Limite Penal

Injustiças epistêmicas e a Justiça Juvenil

Autores

  • Marcella Mascarenhas Nardelli

    é doutora em Direito Processual pela Uerj professora de Direito Processual Penal da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e autora do livro "A Prova no Tribunal do Júri" da Editora Lumen Juris.

  • Éllen Rodrigues Brandão

    é doutora em Direito Penal pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Professora adjunta de Direito Penal e Criminologia da Faculdade de Direito da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora).

3 de março de 2023, 14h11

Há um ano uma importante decisão do Superior Tribunal de Justiça no AgResp 1.940.381/AL, de relatoria do ministro Ribeiro Dantas, foi trazida ao debate nesta coluna para destacar que o tema da injustiça epistêmica está oficialmente em pauta. Isso porque, paralelamente às duas teses propostas — referentes à perda de uma chance probatória e ao testemunho por hearsay —, houve expressa menção na ementa do acórdão à prática de injustiça epistêmica [1] consistente na desconsideração da narrativa de jovem condenado por ato infracional análogo à tentativa de homicídio.

Spacca
No caso em questão, o adolescente narra que a vítima, após consumir bebida alcoólica, investiu contra sua namorada grávida e seu amigo, o que lhe fez golpeá-la na cabeça com um paralelepípedo para fazer cessar a agressão — agindo, pois, em legítima defesa. No entanto, a confissão quanto à prática da conduta, somada ao depoimento de um policial militar e um bombeiro que não presenciaram os fatos, foi o suficiente para a condenação por ato infracional análogo à tentativa de homicídio. A vítima e as testemunhas oculares do fato não foram ouvidas — o Ministério Público desistiu de seus testemunhos — e sequer foi realizado exame de corpo de delito. Não foram realizadas outras diligências, como uma possível busca por imagens de câmeras de segurança. A despeito disso, a tese de legítima defesa foi solenemente desprezada sem que se reunissem elementos capazes de refutá-la. O desfecho: imposição da medida socioeducativa consistente na internação do adolescente — a mais grave prevista — decorrente de condenação pela prática de ato infracional análogo à tentativa de homicídio.

A coluna de hoje revisita o mencionado caso para trazer ao debate algumas reflexões críticas à dinâmica probatória empregada no contexto institucional no qual fora produzida aquela injustiça epistêmica, qual seja, a Justiça Juvenil [2]. Não por acaso, os três eixos de destaque no acórdão que levaram à absolvição do adolescente — perda de uma chance probatória; testemunho por hearsay e injustiça epistêmica — se tratam de irregularidades no procedimento probatório, as quais são sistemáticas nesta sede. Tais injustiças decorrem de condições estruturais e são consequências previsíveis de uma configuração processual movida por fins não propriamente epistêmicos.

É sobre esse ponto que situamos nossa crítica ao modelo adotado pelo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) para a apuração do ato infracional, que ao se apoiar na doutrina da proteção integral como fundamento para a atuação da Justiça Juvenil, acaba por subverter suas próprias premissas ao desconsiderar a função cognitiva — e garantista — do processo como pressupostos para aplicação das medidas socioeducativas. Desta forma, na medida em que despreza a determinação dos fatos como condição indispensável para a imposição das referidas medidas, viola garantias — como a da presunção de inocência — e fomenta a produção institucional de injustiças epistêmicas.

Para que se possa aprofundar nas raízes do problema, cumpre-se, em primeiro lugar, compreender os constructos históricos e político-criminais que vincam o sistema de Justiça Juvenil brasileiro, dos quais decorre o descompasso verificado entre os princípios reitores previstos formalmente no ECA e a gestão probatória levada a efeito no âmbito das Varas de Infância e Juventude brasileiras.

Uma questão intrigante em relação à infância e juventude no Brasil é a de como e por que esse segmento da população foi considerado, desde o período colonial até a contemporaneidade, um problema pendente de ações e resoluções, uma questão a ser administrada pelos agentes de poder. Ao analisar a questão dentro dessa perspectiva histórica verifica-se que o abandono e a pobreza foram as causas principais para justificar as medidas de controle social adotadas no Brasil em face da infância e da adolescência, sobretudo no âmbito da delinquência.

Essa perspectiva foi muito marcante em meio ao modelo tutelar vigente à época do Código de Menores, então fundado na lógica da "situação irregular". Apoiado na retórica salvacionista, o código legitimou a intervenção maciça por parte das autoridades na vida das famílias pobres, que, muitas vezes, perdiam o direito à guarda e tutela de seus filhos em favor do Estado sob a acusação de desestruturação e degenerescência. Ao associar uma situação de carência e desassistência com a delinquência, legitimava-se a atuação tutelar do Estado sobre a juventude pobre, a quem era conferido tratamento equiparado aos jovens infratores, sendo todos enquadrados sob uma mesma categoria: "menor em situação irregular".

Assim, enquanto as classes privilegiadas eram orientadas a temer a delinquência, possibilitava-se, a um só tempo, a preservação das crianças e adolescentes de tal status e a legitimação da exclusão social dos meninos e meninas das classes pobres, o que garantiria a edificação de um modelo político-criminal seletivo e excludente [3].

Por sua vez, a proposta do ECA, de 1990, era romper com a noção de irregularidade e garantir a todos os menores de 18 anos possibilidades isonômicas de exercício da sua cidadania. A elaboração do estatuto decorreu do imperativo de pormenorizar o sistema especial de proteção dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes, outorgando a estes o status de cidadãos especiais, de acordo com a Constituição de 1988, em razão de peculiaridades da personalidade infanto-juvenil.

No contexto político-criminal, o ECA se orienta a partir do paradigma da chamada proteção integral, que veda a aplicação das mesmas penas destinadas aos adultos às crianças e adolescentes e, em contrapartida, oferece um rol taxativo de medidas, chamadas socioeducativas, a serem aplicadas quando da prática de atos infracionais. A doutrina da proteção integral insculpida no ECA é inspirada na Convenção dos Direitos da Criança de 1989, ratificada no Brasil através do Decreto nº. 99.710/1990, e preconiza o dever, atribuído aos estados, às famílias e à sociedade, de assegurar aos menores de 18 anos todas as oportunidades e direitos aptos a lhes proporcionarem o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade e com a observância de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana.

No que tange à prática de infrações penais, que na forma do ECA são denominadas atos infracionais, compreende-se que os menores de 18 anos são tidos como penalmente inimputáveis, estando os adolescentes (grupo entre 12 a 18 anos incompletos) sujeitos à imposição das medidas socioeducativas previstas no artigo 112 do estatuto. Vale destacar que em caso de condenações pela prática de infrações penais, a imposição das medidas de natureza restritivas e privativas de liberdade, quais sejam: semiliberdade e internação, deve ser considerada a ultima ratio do sistema socioeducativo.

Ademais, há expressa previsão de garantias processuais como o devido processo legal, direito à defesa técnica, contraditório e igualdade na relação processual, inclusive com menção à prerrogativa do adolescente de se confrontar com vítimas e testemunhas e produzir todas as provas necessárias à sua defesa.

Pois bem.

Conforme o disposto no artigo 114 do ECA, a fixação das medidas socioeducativas pressupõe a existência de provas suficientes da autoria e da materialidade da infração. No entanto, tal previsão soa como mera exortação na medida em que analisada em conjunto com as disposições que regulam o procedimento de apuração do ato infracional, cuja dinâmica inviabiliza por completo seu atendimento. 

Em primeiro lugar, quanto à conduta esperada em sede policial a partir da prática de ato infracional, veja-se que a lei procura estabelecer um parâmetro mínimo — mas ainda insuficiente — quanto à identificação e preservação das fontes de prova apenas em se tratando de flagrante de ato praticado em violência ou grave ameaça à pessoa, bastando boletim de ocorrência circunstanciada para as demais hipóteses — independente da complexidade. Por outro lado, ainda mais grave é o baixo rigor exigido pelo ECA para a representação do Ministério Público pela aplicação de medida socioeducativa — que se equipara à denúncia no procedimento comum: a manifestação acusatória, que inclusive pode ser deduzida oralmente, conterá breve resumo dos fatos com sua classificação jurídica e independe de prova pré-constituída de autoria e materialidade.

É intuitivo concluir que a dispensa de justa causa para a instauração do procedimento — ou, em outras palavras, a ausência de um juízo de admissibilidade —, serve como desestímulo a que se proceda à colheita dos elementos informativos em sede policial, além de implicar a ausência de um mecanismo de controle voltado para evitar que se leve a cabo uma acusação infundada.

Quanto ao primeiro aspecto, que muito bem se alia à perspectiva da perda de uma chance probatória abordada no caso em comento, há que se observar que:

"se é objetivo do processo penal oferecer decisões judiciais justificadas — sejam absolvições, sejam condenações — é imprescindível que a investigação preliminar passe a refletir os compromissos garantistas e epistêmicos assumidos pelo processo penal constitucional e democrático. (…) Um processo penal epistemicamente compromissado não pode fechar os olhos para a fase que lhe antecede e prepara" [4].

Como destacado por Alexandre Morais da Rosa e Fernanda Rudolfo [5], "nas hipóteses em que o Estado se omite e deixa de produzir provas que estavam ao seu alcance, julgando suficientes aqueles elementos que já estão à sua disposição, o acusado perde a chance (…) de que a sua inocência seja afastada (ou não) de boa-fé".

Veja-se, portanto, que a própria dinâmica prevista pelo ECA para a apuração do ato infracional coloca em segundo plano a função cognitiva do processo, como pressuposto para aplicação das medidas socioeducativas.

Contra essas críticas, eventualmente são opostos argumentos fundados na vertente "protetiva" da atuação da Justiça Juvenil no sentido da ausência de uma perspectiva punitiva e (…). Não sendo o escopo do presente texto enfrentar a controvérsia sobre a natureza das medidas socioeducativas, certo é que sendo ou não de caráter penal, sua imposição pode levar a severas restrições à esfera de direitos do adolescente, inclusive culminando na restrição total da liberdade. Paralelamente, tal qual sucede com o processo penal que se desenvolve em face do imputável, há que se reconhecer o inegável constrangimento imposto àquele que se encontra na condição de representado e se vê sob ameaça de responsabilização. Em ambos os casos, tanto a posição de quem vem a sofrer a aplicação da medida socioeducativa quanto a posição de quem ainda é acusado por prática de ato infracional somente deveriam ser ocupadas por aqueles contra quem se disponha de provas ou indícios suficientes de autoria ou participação, conforme o standard probatório aplicável.

Se assim não for, viola-se a presunção de inocência e a proteção integral se acaba em um discurso vazio desprovido de sentido — basicamente o que se verificou em face do adolescente do caso mencionado.

Nada melhor para encerrar este texto do que as palavras do próprio relator, ministro Ribeiro Dantas, no julgamento do recurso [6] que resultou, por unanimidade, em sua devida absolvição: 

"Não é difícil imaginar como isso ocorreu no caso concreto. M B B é um jovem pobre, em situação de rua, sem educação formal e que se tornou pai na adolescência (e-STJ, fls. 40-42)  em outras palavras, na mais completa vulnerabilidade. Seu contato com o Estado, após se ver nessa difícil conjuntura, não foi com uma rede de seguridade social ou proteção à infância e à juventude, mas sim com o aparato punitivo, o qual realizou um trabalho de investigação extremamente deficiente em seu desfavor. Quando ouvido pelas autoridades estatais, a única parte do depoimento de M B B que recebeu crédito foi sua admissão de ter agredido a vítima; a justificativa da legítima defesa, por outro lado, foi completamente desconsiderada, mesmo na ausência de provas sobre qualquer elemento do crime e sem a apresentação de fundamentação decisória mínima para tanto."


[1] Originalmente desenvolvido por Miranda Fricker (Epistemic Injustice: Power and the Ethics of Knowing. New York: Oxford University Press, 2007) dentro de um contexto mais amplo da epistemologia social, o conceito de injustiça epistêmica tem importante aplicação no campo judicial para caracterizar algumas práticas verificadas no decorrer de um processo criminal, como já abordado neste espaço em diversas oportunidades: https://www.conjur.com.br/2020-mai-22/limite-penal-preciso-superar-injusticas-epistemicas-prova-testemunhal; https://www.conjur.com.br/2020-ago-14/limite-penal-construcao-investigacao-preliminar-epistemica; https://www.conjur.com.br/2021-abr-30/limite-penalpor-precisamos-bons-ouvintes-henry-tambem-foi-vitima-injustica#_ftn7; https://www.conjur.com.br/2021-mai-07/limite-penal-injustica-epistemica-sumico-meninos-belford-roxohttps://www.conjur.com.br/2021-ago-20/limite-penal-vitima-injustica-epistemica.

[2] Para um aprofundamento no tema, ver: RODRIGUES, Ellen. A Justiça Juvenil no Brasil e a responsabilidade penal do adolescente: rupturas, permanências e possibilidades. 1 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2017. ROSA, Alexandre Morais da; LOPES, Ana Christina Brito. Introdução crítica ao ato infracional: princípios e garantias constitucionais. 3. ed. Florianópolis: Emais, 2022. 316 p.

[3] ANTUNES, E. H.; BARBOSA, L.H.S.; PEREIRA, L. M. F. Psiquiatria, Loucura e Arte: Fragmentos da História Brasileira. São Paulo: Ed. USP, 2002.

[4] MATIDA, Janaina; MOSCATELLI, Lívia. Justiça como Humanidade na construção de uma investigação preliminar epistêmica. https://www.conjur.com.br/2020-ago-14/limite-penal-construcao-investigacao-preliminar-epistemica.

[5] ROSA, Alexandre Morais da; RUDOLFO, Fernanda Mambrini. A teoria da perda de uma chance probatória aplicada ao processo penal. Revista Brasileira de Direito, v. 13, nº 3, 2017, p. 462.

Autores

  • é doutora em Direito Processual pela Uerj, professora de Direito Processual Penal da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e autora do livro "A Prova no Tribunal do Júri", da Editora Lumen Juris.

  • é doutora em Direito Penal pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Professora adjunta de Direito Penal e Criminologia da Faculdade de Direito da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora).

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