Limite penal

Justiça como Humanidade na construção de uma investigação preliminar epistêmica

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14 de agosto de 2020, 9h00

Spacca
O tratamento legislativo finalmente conferido à cadeia de custódia tem efeitos importantíssimos. Em primeiro lugar, reconhecer que o raciocínio probatório deve ser realizado a partir de premissas cuja confiabilidade tenha sido confirmada é um passo importante para reduzir o risco de condenação de inocentes. Em segundo lugar, ao destacar a relevância da confiabilidade dos elementos probatórios, o instituto da cadeia de custódia acaba por chamar a atenção para a etapa de investigação preliminar. E é assim pela simples razão de que o elemento probatório que o juiz conhece hoje, na maior parte dos casos, foi um elemento informativo ontem; colhido/produzido pelos agentes responsáveis pela investigação. Com isso, não se está a desprezar a distinção entre investigação e processo, nem a diferença entre investigador e juiz1.

Mas se é objetivo do processo penal oferecer decisões judiciais justificadas — sejam absolvições, sejam condenações — é imprescindível que a investigação preliminar passe a refletir os compromissos garantistas2 e epistêmicos assumidos pelo processo penal constitucional e democrático. Dito de modo mais detalhado, se o que se pretende é que o juiz possa contar com um rico e confiável conjunto probatório, capaz de prestar suporte a um raciocínio probatório cujo desfecho se aproxime ao máximo da verdade dos fatos, então, não há sentido em se economizar reflexões sobre que tipo de investigação precisamos ter. Um processo penal epistemicamente compromissado não pode fechar os olhos para a fase que lhe antecede e prepara. Esse será o assunto do artigo de hoje.

Em escritos de 2013, Ho Hock Lai tratou de integrar ao ambiente do processo penal a noção de injustiça epistêmica originalmente formulada por Miranda Fricker. Segundo ela, as injustiças epistêmicas desdobram-se em injustiças testemunhais e injustiças hermenêuticas3. São injustiças testemunhais as que atacam o sujeito que pretende testemunhar a ocorrência de um fato, em razão de um preconceito relativo ao grupo social de que ele/ela faz parte. Por outro lado, são hermenêuticas as injustiças quando faltam ao sujeito categorias conceituais para interpretar os fatos por ele vivenciados e, como consequência, não consegue entender e tampouco expressar o dano que lhe foi infringido. O conceito está ausente na vida em sociedade e, consequentemente, falta aos indivíduos que pertencem a esta sociedade. Como exemplo do primeiro, Fricker cita a forma como a palavra de mulheres e de pessoas negras é tomada por interlocutores preconceituosos. Já para elucidar o segundo tipo de injustiça, Fricker faz referência ao deficit conceitual acerca da ‘depressão pós-parto’4: embora seja um fenômeno relativamente comum5, só a partir do desenvolvimento de uma agenda feminista deu-se ouvidos aos reclamos que antes eram interpretados como preguiça, individualismo, ou mesmo falta de amor da mãe ao seu filho.

Pois bem, a contribuição de Ho é no sentido de integrar as lentes propostas por Fricker ao processo penal em especial. O processo penal, enquanto contexto com pretensões de Justiça, deve aspirar à realização da Justiça como Humanidade (Justice as Humanity)6. Tratamento empático e consideração cuidadosa do outro numa atitude que supõe a capacidade de se colocar no lugar de outro ser humano e experimentar certa situação a partir da perspectiva do outro. De acordo com Ho, ser capaz de assumir a perspectiva de outro ser humano de modo algum implica deixar de punir. O tratamento empático não cega sobre a condenação quando necessária, senão que implica ao sujeito cuidados redobrados para não infringir danos a terceiros.

"O juiz/jurado que tem empatia mais provavelmente será paciente escutando o réu, não será desdenhoso de seu relato, e provavelmente enxergará as provas que lhe prestam corroboração; o mesmo juiz/jurado tenderá menos a deixar de enxergar as debilidades da hipótese acusatória"7.

Há um aspecto epistêmico na empatia, pois o sujeito que tem a capacidade de ser colocar no lugar do outro está em melhores condições de conhecer a verdade dos fatos. Os preconceitos e demais generalizações apressadas não foram bastante para lhe encurtarem a visão. Não por outra razão, no campo da produção das provas, a empatia funciona como pressuposto de tratamento justo aos sujeitos; sem a reprodução das mencionadas injustiças epistêmicas (testemunhal e hermenêutica), abre-se caminho para que os relatos de vítimas, testemunhas e acusados/investigados sejam adequadamente colhidos. Fica evidente, portanto, que o tratamento empático não se opõe à imparcialidade; antes, funciona como condição para o seu genuíno estabelecimento.

Ho menciona um caso decidido pela Suprema Corte de Singapura em que a acusada respondia pelo sequestro seguido pela causação da morte da filha de seu amante8. Os magistrados entendem que a acusada era, ela própria, vítima de constantes abusos por parte de seu amante e pai da criança. Contudo, o autor destaca que a capacidade dos magistrados de compreenderem a dor e a decepção da acusada não lhes cegou para os terríveis atos por ela cometidos. Após meticulosa análise das provas, sobreveio a sua inafastável condenação. Empatia não significa impunidade, mas considerar que se está a julgar, e eventualmente punir uma pessoa — e não o “homem médio”!9 —, com sua história, escolhas, erros, e, sobretudo, com sua humanidade.

Além disso, no que concerne à aplicação do standard probatório adequado ao processo penal, o olhar empático facilita a visualização de hipóteses alternativas as quais, efetivamente, podem representar dúvidas razoáveis à hipótese acusatória e que, do contrário, restariam relegadas ao esquecimento que a visão de túnel provê.

As reflexões de Fricker e Ho parecem mais do que adequadas aos contornos de um processo penal democrático. E, pelo que afirmamos no início deste artigo, convém que estas reflexões sejam aplicadas também à investigação preliminar. A investigação consiste em etapa cuja função é subsidiar o esclarecimento de um crime, a partir de um procedimento que proporcione uma reconstituição histórica aproximativa. Além disso, salienta-se que ela tanto deve ser preservadora, servindo de filtro para acusações infundadas, quanto preparatória, servindo a acautelar elementos informativos/probatórios de maneira a assegurar que sejam devidamente conhecidos pelo julgador10. Havendo-se considerado tudo isso, tem pouco sentido pensar que a Justiça como Humanidade, há pouco apresentada, deva ser construída apenas a partir do marco temporal da instauração do processo penal. Ao contrário, cabe-nos reconhecê-la enquanto norte regulativo que serve a iluminar a investigação criminal também.

Uma ida aos crimes contra a mulher deixa mais do que evidente a importância da fase investigatória. É preciso cuidar para que a mulher que procura ajuda policial seja recebida em condições que não reproduzam injustiças epistêmicas. Os agentes policiais reproduzem contra a mulher a lógica patriarcal e machista. No lugar da proteção, a mulher é alvo de injustiça testemunhal e hermenêutica. Testemunhal porque, em razão de ser mulher, seu relato é de pronto descredibilizado, não sendo colhido como se deve para que, em momento oportuno possa ter seu conteúdo valorado. Hermenêutica porque, nas situações em que pretende relatar abusos continuados, falta-lhe a escuta que poderia tornar mais fácil a expressão dos danos que precisa externar. É com prejulgamento, e não com acolhimento, que a mulher é recebida.

Sobre a injustiça testemunhal causada pela inadequada forma como as mulheres são tratadas em delegacias, vale destacar o relato de uma vítima de estupro coletivo:

"Começando por ele (delegado), tinha três homens dentro de uma sala. A sala era de vidro, todo mundo que passava via. Ele colocou na mesa as fotos e o vídeo. Expôs e falou: ‘me conta aí’. Só falou isso. Não me perguntou se eu estava bem, se eu tinha proteção, como eu estava. Só falou: ‘me conta aí’.

(…)

Ele perguntou se eu tinha o costume de fazer isso, se eu gostava de fazer isso (sexo com vários homens)"11.

Já num caso de violência doméstica, a mulher que sofria frequentes agressões do namorado, foi desestimulada a denunciá-lo pelo responsável pela investigação:

"Você tem certeza de que vai fazer isso (denunciar)? Essas marcas aí? Estão tão fraquinhas… até você chegar no IML (para fazer exame de corpo de delito), já vão ter desaparecido. Se você denunciar, vai acabar com a vida dele. Ele vai perder o emprego e não vai adiantar nada, porque vai ficar alguns dias preso, depois vai pagar fiança e vai sair ainda mais bravo com você"12.

Não há como se ignorar que o despreparo policial causa manifestas injustiças, capazes de produzir novos traumas. Além disso, de acordo com as pesquisas desenvolvidas pela psicologia do testemunho, há técnicas de entrevistas aptas a maximizar relatos verdadeiros13. Perguntas sugestivas14, formuladas em formato fechado e apresentadas de modo a interromper o relato de quem é entrevistado podem contribuir à produção de relatos sinceros, porém falsos. Neles, embora o/a entrevistado/a tenha a intenção de relatar exatamente o que lhe aconteceu, a forma como o ato é realizado contribui a resultados que podem não corresponder à verdade. Se o interesse pela verdade dos fatos é genuíno, então não faltam razões para o tratamento empático.

Mas ao contrário disso, como é de conhecimento geral os riscos elevados de prejulgamentos e recepções pouco acolhedoras, os números de feminicídio do último Mapa da Violência expressam a dura realidade de que, para estas mulheres, recorrer à polícia não foi uma opção. Ou, ao menos, não foi uma opção exitosa. Aliás, quando se considera o fator racial, será possível constatar que de 2003 a 2013 houve uma redução de 9,8% do número de homicídios de brancas (de 1747 a 1576) enquanto que, nos homicídios de mulheres negras houve aumento em 54,2% (1864 a 2875), considerando o mesmo período15. Daí o pertinente questionamento de Lívia Sant’Anna Vaz:

"O que acontece com a tão festejada Lei Maria da Penha — supostamente universal — que não consegue proteger mulheres negras, na mesma proporção que protege mulheres brancas?"16

São injustiças testemunhais e hermenêuticas que se sobrepõem na interseccionalidade; são números que poderiam ter sido evitados se, na soma de diversas estratégias e políticas públicas, tivesse sido oferecido às mulheres ambiente adequado a recebê-las, ouvi-las e a investigar o que por elas é relatado.

Tudo o que aqui já se disse pretendeu demonstrar a necessidade de um giro comportamental daqueles que atuam no processo penal como um todo e, em particular, também na fase preliminar investigatória. A Justiça como Humanidade é um ideal menos distante à medida em que a investigação se transforma em uma investigação que contempla a empatia como estratégia à uma adequada determinação dos fatos. Ora "se encontrar elementos que infirme a hipótese inicial, o investigador honesto deverá abandoná-la, formulando nova hipótese que seja apta a explicar os fatos, diante de outros elementos disponíveis"17. Não é demais recordar que um processo penal justo também depende do sujeito que inicia, desenvolve e conclui a fase preliminar. Ele deve se preocupar em elaborar seu raciocínio de modo provisório, testar as suas conjecturas iniciais, ter honestidade intelectual para abandonar a primeira hipótese e percorrer outros rumos investigativos. Nas palavras de Susan Haack, "se você está tentando encontrar evidências para sustentar uma conclusão precipitada, ao invés de seguir a evidência para onde ela leva, você não está realmente investigando"18.

Provocar esse giro comportamental deve estar na ordem do dia nas academias de polícia e agências investigadoras. De nossa parte, pretendemos continuar, em outros artigos e atividades, a contribuir à construção de uma investigação como peça fundamental à consolidação do processo penal que a democracia merece: uma investigação racional, epistemicamente desenhada a partir do tratamento empático; uma investigação norteada pelo ideal da Justiça como Humanidade.


1. Machado, 2020.

2. Aury Lopes Jr chama atenção à “instrumentalidade garantista”. Lopes Jr., 2001, p. 41.

3. Fricker, 2007, pp. 4-6.

4. Fricker, 2007, p. 149

5. No Brasil, a depressão pós-parto acomete mais de 1 a cada 4 mulheres. Para mais informações, ver: http://www.blog.saude.gov.br/index.php/50905-depressao-pos-parto-acomete-mais-de-25-das-maes-no-brasil

6. Ho, 2013, p. 250.

7. Ho, 2013, p 253. (tradução livre)

8. PP v. Che Cheong Hin Constance.

9. Para ver mais sobre a pertinente crítica à ficção do “homem médio”, veja-se Cerqueira, 2020.

10. Mendes de Almeida, 1973.

11. Acesso por: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-36414224

12. https://www.bbc.com/portuguese/brasil-36414224

13. Feix, Pergher, 2010.

14. Loftus; Zanni, 1975.

15. Mapa da violência, 2015. pp. 29-32.

16. Vaz, 2020.

17. Badaró, 2019, p. 148.

18. Haack, 2009, p. 368 (trad. livre). Evidence and Inquiry: a pragmatist reconstruction of epistemology. New York: Prometheus Books, 2009. p. 368. Tradução livre.


Referências bibliográficas:

– Badaró, Gustavo. Epistemologia judiciária e prova penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.

– Cerqueira, Marina. “A quem serve o paradigma do ‘homem médio’?”. Conjur, 2020. Acesso por: https://www.conjur.com.br/2020-jul-31/marina-cerqueira-quem-serve-paradigma-homem-medio

– Feix, Leandro da Fonte; Pergher, Giovani Kuckartz. Memória em julgamento: técnicas de entrevista para minimizar as falsas memórias. In Falsas memórias: fundamentos científicos e suas aplicações (Lilian Milnitsky Stein org.). Porto Alegre: ArtMed Editora, 2010.

– Haack, Susan. Evidence and Inquiry: a pragmatist reconstruction of epistemology. New York: Prometheus Books, 2009. p. 368. Tradução livre

– Ho, Hock Lai. Virtuous Deliberation on the Criminal Verdict. In Law, Virtue and Justice (Amalia Amaya e Ho Hock Lai org.). Portland: Hart Publishing. 2013.

– Loftus, Elizabeth; Zanni, Guido. Eyewitness testimony: The influence of the wording of a question. Bulletin of the Psychonomic Society, vol, 5(1), 1975.

– Lopes Jr., Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.

– Marcondes Machado, Leonardo. Investigação criminal exige base epistemológica e fundamento democrático. Conjur, 2020. Acesso por: https://www.conjur.com.br/2020-abr-07/academia-policia-investigacao-criminal-exige-base-epistemologica-democratica

– Mendes de Almeida, Joaquim Canuto. Princípios fundamentais do processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973.

– Vaz, Lívia Sant’Anna. Eu, mulher negra, não sou sujeito universal! O que acontece com a tão festejada Lei Maria da Penha – supostamente universal? Acesso por: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/eu-mulher-negra-nao-sou-sujeito-universal-12082020

Autores

  • é professora de direito probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile), doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e presta consultoria jurídica na temática da prova penal.

  • é advogada criminalista, mestranda em Direito Processual na Universidade de São Paulo e aluna do master em raciocínio probatório pela Universitat de Girona (Espanha).

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