Opinião

Cegueira deliberada para o trabalho escravo na cadeia produtiva das vinícolas

Autor

  • Arthur Andreoni Calixto

    é advogado graduado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo pós-graduado em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica da São Paulo (Cogeae).

1 de março de 2023, 15h14

Virou notícia uma operação conjunta entre o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e a Polícia Rodoviária Federal na qual foram resgatadas mais de 200 pessoas trabalhando em condições análogas à escravidão em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha.

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De acordo com os relatos, os trabalhadores foram contratados por uma empresa que prestava serviços a grandes vinícolas da região. Três deles conseguiram fugir do alojamento e denunciaram o atraso no pagamento de salários, o uso de violência física, longas jornadas e fornecimento de alimentos estragados.

Não é novidade que o Brasil enfrenta diversos problemas em relação ao trabalho em condições análogas à escravidão. Para se ter uma noção, foi o último país das Américas a abolir a escravidão e o primeiro a ser condenado, em 2016 [1], por trabalho escravo, perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos (caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil [2]).

É o mesmo país em que o Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo (conhecido como "lista suja do trabalho escravo"), idealizado pela Portaria MTE nº 540/2004, teve sua constitucionalidade questionada no STF [3].

Aliás, vale lembrar que o dia 28 de janeiro (Dia Nacional de Combate ao Trabalho escravo e também Dia do Auditor Fiscal do Trabalho) é uma homenagem aos auditores-fiscais do trabalho Eratóstenes de Almeida Gonsalves, João Batista Soares Lage e Nelson José da Silva e ao motorista Ailton Pereira de Oliveira, assassinados em Unaí, em Minas Gerais. A "Chacina de Unaí", como ficou conhecida, ocorreu em 28 de janeiro de 2004, quando os quatro funcionários do Ministério do Trabalho e Emprego foram assassinados na região. Os homicídios foram motivados por uma investigação de combate ao trabalho escravo liderada pelas vítimas.

Com relação ao recente episódio envolvendo a safra de uva no sul do país, foi noticiado no site do Ministério Público do Trabalho [4] a assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta com o proprietário da empresa a fim de garantir ao menos o pagamento das verbas rescisórias dos trabalhadores. Ainda de acordo com a notícia, estima-se que o valor total das verbas ultrapassaria R$ 1 milhão.

Uma questão importante a se fazer, no âmbito de proteção a tais trabalhadores, é: se a empresa não tiver recursos financeiros para arcar com o pagamento dos direitos trabalhistas, seria possível responsabilizar as próprias vinícolas que se beneficiaram de tal mão de obra?

Não é grande novidade, na esfera trabalhista, que a resposta é sim. Porém, a questão ainda é pouco difundida, apesar de ter ganhado certa notoriedade a partir dos casos da indústria têxtil e da construção civil.

Com o decorrer dos anos, a doutrina, acompanhada posteriormente pela jurisprudência, buscou teorias que pudessem fundamentar a responsabilização de toda cadeia produtiva e não apenas de uma parte dela ou da parcela mais imediata.

Uma delas é a chamada Teoria da Cegueira Deliberada ou Teoria do Avestruz [5] ("willful blindness doctrine" ou "ostrich instructions"). Trata-se de uma teoria importada do Direito Penal norte-americano, segundo a qual responsabiliza-se o indivíduo que deliberadamente se coloca em uma posição de omissão ou de cegueira com o intuito de auferir vantagem a partir de sua conduta.

No Direito Penal, por exemplo, aplica-se aos casos de receptação, nos quais pressupõe um crime anterior (roubo ou furto) em que o receptador, para se desvencilhar de qualquer responsabilidade, alega desconhecer a origem ilícita do produto que adquiriu, mesmo diante de preços aviltantes ou ausência de nota fiscal.

Transportando para o Direito do Trabalho, a lógica é a mesma. Uma empresa contrata outra para a prestação de determinado serviço e, havendo desrespeito a direitos trabalhistas por parte da prestadora, a tomadora alega desconhecer tais irregularidades, mesmo tendo celebrado o contrato a preços abaixo do praticado no mercado e não fiscalizando, por exemplo, recolhimentos para o FGTS.

Dessa forma, a partir do momento em que vinícolas  ou qualquer outra empresa no final de uma cadeia produtiva  se colocam deliberadamente em uma posição de cegueira ou ignorância em relação ao que acontece nas etapas de sua produção, deverão ser responsabilizadas pelas irregularidades nela encontradas.

Apesar de o nome ser pouco difundido, a jurisprudência trabalhista já o adotou em alguns julgados e não apenas em casos de cadeia produtiva. Vejamos as seguintes decisões:

"(…) E nem se argumente que a parte patronal não tinha conhecimento das simulações enredadas, pois participa da citada comissão, subsidia sua existência, mediante o pagamento de taxas administrativas, além de ser a parte notoriamente beneficiada pelas fraudes. Incidência, na espécie, da lição oriunda do direito penal, que vem sendo assimilada por moderna vertente doutrinária trabalhista, denominada de teoria da cegueira deliberada (síndrome do avestruz), segundo a qual um determinado agente simula não perceber o que se passa em seu entorno, ou aparenta uma surpresa pouco crível, consideradas as vantagens que aufere com seu intencional estado de ignorância sobre uma situação suspeita. Noutra vertente, em face do princípio da proteção, faz-se imperioso que esta justiça especializada assimile os novéis institutos estampados no Código Civil de 2002, notadamente, o da lesão (CC, artigo 157)". (TRT 13ª R.; RO 0059100-98.2014.5.13.0003; Segunda Turma; relator desembargador Wolney de Macedo Cordeiro; Julg. 24/02/2015; DEJTPB 03/03/2015; Pág. 11).

"EMENTA: ARRENDAMENTO RURAL. PARCERIA RURAL. FRAUDE. RESPONSABILIDADE TRABALHISTA. TRABALHO EM CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO. TEORIA DO AVESTRUZ OU TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA (WILLFUL BLIDNESS). Embora tenha presenciado todo vilipêndio à dignidade dos trabalhadores, fato que nem sequer foi negado na peça contestatória, o proprietário da terra segue linha defensiva pautada na Teoria da Cegueira Deliberada, também conhecida como Teoria do Avestruz. Essa metáfora foi utilizada pela Suprema Corte Americana, ao comparar o agente causador de um dano à avestruz, que enterra a cabeça para não tomar conhecimento de algo que ocorre em seu entorno ou aparenta uma surpresa pouco crível, consideradas as vantagens que aufere com seu intencional estado de ignorância sobre uma situação suspeita, no caso, a submissão de trabalhadores a condições análogas a de escravo. Assim, é necessário imputar responsabilidade àquele que, com o intuito de auferir vantagens, finge não perceber a existência de ilícitos de grande repercussão no âmbito da cadeia produtiva. Recurso do primeiro reclamado desprovido, no particular". (TRT18, RO – 0010474-36.2016.5.18.0004, relator GERALDO RODRIGUES DO NASCIMENTO, 2ª TURMA, 15/06/2018).

Em outra oportunidade, o TRT de São Paulo também encampou a ideia segundo a qual "fechar os olhos" não pode ser causa para afastar as responsabilidades trabalhistas:

"(…) Entendo que, dificilmente, a terceira reclamada industrializaria suas peças, com preços tão irrisórios, se tivesse escolhido oficinas de costura regularizadas para a fabricação de seus produtos, pois essas oficinas, certamente, englobariam no preço final da mercadoria, os custos trabalhistas com empregados, manutenção do ambiente de trabalho e demais impostos, o que, por obviedade, elevaria o preço do serviço. Assim, não é verossímil admitir que a terceira ré não tivesse ciência, ou ao menos sequer 'desconfiasse', de que algo de errado acontecia na oficina de costura eleita para a industrialização de sua matéria-prima. Esse tipo de postura- de fechar os olhos para quem fabrica o produto; de onde vem o produto  não tem o condão de afastar as responsabilidades trabalhistas". (…) (Processo nº 00001345-20.2010.5.02.0050).

Além da possibilidade de responsabilização da empresa que se encontra no topo da cadeia produtiva, importante esclarecer se esta responsabilidade seria solidária ou subsidiária.

Respeitando posições contrárias, entendemos que, neste caso, a responsabilidade é solidária.

Sabendo que a solidariedade somente advém da lei ou da vontade das partes (artigo 265 do Código Civil), é possível citar, pelo menos [6], dois dispositivos que fundamentam a solidariedade no presente caso.

O primeiro, é o artigo 2º, §2º, da Consolidação das Leis do Trabalho, o qual estabelece que empresas que integram o mesmo grupo econômico respondem de forma solidária.

Importante salientar, neste ponto, que o grupo econômico para fins trabalhistas não precisa se revestir das modalidades jurídicas típicas do direito econômico ou do direito empresarial. Não se exige nem sequer registro em cartório. Dessa forma, é possível verificar, no âmbito do Direito do Trabalho, frise-se, a existência de um grupo econômico tão somente pelos elementos de integração interempresarial [7].

Nos casos de cadeia produtiva, o interesse comum de toda a rede interligada é justamente dar vazão à demanda daquele que ocupa seu topo. Diante de tal dinâmica, vislumbram-se a integração de interesses e a atuação conjunta das empresas integrantes da cadeia, mesmo que tentem encampar a ideia de uma terceirização.

Conforme explica Carlos Nelson Konder [8], as empresas integrantes de uma cadeia produtiva perseguem uma finalidade que ultrapassa a mera soma das próprias finalidades individuais.

Nota-se, portanto, que esta modalidade de produção é muito mais integrada do que uma mera terceirização, o que possibilita seu enquadramento como um grupo econômico trabalhista à luz do que dispõe o artigo 2º, §2º, da CLT.

Outro dispositivo legal que fundamenta a solidariedade é o artigo 942, do Código Civil, segundo o qual:

"Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação."

Dessa forma, uma vez que as vinícolas, a partir de sua omissão, concorreram para a ofensa aos direitos dos trabalhadores, devem responder solidariamente para sua reparação.

Ressalte-se que referido dispositivo civilista é plenamente aplicável, uma vez que o artigo 8º, §1º, da CLT, prevê que o direito comum será fonte subsidiária do Direito do Trabalho, não se exigindo mais, após a Reforma Trabalhista, eventual compatibilidade.

Vale lembrar, ainda, que parte da doutrina fundamenta a responsabilização solidária com base nos artigos 7º, parágrafo único, e 25, §1º, do Código de Defesa do Consumidor, os quais preveem a solidariedade entre todos os fornecedores integrantes da cadeia de consumo.

Portanto, tendo em vista a história escravocrata do Brasil que ainda respinga na atualidade, bem como a enorme dificuldade em se combater o trabalho análogo ao de escravo, mais do que nunca é importante buscar soluções, na lei, que tragam maior efetividade para os ditames da Constituição Federal, a qual prescreve como fundamentos de nossa República a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho (artigo 1º, III e IV) e como princípio da ordem econômica a função social da propriedade (artigo 170, III).


[1] Em que pese a primeira condenação ter sido em 2016, em 2003 o Brasil firmou um acordo reconhecendo sua responsabilidade internacional por trabalho em condições análogas à escravidão no Caso José Pereira.

[2] Em obediência à determinação exarada na sentença da CIDH, foi apresentada Proposta de Emenda à Constituição nº 14 de 2017, a qual pretendia tornar imprescritível a prática do crime de redução à condição análoga à escravidão. Porém, referida proposta foi arquivada em 21/12/2018.

[3] O STF reconheceu a constitucionalidade da lista suja do trabalho escravo em 2020, conforme ADPF 509.

[5] Para quem está se perguntando de onde surgiu a referência ao avestruz, indica-se que é oriunda de uma atitude peculiar do animal, o qual coloca a cabeça debaixo da terra e assim, estaria impedido de ver ou escutar o que acontece em sua volta.

[6] Devido à proposta do texto, nos limitaremos a citar apenas alguns fundamentos, porém, importante esclarecer que a doutrina ainda traz outros argumentos, como a teoria do empregador único, da alteridade, da subordinação integrativa e reticular, do risco-proveito etc.

[7] DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 10ª ed. São Paulo: LTr, 2011, p. 397

[8] KONDER, Carlos Nelson. Contratos Conexos: Grupos contratuais, redes contratuais e contratos coligados. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 189

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