Opinião

Desafios da atuação do Ministério Público diante dos riscos atuais da democracia

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8 de novembro de 2023, 6h00

A tentativa de reflexão acerca das inúmeras ameaças identificadas atualmente contra o regime democrático no Brasil, duramente conquistado, exige acuidade e atenção redobrada com os fatos que estão acontecendo no mundo, rememorar o papel das instituições, e em especial a do Ministério Público, indicar os valores que movem cada um e a sua visão de mundo, nesta quadra da história, no desempenho do papel que exerça na sociedade e, sobretudo, apontar o futuro almejado.

Dessa forma, se faz necessário relembrar que o estágio evolutivo atual da Teoria da Constituição ultrapassa o mero conhecimento normativo, a análise e a descrição do que seja uma Constituição, assumindo uma abrangência de indagações mais amplas e profundas de cunho axiológico, pertinentes, principalmente, ao que "deve ser" uma Constituição.

A partir dessa análise e de uma reflexão metateórica e crítica do fenômeno político, constata-se que a Constituição promulgada em 05 de outubro de 1988, apelidada de "Constituição Cidadã", consolida o processo de "redemocratização" no país — ou, como preferem alguns autores, de "abertura" ou de "descompressão do sistema político" —  após os anos de ditadura militar e de estado de exceção, e institui o Estado democrático de Direito como modelo político adotado, estabelecendo-o expressamente já no seu primeiro artigo.

Embora, obviamente, se trate de uma escolha, dentre várias possíveis no espectro ontológico da política e decorra de processos históricos e sociológicos complexos, inclusive, como consequência de aspectos de natureza econômica, não ressoa redundante ou prolixo destacar que tal opção insere-se na abrangência das suas várias funções primárias. Afinal, como aponta Konrad Hesse, dentre as funções de uma Constituição na vida da comunidade encontram-se duas tarefas fundamentais: além da criação e manutenção do ordenamento jurídico, a formação e a manutenção da sua unidade política. Sendo ambas estreitamente imbricadas entre si.

Assim, é papel da Constituição estabelecer a arquitetura do Estado que ela origina, definir os fundamentos da sua estrutura, a sua dinâmica, os objetivos fundamentais a serem atingidos, bem como, o papel e o perfil de cada instituição que o compõe, no desiderato de buscar atingir tais objetivos. Consistindo, portanto, a Constituição de 1988, em um marco multirreferencial: político, jurídico, histórico, social, valorativo e etc., de transição para o país, de um "ancien régime", autoritário e antidemocrático, para um verdadeiro "nouvelle régime", "Democrático de Direito!" (e de direitos), é interessante observar que, a partir do paradigma de uma nova Constituição e do novo regime por ela instituído, inspirado por novos valores e principiologia, embora com o mesmo nome, passa a existir e funcionar uma nova instituição denominada "Ministério Público", que ela institui, define e confere atribuições e prerrogativas que considera importantes e pertinentes na busca dos novos objetivos fundamentais a serem alcançados.

A Constituição de 1988 define e aponta os fundamentos da República Federativa do Brasil, a partir do novo regime político democrático por ela estabelecido e do novo paradigma, no seu artigo 1º, dentre os quais: a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. E os objetivos fundamentais a serem alcançados, na redação do artigo 3º, onde se encontra: a) a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; b) a garantia do desenvolvimento nacional; c) a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais e d) a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

A partir do artigo 5º, no Título II, e ao longo de todo o texto, é estabelecido um extenso catálogo de Direitos Fundamentais, reconhecidos e assegurados pelo novo regime político, caracterizadores do autoproclamado "Estado Democrático de Direito", através de um sistema aberto e autopoiético, permanentemente atualizado e retroalimentado a partir do ponto de conexão estabelecido no § 2º do referido dispositivo.

Dessa forma, essa nova instituição chamada pela Constituição de 1988 de “Ministério Público”, não se trata, portanto, da antiga instituição homônima, existente no regime anterior, inclusive com atribuições distintas, cuja atribuição precípua era o papel de órgão acusador do Estado nos processos criminais (muitas vezes processos meramente garantidores da vigência do regime ditatorial), e com ela não se confunde, possuindo, inclusive, para além de um vastíssimo espectro de novas e relevantes atribuições, bem como, dotada de novas leis de regência, inspiradas por novos princípios e valores, adequados ao novo sistema constitucional e imprescindíveis aos novos objetivos estabelecidos como fundamentais.

Muito embora, possua o mesmo nome e, por uma opção constituinte originária legítima, tenha aproveitado os integrantes e as estruturas da antiga instituição que se extinguiu, juntamente com o antigo sistema constitucional. Prova disso, é que para que essa nova instituição e seus integrantes, possam exercer a contento a suas novas tarefas, lhes foram atribuídas novas e importantes garantias, anteriormente somente asseguradas ao Judiciário e seus membros.

Essa nova instituição chamada de "Ministério Público" foi definida pela Constituição de 1988 (e ela tomou o cuidado de fazê-lo) no seu artigo 127, na Seção I do Capítulo IV, que trata, topograficamente, das "funções essenciais à Justiça", da seguinte forma: artigo 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Dessa definição constitucional, emerge uma instituição sem paralelo no direito comparado , com responsabilidades e prerrogativas hipertrofiadas. Em 1988, diz Hugo Nigro Mazzilli: "pela primeira vez entre nós, um texto constitucional disciplinou de forma harmônica e orgânica a instituição e as principais atribuições do Ministério Público", incumbido, desta feita, não mais apenas da defesa do ordenamento jurídico — o "fiscal da Lei" de outrora — mas agora, inclusive e, principalmente, da defesa dos Direitos Fundamentais consagrados no novo regime político e assegurados no texto constitucional e da defesa do próprio regime democrático em vigor.

Afinal, um Ministério Público realmente guardião e defensor dos Direitos Fundamentais dos cidadãos, somente poderia "vicejar e atingir seus objetivos num meio essencialmente democrático". Ao incluir dentre as missões precípuas do Ministério Público brasileiro a defesa da própria Democracia, a Constituição de 1988, em verdade, consolidou o modelo que já constava do chamado "Anteprojeto Afonso Arinos" e da "Carta de Curitiba", claramente inspirados no modelo da Constituição portuguesa de 1976, promulgada após a "Revolução dos Cravos", que atribuiu também ao Ministério Público lusitano a defesa da "legalidade democrática" recém conquistada.

Portanto, não apenas o Ministério Público brasileiro, em sua configuração atual, é uma criação da Constituição Federal de 1988, idealizado e vocacionado à defesa do Estado Democrático de Direito. Como, na verdade, sua própria existência na atual conformação, somente faz sentido, se materializa e se viabiliza, na ambiência democrática. Democracia essa que, conforme leciona Carlos Ayres Brito: constitui o "princípio continente" da Constituição. Do qual, todos os demais princípios e valores são “conteúdos”. Nesses termos, é possível afirmar que: de um lado, o Ministério Público brasileiro é filho legítimo da Democracia. E, de outro, que a Democracia é o oxigênio que ele precisa para sobreviver. Tendo sido delegado a ele expressamente, pela própria Constituição, a defesa e a guarda do regime democrático.

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Autores

  • é procurador de Justiça do Ministério Público do Estado do Acre, professor de Direito Constitucional e Ciência Política e mestre e doutor em Direito.

  • é procuradora-geral de Justiça do Ministério Público do Estado do Acre, mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e MBA em Gerenciamento. Autora do Livro Biodiversidade e Repartição de Benefícios, publicado pela Juruá Editora.

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