Direito do Agronegócio

Confisco de imóvel rural em caso de trabalho análogo à escravidão

Autores

  • Flavia Trentini

    é professora associada do Departamento de Direito Privado e de Processo Civil e do programa de mestrado da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP) e livre docente em Direito Agrário pela FDRP-USP com estágio pós-doutoral pela Scuola Superiore Sant'Anna di Studi Universitari e Perfezionamento (SSSUP Itália) e em Administração/Economia das Organizações (FEA/USP).

  • Larissa Ferreira Porto

    é bacharela e mestranda pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP) e vencedora do 1º Prêmio de Reconhecimento Acadêmico em Direitos Humanos da Unicamp em parceria com o Instituto Vladimir Herzog na categoria "Ciências Sociais e Educação" pela pesquisa "Desapropriação confiscatória em caso de trabalho escravo em propriedades rurais: análise da função social da propriedade como forma de justiça social" financiada pelo Programa de Bolsas da Universidade de São Paulo (PUB-USP).

10 de março de 2023, 8h00

Nas últimas semanas, o caso do resgate de 207 trabalhadores reduzidos a condições análogas à de escravo na colheita da uva em Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, repercutiu enormemente na imprensa nacional. Segundo os relatos, os trabalhadores sofriam ameaças, agressões físicas, viviam em alojamentos precários e não recebiam alimentação adequada, caracterizando submissão às condições degradantes de trabalho e jornadas exaustivas [1]. Os trabalhadores, que foram contratados pela empresa Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde LTDA, trabalhavam na colheita da uva das vinícolas Aurora, Salton e Garibaldi, que afirmaram desconhecer da situação dos trabalhadores, já que a empresa contratante era terceirizada [2].

Spacca
De acordo com o Código Penal, o crime de redução à condição análoga à de escravo, previsto no art. 149, configura-se pela submissão do trabalhador a trabalhos forçados ou jornada exaustiva; pela sujeição a condições degradantes de trabalho; pela redução dos meios de locomoção; e pela aquisição de dívidas com o empregador ou preposto. Além disso, o cerceamento dos meios de transporte, a vigilância ostensiva no local de trabalho e retenção de documentos também configuram o crime [3].

Embora sejam esferas independentes, o conceito do Código Penal serve de baliza para a atuação dos órgãos de fiscalização administrativos, embora nem sempre os elementos suficientes para caracterizar a infração trabalhista o sejam para a configuração do delito. No mesmo sentido, nem sempre aqueles que podem ser responsabilizados pelas infrações trabalhistas podem, também, ser responsabilizados criminalmente.

No caso descrito acima, após o resgate, a Fênix concordou com o pagamento das verbas rescisórias dos trabalhadores, mas rejeitou a proposta de acordo do Ministério Público do Trabalho para indenizar os trabalhadores pela redução à condição análoga à de escravo [4]. Já as vinícolas poderão ser responsabilizadas de forma solidária pela rescisão do contrato, conforme já discutido na ConJur por Arthur Andreoni Calixto. Apura-se, ainda, a responsabilidade das empresas pela redução dos trabalhadores às condições análogas à de escravo.

Entretanto, além da responsabilização nas esferas trabalhista e, eventualmente, pela prática do crime do art. 149 do Código Penal, há ainda uma outra sanção prevista, desde 2014, na Constituição Federal [5], embora essa seja, ainda, muito pouco discutida. Trata-se da possibilidade de confisco dos imóveis em que se localize a exploração de trabalho análogo ao de escravo. A redação atual do dispositivo, no qual essa possibilidade foi inclusa, provém da Emenda Constitucional nº 81/2014. Atualmente, a previsão é a seguinte:

Artigo 243. As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º.

Conforme consta no dispositivo, trata-se de um confisco, na medida em que o proprietário não tem direito à indenização. Assim, aplica-se uma sanção econômica ao proprietário, que visa dar concretude ao princípio da função social da propriedade. Destaca-se, nesse sentido, que o artigo 186 da CF prevê que a função social das propriedades rurais será cumprida quando atender, simultaneamente, ao aproveitamento racional e adequado; utilizar adequadamente dos recursos naturais e preservar o meio ambiente; observar a legislação trabalhista e explorar o imóvel de forma que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Todavia, além de pouco debatido academicamente, o confisco em caso de exploração do trabalho sequer é colocado em prática. Isso porque, embora a medida prevista para o cultivo de plantas psicotrópicas tenha regulamentação própria, o mesmo não acontece em caso da exploração do trabalho, que segue, até hoje, sem regulamentação definitiva. Dessa forma, questões sobre o conceito de "trabalho escravo" trazido pelo artigo 243 da CF, a possível exigência de condenação criminal e a responsabilização objetiva dos proprietários permanecem, ainda, sem solução concreta.

Em 2013, o Projeto de Lei do Senado nº 432/2013 [6] visava discutir esses elementos, embora trouxesse soluções que, na prática, inviabilizavam a efetividade do dispositivo. Isso porque, em um primeiro momento, o Projeto delimitava o conceito de "trabalho escravo" às hipóteses de restrição à locomoção do trabalhador, excluindo as previsões existentes no Código Penal sobre redução a condição degradante de trabalho e jornada exaustiva, por exemplo. Além disso, previa como necessário o trânsito em julgado da sentença penal condenatória para a efetivação da sanção, embora o mesmo não seja exigido no caso de cultivo de plantas psicotrópicas. O proprietário, por sua vez, somente seria responsabilizado com a medida se fosse quem explorasse diretamente o trabalho no imóvel.

Outro projeto foi proposto em 2019 pelo senador Randolfe Rodrigues, já que o PLS de 2013 foi arquivado ao final da legislatura. No PLS nº 5.970/2019, foram incorporadas sugestões elaboradas pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania em parecer ao Projeto nº 432/2013 [7]. Entre elas, o conceito de trabalho análogo a escravo — nomenclatura sugerida no lugar de "trabalho escravo" — voltou a incluir a submissão às condições degradantes e a jornada exaustiva, além de apontar um rol de situações que, quando identificadas em no mínimo de três, configuraram as condições degradantes de trabalho.

A questão atinente a necessidade de trânsito em julgado de sentença penal condenatória, todavia, não foi solucionada pelo PLS nº 5.970/2019, que manteve a exigência constante no projeto de 2013. Dessa forma, caso aprovado, diferentemente do que acontece no confisco de propriedades com cultivo de plantas psicotrópicas, a sanção administrativa fica condicionada à sanção penal (ainda que essa seja considerada a ultima ratio).

O projeto proposto pelo senador Randolfe Rodrigues também buscou solucionar a questão relativa a responsabilidade do proprietário do imóvel. Em seu texto está previsto que "o proprietário não poderá alegar desconhecimento da exploração de trabalho escravo por seus prepostos, dirigentes ou administradores". Já em relação a propriedade alugada ou arrendada, o imóvel não poderia ser expropriado, salvo em caso do proprietário ter, diretamente ou através de seus prepostos, dirigentes ou administradores, tomado conhecimento e se omitido em relação a exploração do trabalhado, ou obtido benefício econômico, ainda que indireto, com essa exploração, exceto aquele proveniente do contrato de locação ou arrendamento [8].

Cabe acrescentar, ainda, que o Supremo Tribunal Federal já fixou tese, em sede de repercussão geral (Tema 399), no sentido de que "a expropriação prevista no artigo 243 da CF pode ser afastada, desde que o proprietário comprove que não incorreu em culpa, ainda que in vigilando ou in eligendo" [9]. O que a decisão do Supremo determina, dessa forma, é um mínimo de segurança para os proprietários esbulhados, por exemplo, para que não sejam responsabilizados pelas ações do autor do esbulho. Não há, todavia, "carta branca" para que os proprietários se esquivem da responsabilização com a mera declaração de desconhecimento dos fatos, já que o proprietário tem o dever de vigilância sobre seus bens, assim como deve escolher adequadamente seus prepostos, representantes e empregados. Por fim, a medida do confisco tem potencial de coibir a prática da exploração de trabalho escravo, além de poder beneficiar trabalhadores e trabalhadoras brasileiros com lotes para moradia e subsistência por meio dos programas de reforma agrária e habitação popular.

 


[1] 'SE RECLAMASSE, era espancado', diz baiano vítima de trabalho similar à escravidão em Bento Gonçalves, no RS. G1, [S. l.], 25 de fevereiro de 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2023/02/25/se-reclamasse-era-espancado-diz-baiano-vitima-de-trabalho-analogo-a-escravidao-em-vinicola-no-rs.ghtml. Acesso em: 07 mar. 2023.

[2] VINÍCOLAS do RS que usavam mão de obra análoga à escravidão podem ser responsabilizadas, diz MTE. G1, [S. l.], 25 de fevereiro de 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2023/02/24/vinicolas-do-rs-que-usavam-mao-de-obra-analoga-a-escravidao-podem-ser-responsabilizadas-diz-mte.ghtml. Acesso em: 07 mar. 2023.

[3] BRASIL. Decreto-lei n. 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 07 mar. 2023.

[4] EMPRESA que oferecia mão de obra para vinícolas do RS rejeita acordo e nega trabalho em condições semelhantes à escravidão, diz MPT. G1, [S. l.], 02 de março de 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2023/03/02/empresa-que-oferecia-mao-de-obra-para-vinicolas-do-rs-rejeita-acordo-e-nega-trabalho-em-condicoes-semelhantes-a-escravidao-diz-mpt.ghtml. Acesso em: 07 mar. 2023.

[5] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 08 mar. 2023.

[6] BRASIL. Senado Federal. Projeto de lei do Senado n. 432, de 2013. Dispõe sobre a expropriação das propriedades rurais e urbanas onde se localizem à exploração de trabalho escravo e dá outras providências. Autoria: Comissão Mista criada pelo ATN n. 02, de 2013. Brasília, DF: Senado Federal [2013]. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=3773638&ts=1630430134336&disposition=inline. Acesso em: 08 mar. 2023.

[7] BRASIL. Senado Federal. Parecer da COMISSÃO DE CONSTITUIÇÃO, JUSTIÇA E CIDADANIA, sobre o Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 432, de 2013, da COMISSÃO MISTA CRIADA PELO ATN Nº 2, DE 2013, que dispõe sobre a expropriação das propriedades rurais e urbanas onde se localizem a exploração de trabalho em condições análogas à de escravo e dá outras providências. Autoria: Paulo Paim. Brasília, DF: Senado Federal [2016]. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=5018513&ts=1630430134860&disposition=inline. Acesso em: 08 mar. 2023.

[8] BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei n. 5.970/2019. Dispõe sobre a expropriação das propriedades rurais e urbanas onde se localizem a exploração de trabalho em condições análogas à de escravo e dá outras providências. Autoria: Senador Randolfe Rodrigues. Brasília, DF: Senado Federal [2019]. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8038229&ts=1675351952738&disposition=inline. Acesso em: 07 mar. 2023.

[9] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Plenário). Recurso Extraordinário n. 635.336/PE. Repercussão Geral – Tema 399 – Natureza da responsabilidade do proprietário de terras com cultivo ilegal de plantas psicotrópicas para fins de expropriação. Recorrente: Ministério Público Federal. Recorrido: Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária e outros. Relator: ministro Gilmar Mendes, 14 de dezembro de 2016. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=312735555&ext=.pdf. Acesso em: 07 mar. 2023.

Autores

  • é professora associada do Departamento de Direito Privado e de Processo Civil da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP) e do programa de mestrado da mesma instituição, pós-doutora pela Scuola Superiore Sant'Anna di Studi Universitari e Perfezionamento (SSSUP, Pisa, Itália), com bolsa Fapesp, pós-doutora em Administração/Economia das Organizações (FEA/USP) e livre docente em Direito Agrário pela FDRP-USP.

  • é bacharela e mestranda pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP) e vencedora do 1º Prêmio de Reconhecimento Acadêmico em Direitos Humanos da Unicamp em parceria com o Instituto Vladimir Herzog, na categoria "Ciências Sociais e Educação", pela pesquisa "Desapropriação confiscatória em caso de trabalho escravo em propriedades rurais: análise da função social da propriedade como forma de justiça social", financiada pelo Programa de Bolsas da Universidade de São Paulo (PUB-USP).

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