Opinião

Zonas de amortecimento de unidades de conservação em perímetro urbano

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13 de novembro de 2023, 9h25

A questão das zonas de amortecimento de unidades de conservação criadas em perímetro urbano ou lindeiras a esta é problema que se impõe sobre o ordenamento jurídico, principalmente quanto à validade das normas que sobre a mesma devem incidir.

Nesse sentido, a Procuradoria Federal Especializada (PFE) junto ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) emitiu no último dia 18 de setembro de 2023 a Portaria nº1 que aprovou a Orientação Jurídica Normativa PFE/ICMBio nº37/2023. Essa portaria procura especificar “[…] a caracterização das áreas inseridas nas Zonas de Amortecimento das Unidades de Conservação, no que diz respeito à sua natureza de zonas rurais e urbanas” (BRASIL, MMA, 2023).

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Essa orientação jurídica normativa afirma que “as Zonas de Amortecimento das Unidades de Conservação de Proteção Integral podem ser criadas, abrangendo zonas urbanas e rurais” (BRASIL, MMA, 2023). No seu item 1, a orientação reforça a impossibilidade de conversão das zonas rurais em urbanas após a instituição de certas áreas como zonas de amortecimento (ZA). Essa é uma prescrição legal, prevista no artigo 49, parágrafo único, do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, a Lei 9.985 (BRASIL, 2000).

Segundo a portaria e a orientação jurídica normativa, a inobservância desta vedação deve procurar ser invalidada por meio da câmara da administração pública federal ou por meio do Poder Judiciário (item 2 da orientação normativa).

No item 3 a orientação estabelece que “as leis municipais regularmente editadas e vigentes anteriormente à instituição da Zona de Amortecimento (ZA) das Unidades de Conservação pelo ICMBio devem ser consideradas plenamente válidas e eficazes” (BRASIL, MMA, 2023). Com isso, conclui o dispositivo da Orientação Normativa que não haveria efeito retroativo ao ato que institui a ZA em perímetro urbano, o que impede a transformação da zona urbana em zona rural.

Essas orientações vêm para ajudar a consolidar e estabilizar um posicionamento jurídico que já vinha sendo desenvolvido pela doutrina no intuito de não admitir a retroatividade e ingerência do ato normativo constituidor da zona de amortecimento sobre uma área urbana (GANEM, 2015).

Mesmo assim, isso não significa que algumas arestas não precisem ser aparadas em face de duas pretensões teoricamente opostas, mas que precisam ser conciliadas no caso concreto: de uma lado a existência de uma área de proteção integral, que precisa de cuidados múltiplos para garantir as suas características ecossistêmicas, e do outro, as áreas urbanas ou de expansão urbana, como sendo áreas propensas ao desenvolvimento e à ocupação humana, com todas as suas mazelas, encargos e oportunidades.

Em face disso é fundamental compreender o sentido e a importância das zonas de amortecimento em face das unidades de conservação, bem como compreender a finalidade e conformação do regramento urbanístico. Neste último caso, centrando-se especialmente sobre os planos diretores e as leis de zoneamento urbano.

O artigo 2º, inciso XVIII, da Lei 9.985/2000, prescrevem que as zonas de amortecimento são “o entorno de uma unidade de conservação, onde as atividades humanas estão sujeitas a normas e restrições específicas, com o propósito de minimizar os impactos negativos sobre a unidade” (BRASIL, 2000). A unidade de conservação é por sua vez, nos termos do artigo 2º, inciso I, da Lei 9.985/2000, o

“[…] espaço territorial e seus recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com características naturais relevantes, legalmente instituído pelo Poder Público, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção” (BRASIL, 2000).

O artigo 25 da referida lei determina que todas as Unidades de Conservação, ressalvadas as areas de proteção ambiental (APAs) e as reservas particulares do patrimônio natural (RPPN), “[…] devem possuir zona de amortecimento e, quando conveniente, corredores ecológicos” (BRASIL, 2000).

Desta forma, o que se pode concluir, como também o faz Talden Farias (2021), é que as zonas de amortecimento circundam as unidades de conservação com o objetivo de se constituírem como locais para o amortecimento e mitigação dos impactos humanos sobre estas áreas de proteção.

Farias (2021) afirma que as zonas de amortecimento não são parte integrante da unidade de conservação, caracterizando-se apenas como zoneamento destas, podendo prescrever regras específicas para qualquer atividade humana, em especial atividades econômicas. “Enquanto a UC busca proteger o meio ambiente de seu próprio território, a ZA possui o objetivo de proteger o bioma constante na área de entorno daquela. A ZA não possui existência per si, na medida em que é concebida como parte acessória da respectiva UC” (FARIAS, 2021).

Segundo Roseli Ganem (2015) as atividades que forem realizadas em zonas de amortecimento “[…] devem ser submetidas a normas específicas, para que sejam minimizados os impactos negativos sobre ecossistemas protegidos nas unidades […]”. Estas ZAs podem ser instituídas diretamente pelo ato que constitui a unidade de conservação ou posteriormente, como prescreve o §2º do artigo 25 da Lei 9.985 (BRASIL, 2000).

A intenção da instituição das zonas de amortecimento, mesmo em perímetro urbano, é garantir a integridade e as qualidades ambientais da área de proteção contida na unidade de conservação. E isso, também pode ser entendido como um objetivo bastante importante para as áreas urbanas. O que muda é a qualidade restritiva que possuem zonas de amortecimento localizadas em áreas rurais ou assim consideradas, daquelas localizadas em perímetro urbano ou de expansão urbana.

Essa importância é compreendida e afirmada na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:

“[…] é legal, possível e recomendável a demarcação e criação de unidades de conservação dentro do perímetro urbano, prática existente nos países mais avançados, para que a população desfrute de qualidade de vida e contato com a natureza, mesmo que tal área esteja encravada no coração de uma das capitais brasileiras” (BRASIL, STJ, 2017).

O debate, nesse sentido, que resguarda a Orientação Jurídica Normativa nº37/2023, em busca de adequada conformação de zonas de amortecimento sobre áreas urbanas deve ser mediada pela perspectiva do Sistema Nacional de Unidades de Conservação com a intenção dos regramentos urbanísticos.

Portanto, um dos elementos dentro desse processo que precisa ser averiguado também é o plano de manejo. O artigo 2º, inciso XVII, afirma que esses devem ser constituídos como documentos técnicos, fundamentados “[…] nos objetivos gerais de uma unidade de conservação […]” prescrevendo “[…] as normas que devem presidir o uso da área e o manejo dos recursos naturais, inclusive a implantação das estruturas físicas necessárias à gestão da unidade” (BRASIL, 2000).

Isso permite concluir que, quando a Orientação Jurídica Normativa nº37/2023 da Procuradoria do ICMBio se refere às regras de âmbito local como aquelas que devem ser aplicadas dentro das zonas de amortecimento, isso não permite perder de vista os motivos que levaram à criação da unidade de conservação, bem como a função das zonas de amortecimento.

Confirmando esta percepção, Ganem (2015) ensina que o plano de manejo da própria unidade de conservação de proteção integral “[…] próximas a sítios urbanos ou mesmo inseridas na malha urbana, […] deve observar as diretrizes de zoneamento expressas no plano diretor municipal”.

Assim, em raciocínio a contrário sensu, entende-se que o plano de manejo deve respeitar o zoneamento urbano preexistente, da mesma maneira que este deve absorver elementos que conformem a intenção e as regras básicas do plano de manejo. Com isso, percebe-se que, mesmo tendo as regras municipais prevalência sobre qualquer regramento da zona de amortecimento, é fundamental se buscar produzir uma harmonização entre as perspectivas conjugadas para o referido espaço territorial, por meio da adequação de interesses em voga.

Furlan ensina que um dos objetivos básicos da zona de amortecimento é “[…] expandir a interação com a sociedade, contribuindo para o desenvolvimento sustentável da região”. Por óbvio, isso também está condicionado na própria aptidão dos planos diretores, tidos como instrumentos de implementação da função social propriedade (artigo 182, §2º, da CF) e como conformadores das funções sociais da cidade (artigo182, caput, da CF) (BRASIL, 1988), na busca de um desenvolvimento sustentável.

Essa observação permite concluir que as zonas de amortecimento e os demais elementos do Sistema Nacional de Unidades de Conservação realçam nestas áreas, mesmo sendo urbanas, a função socioambiental da propriedade e asseveram a necessidade de se confeccionar cidades funcionalmente sustentáveis.

Essa integração vem da própria compreensão do sentido de sustentabilidade, que só é possível diante da análise da cidade em sua totalidade, em si mesma, regionalmente e diante do país ou do planeta, e diante da perspectiva da propriedade urbana que, para ser direito deve ser instrumento da realização de outros direitos fundamentais, em respeito a sua função social (GUERREIRO, 2023).

A operacionalização de tal perspectiva, por sua vez, deve ocorrer em uma atuação participativa da confecção tanto das mudanças, quanto da elaboração de novos planos diretores (artigo 40, §4º, da Lei 10.257/2001), como da confecção dos planos de manejo (artigo 27, §2º, da Lei 9.985/2000). É da essência de ambos os instrumentos de gestão a dinâmica de participação, que busca angariar tanto legitimidade, quanto efetividade do planejamento urbanístico (CUNHA FILHO, RIBEIRO e MONTEIRO, 2019, p.111).

É fato que algumas orientações gerais iniciais devem ser respeitadas, como por exemplo a redução da expansão urbana em zona de amortecimento, minimizando ou evitando os impactos das atividades nestas áreas (GANEM, 2015), e a necessidade de aprovação prévia pelo órgão gestor das unidades de conservação de proteção integral de atividades de significativo impacto, como a “[…] instalação de redes de abastecimento de água, esgoto, energia e infra-estrutura urbana em geral […]” como prescrito no artigo 46 da Lei 9.985 (BRASIL, 2000).

Assim, o planejamento dessas zonas de amortecimento, como leciona Furlan, deve integrar “[…] aspectos físicos, bióticos e socioeconômicos, considerando-se a proximidade e/ou conectividade dos fragmentos de vegetação e/ou outras características relevantes de vizinhança da UC”.

Isso faz com que se deva observar que qualquer regramento que vá valer na área ao entorno da unidade de conservação em perímetro urbano ou de expansão urbana deverá ser produzido no âmbito local, com um porvir voltado a conciliar a realidade daqueles que estão inseridos na área e as pretensões da zona de amortecimento. A produção normativa deve conciliar o direito fundamental ao meio ambiente equilibrado (artigo 225 da CF) com o direito de propriedade (artigo 5º, XXII, da CF), sem que nenhum deles seja aniquilado.

Essa identidade que busca a composição de regramento por meio da participação pode ser absorvida da análise feita pelo Supremo Tribunal Federal na qual “[…] a dimensão dos direitos fundamentais ao ambiente de participação política nas esferas governamentais agregam-se os deveres de proteção do meio ambiente à coletividade no art. 225 da Constituição Federal” (BRASIL, STF, 2023).

O que se percebe, nesse contexto, é que mesmo que haja o interesse de toda a população na conformação e administração do bem comum, substancialmente quando se trata do meio ambiente ecologicamente equilibrado previsto no artigo 225 da CF (BRASIL, STF, 2023), a ingerência sobre a propriedade individual e a realização de possíveis restrições necessárias avisando uma adequação da zona de amortecimento com o interesses dos proprietários lindeiros das unidades de conservação, faz com estes devam sempre ser ouvidos com um peso diferente na relação com os demais cidadãos.

Quando essa oitiva confrontar a compatibilização de usos da propriedade, naquilo que está prescrito na legislação urbanística local, com a intenção e funcionalidade de zona de amortecimento necessária para a garantia da proteção das unidades de conservação, por colocar esta em risco, haverá possivelmente uma desapropriação (direta ou indireta) das referidas áreas.

Ainda assim, isso precisa ser ponderado pela coletividade, na relação de composição e revisão dos planos diretores e das leis de zoneamento urbano, garantida a participação de toda a população (artigo 40, §4º, da Lei 10.257/2001), no sentido de saber se os valores investidos nessa solução são tão importantes que devam assim ser realizados para garantir a perspectiva de mitigação que a zona de amortecimento tem na transição da área urbana para a área de proteção integral.

O que de fato se observa é que uma zona de amortecimento imputa uma função social específica para a propriedade que precisa ser reconhecida em qualquer revisão de plano diretor e de zoneamento urbano, sendo necessário ser incorporado à legislação urbanística local.

É fato também que isso não permite qualquer mudança automática na área, devendo permanecer válida a legislação urbanística precedente à instituição da unidade de conservação. Mas também, não quer dizer que não seja necessário uma análise diferenciada de todos os novos processos que ocorrerão sobre a área que se constitui a zona de amortecimento, incorporando desde então, mesmo antes de qualquer compatibilização legal, a perspectiva da função socioambiental da propriedade trazida à tona pela funcionalidade da zona de amortecimento e pela unidade de conservação para a cidade.

Desta forma, o ideal é a revisão da legislação urbanística par agregar elementos contidos no novo sentido da área como zona de amortecimento, incluindo elementos do próprio plano de manejo. Enquanto isso não ocorre, a aplicação das regras urbanísticas precedentes a implantação desta zona de amortecimento, precisa ser mediada pelas novas necessidades, sempre garantindo os direitos dos proprietários e daqueles que usam a área, mesmo que com mais cautela.


Referências bibliográficas

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GUERREIRO FILHO, Evaldo José. Direito Constitucional Urbanístico diante do Objetivo de desenvolvimento sustentável 11 da Agenda 2030 da ONU. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023. Disponível em https://next-proview.thomsonreuters.com/launchapp/title/rt/monografias/323905643/v1. Acessado em 4.11.2023.

Autores

  • éadvogado, mestre em direito pela UFSC, professor da Faculdade de Direito Uniavan e da Escola Superior de Advocacia (ESA-SC), membro da Comissão de Direito Urbanístico da OAB-SC, procurador e secretário de Governo e Planejamento Estratégico de Itapema-SC (2006-2011), prefeito de Porto Belo-SC (2013-2016), assessor jurídico-parlamentar na Assembleia Legislativa de SC (2017-2018).

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