Opinião

O modelo do legislador unitário e a tramitação da Medida Provisória nº 1.154

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30 de maio de 2023, 11h27

As análises e notícias sobre as alterações promovidas pelo Congresso à Medida Provisória nº 1.154/2023, que estabelece a estrutura ministerial do governo Lula, parecem seguir o mesmo tom: os parlamentares teriam "esvaziado" e "depenado" alguns ministérios.

Nessa ótica de análise, a legislação seria produzida por dois atores monolíticos: de um lado, o Executivo, o governo, ou simplesmente o presidente Lula; de outro, o Congresso.

Se houve alteração na legislação proposta pelo governo através de uma medida provisória, então é de se presumir um jogo de forças entre esses dois atores, onde o Congresso sagrou-se vencedor em pontos cruciais.

De certa forma, é natural tomar atores coletivos  tais como governos, empresas ou países  como se fossem atores individuais. Assim, eles teriam objetivos e preferências claras, lutando dentro do jogo político para alcançá-las.

A legislação é encarada como o resultado da interação, seja de conflito, seja de cooperação, entre esses dois atores. Por isso é tão comum, em todos os governos, a manchete "Congresso impõe derrota ao governo", ou algo que coloque em evidência a interação entre governo e parlamento.

Tomar o Executivo como um ator racional individual é compreensível, uma vez que esse poder é chefiado por uma única autoridade. A situação se torna complexa quando é o parlamento, entrecortado por choques de preferências e ideologias distintas, que é tomado dessa forma. Trata-se, evidentemente, de uma grande simplificação.

A interpretação coaduna-se com a visão clássica, que, desde Rousseau, tende a enxergar na lei uma identidade entre a vontade da maioria parlamentar e a vontade geral da nação. Fruto de uma dialética racional entre atores que buscam o interesse geral, a lei surge como o produto acabado e refinado de um ator coletivo racional chamado parlamento. 

Vislumbrar a política e a legislação como fruto da interação entre dois atores  governo e parlamento  pode ser uma simplificação útil em muitos casos. No tocante à estrutura ministerial veiculada pela MP nº 1.154/2023, entretanto, a simplificação cria  uma armadilha intelectual para analistas e jornalistas. Isso porque muitos receberam perplexos a votação na comissão mista que alterou diversas atribuições ministeriais. Como um relator, líderes partidários e parlamentares governistas atuaram em conjunto para alterar um texto proposto pelo governo que todos defendem?

A partir desse modelo conceitual simplificado, sobram apenas algumas explicações para justificar o resultado. A mais alardeada delas foi que o Congresso, mais especificamente o centrão, "impôs uma derrota ao governo". 

Ricardo Stuckert
Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, presidente Lula e Arthur Lira, da Câmara
Ricardo Stuckert

Mas se a simplificação da realidade política é útil para explicar boa parte das movimentações e barganhas nessa seara, ela não pode servir como uma baliza intransponível; para muitas outras situações, deve-se considerar uma moldura interpretativa mais ampla.

É nesse ponto que a ciência política ajuda a expandir a visão muitas vezes limitada do direito, do processo legislativo e mesmo do noticiário político.

Processos decisórios coletivos
Em obra que se tornou referência nos estudos sobre processos decisórios, os professores Graham Allison e Philip Zelikow [1] analisaram "os 13 dias que abalaram o mundo" durante a crise dos mísseis em Cuba, em 1962. O principal insight dos autores é que enxergamos a realidade a partir de modelos conceituais pré-concebidos, e isso interfere na forma como analisamos fatos e apresentamos explicações.

Se utilizarmos o modelo do ator racional unitário, então enxergamos Estados e União Soviética como potências antagônicas, cada qual com interesses próprios na região, lutando por influência global. A pergunta passa a ser: por que os EUA agiram de tal ou qual forma?

Esse é exatamente o modelo conceitual utilizado no nosso caso. Governo e Congresso são atores racionais e monolíticos, que agem perseguindo interesses próprios. Se houve alteração da estrutura ministerial na tramitação da MP 1.154/2023, o pressuposto da análise é que há um ator individual muito forte e poderoso dentro do Congresso, que consegue, sozinho, mobilizar toda a instituição para perseguir seus próprios interesses, impondo derrotas ao outro jogador, que é o governo.

Mas os professores Allison e Zelikow apresentam um modelo mais refinado de análise, que supera a simplificação excessiva. Cada um desses atores coletivos é, na verdade, formado por uma variedade de atores individuais, os quais, por sua vez, travam sucessivas barganhas em circuitos formados por jogadores posicionados dentro da hierarquia do governo.

A partir desse modelo, nem mesmo o Executivo pode ser visto como um ator individual, apesar do imenso poder conferido ao presidente da República. Sobre esse ponto, Richard Neustadt [2] possui uma obra que se tornou clássica na literatura ao separar com análises empíricas o poder formal do presidente de seu poder na prática. Neustadt mostra que, sim, o Presidente tem vantagens de barganha, mas isso não é suficiente para lhe dar o curso de ação do governo. Ele precisa convencer outros jogadores dentro da burocracia governamental, como ministros e assessores, que jogam o mesmo jogo da política.

Decisões de grupo, assim, são multicausais e imprevisíveis, e não podem ser tomadas como parte do mesmo processo das decisões individuais. Elas dependem de uma série de fatores: quem são os jogadores? Quais são seus interesses? Quais são suas posições? Quais são as regras do jogo? Qual a forma de votação? Há prazos?

Jogos de poder e a estrutura ministerial
O modelo político de Alisson e Zelikow ajuda a compreender a complexidade de decisões coletivas, tomadas por múltiplos atores. É útil para entender a formação das leis, e, em específico, a tramitação da MP nº 1.154.

Em algumas matérias, pode-se inferir que a maioria parlamentar tenha uma visão oposta ao do governo, e a alteração na legislação pode ser vista como a vitória de um ator sobre outro. No caso da estrutura ministerial, entretanto, são os próprios ministérios, com seus ministros e burocracias internas, que lutam desde a edição da MP para ampliar suas áreas de competência. Ligados a eles, toda uma rede de atores estatais e não estatais buscam, igualmente, aumentar o prestígio e a visibilidade de seus campos de atuação. O caldeirão de interesses distintos se torna ainda mais complexo quando se adicionam os parlamentares.

Qualquer olhada desatenta no ambiente de votação da MP na comissão mista ou nos plenários serviria para compreender os múltiplos jogos de barganha travados para alterar o texto.

Assessorias parlamentares de diversos ministérios. Assessores diretos de ministros. Emissários da Casa Civil buscando arbitrar conflitos. Servidores de entidades da administração indireta. Lobistas de certas categorias. Lideranças partidárias. 

Transportar competências de um ministério para outro não é simplesmente um jogo com dois atores e regras triviais, onde se vislumbra apenas o movimento do Congresso contra o governo. Pelo contrário, trata-se de uma arena decisória com múltiplos jogos sendo travados ao mesmo tempo por atores diversos.

A complexidade ainda é reforçada pois há rodadas seguintes de negociação e barganha: a tramitação nos plenários, a sanção, a possibilidade de derrubada de vetos.

Por óbvio, descrever um processo decisório coletivo, com múltiplos jogos e atores dentro do escopo de uma notícia jornalística pode não ser adequado ao meio. Mas deve-se admitir que a análise do resultado resta prejudicada pela simplificação excessiva. Afinal, para falar sobre lei e política muitas vezes deve-se ir além do refrão "fácil, extremamente fácil, pra você e eu e todo mundo cantar juntos".

 


[1] ALLISON,  Graham;  ZELIKOW, Philip. Essence of decision. Explaining the Cuban missile crisis. New York: Longman, 1999.

[2] NEUSTADT, Richard. Presidential Power and the Modern Presidents: the politics of leadership from Roosevelt to Reagan. New York: Free Press, 1990.

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