Limite Penal

Há injustiça epistêmica no sumiço dos meninos de Belford Roxo?

Autor

  • Janaina Matida

    é professora de Direito Probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile) doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e consultora jurídica em temática da prova penal.

7 de maio de 2021, 14h20

Na "Limite Penal" da semana passada, tivemos a oportunidade de ler as reflexões trazidas por Carolina Castelliano e Rachel Herdy a respeito da impactante morte do menino Henry, de apenas quatro anos. As autoras analisaram o caso a partir das lentes conceituais da injustiça epistêmica de tipo testemunhal. Na coluna desta semana, vou utilizar o mesmo conceito para tratar do caso de Lucas, Alexandre e Fernando Henrique, respectivamente crianças de oito, dez e 11 anos de idade, desaparecidas há mais de quatro meses na região metropolitana do Rio de Janeiro [1]. À diferença de Henry, nada indica que os meninos de Belford Roxo tenham sido vítimas diretas de injustiça epistêmica testemunhal, mas o que pretendo demonstrar é que essa categoria conceitual pode ser central à compreensão dos desdobramentos investigativos de mais esta tragédia envolvendo crianças.

Spacca
Tal como já tratado por outros artigos desta coluna [2], uma injustiça epistêmica ocorre quando se causa um prejuízo a alguém especificamente em sua capacidade como sujeito de conhecimento (knower). Deixa-se de considerar a capacidade do sujeito de conhecer adequadamente fatos e, consequentemente, sua aptidão para oferecer informações corretas sobre eles. Miranda Fricker explica que, em seu desdobramento testemunhal, a injustiça epistêmica resulta na redução da credibilidade que é conferida a alguém em razão de preconceitos[3]. Não se lhe oferece escuta séria por conta de algum preconceito — consciente ou inconsciente contra o grupo do qual o sujeito faz parte.

A análise do caso de Henry a partir da injustiça testemunhal é pertinente. Os numerosos relatos oferecidos pelo menino foram, um a um, desconsiderados por seus interlocutores, a despeito, inclusive, das evidências físicas que chegaram a lhes emprestar suporte. Foi o fator etário que contribuiu à redução da credibilidade do relato de Henry [4]: crianças fantasiam, inventam histórias, constroem um mundo lúdico de modo a conseguir justificar suas vontades mais imediatas. Amparados em generalizações como estas, a disposição dos adultos que cercavam Henry para aceitá-lo como um knower foi prejudicada. O que veio depois disso, todos nós já sabemos. Em um interregno temporal de cerca de dois meses, a reunião de justificados esforços investigativos culminou na quinta-feira (6/5) no oferecimento da denúncia pelo Ministério Público do vereador Jairinho e de sua companheira, Monique Medeiros, padrasto e mãe da vítima, respectivamente. De acordo com as investigações, o menino morreu em razão de agressões do padrasto combinadas à omissão da mãe. Uma reconstrução feita pela polícia aponta 23 lesões por "ação violenta" no dia da morte.

A riqueza de detalhes do caso de Henry contrasta com a falta de norte nas investigações do desaparecimento de Lucas, Alexandre e Fernando Henrique. Já são mais de quatro meses, 120 dias e 120 noites em que seus familiares se perguntam por seu paradeiro. Onde estão Lucas, Alexandre e Fernando Henrique? Enquanto recebemos boletins diários sobre a evolução do caso de Henry, mães, pais, avós, tios e primos dos meninos de Belford Roxo acharam por bem arregaçar as mangas e ir à procura dos seus, tamanha a necessidade que sentiram de compensar o abandono estatal de suas dores. Em entrevista, Tatiana, mãe de Fernando Henrique, disse: "Naquele dia em que fomos na delegacia, se tivessem puxado as câmeras, ido atrás das crianças, tenho certeza de que teríamos uma resposta".

Segundo o relato dela e de familiares das outras vítimas, a orientação dada pelos policiais foi de que voltassem após transcorridas 24 horas, em manifesto descumprimento do artigo 202, inciso XI, §2º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, que ordena que, feita a notificação dos órgãos competentes, "a investigação do desaparecimento de crianças ou adolescentes será realizada imediatamente".

Omissão semelhante foi causa da condenação do Estado mexicano pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no que ficou conhecido como "caso do Campo Algodonero". Nele, entre os meses de setembro e outubro de 2001, três jovens mulheres Ivette González, Laura Berenice e Esmeralda Herrera desapareceram na Ciudad de Juárez. Quando procurada pelas famílias das vítimas, a polícia mexicana também se negou a instaurar imediatamente as buscas, pedindo que retornassem 48 horas depois.

"[…] No fue infrecuente que la Policía le dijera a un familiar que tratara de informar la desaparición de una niña que volviera a las 48 horas, siendo evidente que había cosas que investigar. Tanto los representantes del Estado como de entidades no estatales señalaron que las autoridades de Ciudad de Juárez solían desechar las denuncias iniciales, manifestando que la víctima habría salido con un novio y no tardaría en volver al hogar" [5].

Seus corpos foram encontrados somente em novembro daquele ano, com mutilações e indícios de violência sexual. A falta de uma atuação tempestiva da polícia prejudicou, de forma considerável, a conformação de um conjunto informativo/probatório capaz de trazer respostas satisfatórias. Seus corpos já estavam em avançado estado de decomposição, e a cena do crime (um campo de algodão) só chegou a ser isolada meses depois da comissão daqueles feminicídios.

Proponho ao leitor que recuperemos a noção de injustiça testemunhal apresentada no início deste artigo. A injustiça testemunhal cometida contra os relatos dos familiares das vítimas impediu a adequada determinação dos fatos nos feminicídios mexicanos. Neles, os relatos dos familiares de Yvette, Laura e Esmeralda não foram tratados com a seriedade e empatia devidas por conta de preconceitos de gênero ("mulheres direitas não saem sozinhas", "mulheres jovens não dão notícias a seus familiares porque estão com seus namorados" etc.).

Nosso interesse, enquanto sociedade democrática, de contarmos com aparato policial compatível com as promessas constitucionais de não discriminação, exige-nos atenção quanto à hipótese de injustiça testemunhal contra os familiares de Lucas, Alexandre e Fernando Henrique. Apesar da negativa policial nesse sentido, familiares e amigos insistem que as investigações não foram imediatamente instauradas pelas autoridades competentes. É preocupante, para se dizer o mínimo, a hipótese de que agentes da lei possam ter se omitido a prestar o acolhimento necessário a familiares desesperados diante do sumiço de crianças; é mais preocupante ainda a hipótese de que tamanha falta de atenção possa se dever a estereótipos de raça e classe. Essa não pode ser, insisto, a atuação oferecida pela polícia em nenhum caso. Do ponto de vista epistêmico, a injustiça testemunhal distancia-nos da correta determinação dos fatos o passar do tempo aumenta o perímetro de busca e diminui a probabilidade de êxitos nas buscas por informações úteis a alcançar o paradeiro das crianças. Do ponto de vista ético, a injustiça testemunhal põe em xeque a efetividade da dignidade humana, constitucionalmente assegurada a todos.

Como se o cenário não fosse difícil o bastante, a sensação de descaso institucional por parte dos familiares dos três meninos de Belford Roxo foi maximizada diante da zelosa atuação oferecida por todos os órgãos públicos encarregados de solucionar a morte de Henry. A higidez e a celeridade que o Estado demonstrou e demonstra, desde o início, ser capaz de reunir no caso em questão podem ser justamente os ingredientes faltantes na apuração do desaparecimento de Lucas, Alexandre e Fernando Henrique. Com essas reflexões, não busco diminuir a atenção conferida à violenta morte de Henry. Ela merece nosso olhar e requer disposição séria para a adoção estratégias que impeçam, ao máximo, a ocorrência de novos casos como esse. A mesma atenção, visibilidade, sensibilidade e empatia são devidas às crianças e famílias de Belford Roxo.

"Se não vi o corpo, para mim eles estão vivos. Quero meu filho vivo ou morto. Se estiver morto, vamos fazer um enterro digno". É preciso ouvir Tatiana.

P.S: Enquanto escrevia este texto (na véspera), tivemos a estarrecedora notícia da operação policial já batizada como Chacina do Jacarezinho. A correta apuração das violações de direitos humanos ali cometidas dependerá da nossa capacidade de assegurar que a sua investigação seja um ambiente de justiça epistêmica testemunhal na colheita de relatos dos moradores daquela comunidade. Que a determinação dos fatos neste caso siga rumo distinto do tomado na Chacina do Fallet (2005).

 


[1]. Após três meses, investigação sobre sumiço de meninos em Belford Roxo (RJ) patina, Folha de São Paulo, 17/04/2021, acesso por: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/04/apos-tres-meses-investigacao-sobre-sumico-de-meninos-em-belford-roxo-rj-patina.shtml.

[3]. Fricker, Miranda. “Epistemic Injustice: Power & Ethics of Knowing”. New York: Oxford University Press, 2007, p. 1.

[4]. Castelliano, Carolina; Herdy, Rachel. “Por que precisamos de bons ouvintes? Henry foi vítima de ‘injustiça epistêmica’”, Conjur, 2021: “A credibilidade do testemunho de crianças é situação controversa, na medida em que diferentes pontos de vista divergem sobre o seu grau de maturidade e racionalidade. Entretanto, no caso aqui tratado, a questão que deve ser pontuada é o quanto o testemunho de Henry era consistente e estava cercado das demais evidências que demonstravam que suas palavras eram merecedoras de crédito: o fato de ele ter sido filmado mancando; as mensagens enviadas pela babá relatando as reclamações de Henry para a mãe; a própria rotina suspeita de permanência do padrasto com a criança em um quarto trancado. Houve um mal ajustamento da credibilidade do testemunho de Henry, uma criança, com as evidências existentes, o que é característico de uma situação de injustiça testemunhal.

[5]. Sentencia Caso González y otras (“Campo Algodonero”) Vs. México, 2009, p. 43. Acesso por: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_205_esp.pdf.

Autores

  • é professora de direito probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile), doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e presta consultoria jurídica na temática da prova penal.

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