses serviços.

Percebe-se, daí, a clara preferência da Constituição para a execução, modo privato, dos serviços de notas e registro, nada obstante a ressalva do artigo 32 do ADCT. Nesse sentido, entendeu o Supremo Tribunal Federal “que o sentido do artigo 236 da Carta Magna foi o de tolher, sem mesmo reverter, a oficialização dos cartórios de notas e registros” (RE 189.736, relator ministro Moreira Alves, DJ 27/09/96; vide, também, RE 191.030-AgR, DJ 27/03/98  e RE 191.030-AgR-ED, DJ 07/04/00).

Em razão dessa circunstância, vários estados da federação, por leis próprias, passaram a desoficializar esses serviços, dispondo sobre a privatização de sua execução, com o explícito propósito de se subtraírem da excepcionalidade do artigo 32 do ADCT (execução em caráter oficial) e se enquadrarem à regra do artigo 236 (execução em caráter privado), muito mais salutar e útil para toda a sociedade, à vista da maior eficiência típica do regime privado de execução.

Isso ocorreu na Bahia por força da lei impugnada, que, ao privatizar o exercício dos serviços notariais e de registro, corretamente assegurou o direito dos titulares, escreventes e auxiliares das serventias, como impõe a parte final do artigo 32 do ADCT. Assim, foi absolutamente necessário e compatível com a Constituição que a lei, ao desoficializar a execução dos serviços, garantisse aos servidores então investidos na titularidade das serventias oficializadas a opção de migrar para a prestação do serviço notarial ou de registro em caráter privado na modalidade de delegação.

Cumpre desvelar, entretanto, a situação jurídica dos titulares de cartórios oficiais de notas e registro ante a sua desestatização, que optarem pela migração para a prestação do serviço notarial ou de registro em caráter privado, em especial diante da exigência de prévio concurso público de provas e títulos para o ingresso na atividade notarial e de registro.

É certo, e disso não se ignora, que o STF vem sistematicamente declarando a inconstitucionalidade de normas estaduais que asseguram o direito do substituto de, na vacância da serventia, ascender à titularidade dos serviços (Conf. ADI nº 126-RO, ministro Octávio Gallotti, DJ de 05.06.92; ADI nº 690-GO, ministro Sydney Sanches, DJ de 25.08.95; ADI n. 552-RJ, ministro Sydney Sanches, DJ de 25.08.95; ADI nº 112-BA, ministro Néri da Silveira, DJ de 09.02.96; ADI nº 417-ES, ministro Maurício Corrêa, DJ de 08.05.98 e ADI nº 3.519/MC-RN, ministro Joaquim Barbosa, DJ de 30.09.05).

Ocorre que, se na ocasião da desoficialização dos cartórios, existirem titulares nas serventias oficializadas, a estes deve ser assegurada a delegação constitucional para o exercício, doravante em caráter privado, dos serviços notariais e de registro, prevista no artigo 236 da Carta Magna, não se lhes aplicando aquela jurisprudência da Corte.

Nem se argumente que existe aí uma violação ou burla a determinação do concurso público, pois aqueles servidores já haviam cumprido, ainda quando os cartórios se encontravam sob o regime oficial, a exigência constitucional do concurso quando ingressaram na atividade notarial e de registro.

Essa é uma interpretação que se impõe, à vista do escorreito exame e confronto sistemático do § 3º do artigo 236 (que impõe o concurso público para o ingresso na atividade notarial e de registro), do inciso II do artigo 37 (que exige o concurso público para o acesso a qualquer cargo ou emprego público, ressalvados os cargos em comissão) e o artigo 32 do ADCT (que assegura o direito dos servidores das serventias oficializadas, exatamente quando passarem para o regime privado do artigo 236), todos da Constituição.

Para além disso, em caso de privatização da execução dos serviços, não obsta o direito à delegação constitucional do artigo 236, todavia, a circunstância de os titulares das serventias oficializadas, a despeito de concursados terem assumido a titularidade por promoção ao cargo. Isto porque, quando os cartórios extrajudiciais se encontram sob o regime oficial, eles ostentam a natureza de verdadeiros órgãos públicos integrantes da administração pública direta do Poder Judiciário estadual. Como órgãos públicos, compõem-se de cargos públicos, organizados em carreira, que compreendem, basicamente, os cargos de subtabelião ou suboficial (substituto) e tabelião ou oficial (titular), de modo que a passagem de um cargo para outro se dá, à evidência, por provimento derivado vertical denominado, no direito administrativo, de promoção, pelos critérios, alternadamente, de antiguidade ou merecimento.

Não se pode, por conseguinte, confundir os cartórios sob o regime oficial (órgãos púbicos integrantes da estrutura da administração púbica direta de um dos poderes do Estado) com os cartórios sob o regime privado (estranhos à estrutura do Estado). Nesses últimos, não há cargos públicos. Existem tão somente atividades que são exercidas em caráter privado por delegação estatal. Assim, se é legítima no âmbito dos cartórios oficializados, a promoção para o cargo público de tabelião ou oficial, como não assegurar aos titulares ascendidos regularmente aos seus cargos o direito à delegação constitucional do artigo 236 da Constituição, na hipótese de privatização do exercício dos serviços notariais e de registro? É nesse sentido que se deve interpretar a última parte do artigo 32 do ADCT.

Ademais, ainda que se ventile a irregularidade do provimento, por promoção, e não por novo concurso público, do cargo de titular do cartório oficializado, é preciso fazer uma explicação, se a tanto se chegar, em situação que aqui se discute apenas por admiração à dialética.

Como se sabe, a administração pública, no exercício de sua prerrogativa de autotutela, pode extinguir os seus próprios atos, revogando os que se mostram inconvenientes e inoportunos e invalidando os que padeçam de vícios de ilegalidade. Contudo, o direito de a administração rever os seus próprios atos não é perpétuo. Decai em cinco anos, conforme alerta a esmagadora maioria doutrinária (conf., por todos, o nosso Curso de Direito Administrativo, ed. Juspodivm, e Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, ed. Malheiros).

Ressalte-se que é tão pacífica essa posição, que a Lei Federal nº 9.784/99 (Lei do Processo Administrativo Federal), prevê, em seu artigo 54, que “o direito da administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé”. Isto é, por mais que se faça um esforço na tentativa de atribuir às promoções para o cargo de titular a pecha de irregularidade, esses atos administrativos de provimento derivado estariam imunes ao poder revisório e corretivo do Estado quando publicados há mais de cinco anos.

Em suma, com as reflexões acima, conclui-se que (i) a ADI deve ser julgada improcedente, para considerar constitucional a Lei baiana nº 12.352, de 08.09.2011, que assegurou aos servidores legalmente investidos na titularidade das serventias oficializadas a opção de migrar para a prestação do serviço notarial ou de registro em caráter privado, na modalidade de delegação; (ii) subsidiariamente, não superada a inconstitucionalidade fundada apenas na ausência da prova de título no concurso público de provas de conhecimento ao qual os servidores legalmente investidos na titularidade das serventias oficializadas efetivamente se submeterem, que sejam modulados os efeitos temporais da decisão no sentido de resguardar a situação jurídica dos titulares de serventias extrajudiciais que optaram pela migração autorizada pela lei questionada, ainda que investidos naquela função posteriormente à promulgação da Constituição de 1988, em homenagem aos princípios da segurança jurídica, da proporcionalidade e da proteção da confiança legítima.

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