Limites legais para a revogação do processo licitatório
12 de maio de 2023, 8h00
Em virtude, dentre outros, dos princípios da impessoalidade, da probidade, da vinculação ao instrumento convocatório e da segurança jurídica, previstos no artigo 5º, caput, da atual Lei de Licitações e Contratos Administrativos, Lei nº 14.133/2021, a possibilidade, concedida à administração pública, no exercício do seu poder discricionário, de revogar licitações encontra limites legais expressos.
Para a revogação de processos licitatórios, anote-se que a Lei nº 8.666/1993 também exigia 1) a comprovação de fato superveniente, pertinente e suficiente a justificar o desfazimento licitatório, bem assim 2) a observância das garantias do contraditório e da ampla defesa, conforme disciplinado no artigo 49, caput e § 3o.
De tal modo, é plenamente percebível que a Lei nº 14.133/2021 não trouxe completa inovação.
É que a possibilidade de revogação de licitação, ainda que inserida no âmbito da conveniência e da oportunidade da administração, somente poderá ser perpetrada se houver a ocorrência de fato posterior à publicação do edital e, ainda assim, desde que não previsível.
Exemplificativamente, se a administração municipal instaura licitação para construção de praças e, após publicado edital, durante a fase de julgamento das propostas, é surpreendida com tremores de terra, os quais colocam em risco a própria habitação dos moradores, restará autorizada, em tais circunstâncias, a revogação da licitação, considerando que não haverá mais interesse público em prosseguir no objeto licitado.
Noutro giro, se a administração municipal deflagra licitação para serviços de vigilância e segurança patrimonial de apenas metade das suas unidades escolares, não contemplando — por conveniência e oportunidade — a outra metade, não restará autorizada, nesta segunda hipótese, a revogação da licitação em curso, independentemente de se constatar, em revisão do dimensionamento do objeto licitado, que a inclusão de todo o objeto resultaria em contratação mais eficiente.
De tal sorte, considerando que eventual necessidade de inclusão de todo objeto licitado já era previsível por parte da administração, os licitantes não podem ser prejudicados pelo questionável e, possivelmente falho, planejamento da administração pública.
Para Marçal Justen Filho, interpretando a mens legis do artigo 49, caput, da Lei 8.666/1993, reproduzida no artigo 71, § 2º, da Lei nº 14.133/2021, não é admitido "que a Administração julgue, posteriormente, que era inconveniente precisamente a mesma situação que fora reputada conveniente em momento pretérito" [1].
Não por acaso, dispõe o artigo 20, caput, da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (Lindb), que nenhuma decisão administrativa deverá ser tomada de forma juridicamente abstrata, alheia, portanto, às suas consequências concretas.
Deveras, se não houve alteração (relevante) no contexto fático pertinente ao processo licitatório instaurado, a administração não poderá revogá-lo com o pretexto de que o critério administrativo (redimensionamento do objeto licitado para inclusão de escolas já existentes) deve ser revisto. "Não basta, pois, a alegação de mudança de critério administrativo, tão comum em nossos costumes políticos. É indispensável a demonstração de que fatos posteriores à abertura da licitação desaconselham seu prosseguimento, justificando sua revogação", conforme adverte Helly Lopes Meirelles [2].
Desafortunadamente, como nem sempre os motivos de conveniência e de oportunidade são republicanos, o disposto no artigo 49, caput, da Lei 8.666/1993, reproduzido no artigo 71, § 2º, da Lei nº 14.133/2021, serve de filtro aos atos arbitrários, transvestidos de discricionários.
No que se refere ao princípio da segurança jurídica, do qual deriva a confiança legítima, anote-se que à administração não é permitido "desistir" de uma licitação, frustrando as justas expectativas dos licitantes, designadamente daqueles declarados vencedores, sem que ocorra a devida motivação da revogação. É dizer, conquanto a administração goze de diversos privilégios, não lhe é assegurado direito de arrependimento, como se potestativa fosse a revogação.
"A confiança é ponderada com a salvaguarda do interesse geral, com a proporcionalidade, com o respeito ao ato próprio, à segurança jurídica, ao Estado de Direito, apresentando-se como decorrência desses dois últimos, e, no âmbito do direito, é um valor jurídico que o ordenamento deve preservar, sobremaneira nas relações mantidas com o próprio Poder Público" [3].
Diante, portanto, de arbitrária revogação da licitação, cuja motivação não se lastreia em fato superveniente, é dizer, fato posterior à publicação do edital e que não era previsível pela administração, devem os licitantes buscar meios judiciais que proporcionem a anulação da revogação e, consequentemente, a retomada do curso da licitação.
Não sendo mais possível a retomada do curso da licitação, é possível que aos licitantes haja reparação por eventuais danos, inclusive indenização por perda de oportunidade de participar de outra licitação.
[1] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei 8.666/1993. – 18. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, pág. 1140.
[2] MEIRELLES, Helly Lopes. Licitação e contrato administrativo. – 15. ed. atualizada por José Emmanuel Burle Filho; Carla Rosado Burle; e Luís Fernando Pereira Franchini. – São Paulo: Editora Malheiros, 2010, pág. 226.
[3] SOUSA, Guilherme Carvalho e. A responsabilidade do Estado e o princípio da confiança legítima: a experiência para o direito brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, pág. 79.
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