Opinião

Os métodos de Carl Schmitt na 13ª Vara de Curitiba e na 8ª Turma do TRF-4

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26 de junho de 2023, 19h42

Métodos análogos à tortura foram empregados na "lava jato". Projetada na carceragem da Polícia Federal em Curitiba a Guantanamo Bay Detention Camp brasileira. Prisões ilegais. Deslocavam preventivamente em processos sumários, presos sob violação de direitos básicos, tratei disso exaustivamente em artigo nesta ConJur.

Ainda em 2014, após restrição a banho de sol a que cliente era submetido pela força tarefa  ferindo princípio da dignidade humana, garantido no artigo 1º da Constituição —, impetramos Habeas Corpus em paralelo com defesa do advogado Sobral Pinto, que a fim de melhorar condições carcerárias, invocara decreto de proteção de animais (nº 24.645/1934) na defesa de Harry Berger.

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Carl Schmitt e oficial militar alemão
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Indeferido o pedido cautelar por suposta "falta de elementos concretos para demonstrar violação à dignidade do paciente", eis que o juiz Eduardo Fernando Appio concede o direito a banho de sol e higiênico, fato noticiado pela ConJur.

No mesmo tema vale ressaltar que a procurada federal Áurea Lustosa, ao se manifestar sobre a restrição ao banho de sol ao qual foi submetido o investigado pela "lava jato", reconheceu os maus tratos a ele infligidos [1].

Por inúmeras vezes, o então juiz Sérgio Moro e o seu aliado Deltan Dallagnol afirmaram que decisões proferidas no âmbito "lava jato" eram reiteradamente mantidas pelas instâncias superiores, como o TRF-4 e Superior Tribunal de Justiça. Permitindo entrever a assunção do papel do Tribunal Regional Federal da 4ª Região de fiadores, de "garantias fidejussórias" às decisões ilegais do juiz suspeito.

De outro lado, o Superior Tribunal de Justiça deixara de analisar, de fato, também, inúmeros recursos das defesas e apelos sobre a série de abusos cometidos na condução das persecuções penais no âmbito da operação. Possivelmente constrangidos pela turba punitivista e a imprensa acrítica, que vociferava a versão do Ministério Público como se notícia fosse.

Quando a Corte Especial do TRF-4 deparou-se com o pedido de processo disciplinar nº 0003021-32.2016.4.04.8000/RS, para julgar a conduta de Moro na divulgação de grampo entre a presidente Dilma Rousseff e o então ex-presidente Lula após término do prazo autorizado por decisão judicial, ilegal por conseguinte; o desembargador Rômulo Pizzolatti fundamentava voto no sentido que Moro não respondesse ao processo apesar de afronta a lei posta.

Visto que enfrentava "caso inédito no direito brasileiro" e que portanto "o sigilo das comunicações telefônicas (Constituição, artigo 5º, XII) poderia ser suplantado excepcionalmente pelo interesse geral na "administração da justiça e aplicação da lei penal". Justificando no ineditismo da situação  apesar de se tratar de investigação de eventual crime comum  o abuso do juiz, e para tal cita ainda em seu voto explicação do jurista indelével, Eros Roberto Grau, sobre o Estado de Exceção [2].

A menção no relatório e o voto da corregedoria do TRF-4 "a ameaça permanente à continuidade das investigações", que tornaria inaplicável a lei, e aplicável a teoria do Estado de Exceção (não punindo Moro, mesmo ocorrida in casu clara violação do artigo 35, I, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional — LC nº 35, de 1979) e artigos 25 e 12 do Código de Ética da Magistratura Nacional, lembra não somente a ameaça comunista que justificara o golpe de Estado de 1964 e sua "revolução", levadas a cabo pelo regime militar. E que se ressalte, encontrou a resistência no voto do desembargador Rogério Favretto, que na ocasião entendeu não "ser adequada a invocação da teoria do Estado de Exceção" para o caso[3].

Mas a ideia de Estado de Exceção de Carl Schmitt, teórico autoritário de Plettenberg, foi invocada explicitamente pelo juiz corregedor do TRF-4 no processo disciplinar nº 0003021-32.2016.4.04.8000/RS, concedendo poder de sobrepor a lei a Moro, encontra respaldo na definição de soberania de Schmitt, para quem "soberano é quem decide sobre o estado de exceção" e "se coloca fora da ordem jurídica normalmente vigente, porém a ela pertence, pois ele é competente para a decisão sobre se a constituição pode ser suspensa" [4].

Para Schmitt, teórico do Estado de Exceção, e o TRF-4 durante a "lava jato", em situações anormais, o Estado poderia suspender direitos fundamentais a partir de jus belli específico, declarando tal suspensão contra ameaça interna, a fim de resguardar a unidade e manutenção da ordem vigente.

O jurista que contribuiu intelectualmente para ascensão do Terceiro Reich é ainda hoje estudado como pensador do totalitarismo, mas dificilmente espera-se vê-lo em autos de um processo disciplinar, para justificar atitude que o próprio juiz viria a reconhecer ilegalidade pouco tempo depois.

O TRF-4 decidiu pela não punição, em razão do caráter soberano do ato, dado ineditismo da situação, conferindo poder de decidir sobre a exceção  de forma irrepreensível —, suspendendo a ordem jurídica a fim de criar situação que tornasse possível novamente a aplicação da regra.

Este discurso autoritário de aplicação do direito é muito bem pesquisado pelo professor de Direito Constitucional e colega Pedro Serrano, que leciona: "o reconhecimento da figura do inimigo é a razão para se instaurar a exceção por meio da soberania". "Suspendem-se os direitos diante da necessidade de confrontar o inimigo e de defender a sobrevivência do Estado." [5]

Muito bem. Atualmente Eduardo Appio, novo juiz da 13ª Vara de Curitiba, a pedido do desembargador Marcelo Malucelli, em representação à Corregedoria do TRF-4, foi afastado por suposta ligação a filho de Malucelli, fora do horário de expediente, em número de telefone não identificado para, em nome de suposto servidor judiciário, questionar irregularidades relativas ao plano de saúde do advogado, ainda quando dependente de seu pai. Há perícia divulgada na imprensa afirmando não ser o juiz no telefonema.

Acerca do afastamento de Appio, bastaria citar trecho em decisão proferida no dia 22/5/2023, do desembargador federal Celso Kipper, que sintetiza situação em voto à Corte Especial da Corregedoria do Tribunal ao afirmar "prematuro o afastamento do juiz de suas atividades judicantes, antes de sequer lhe ser propiciada a oportunidade de defesa preliminar (…)".

A inamovibilidade é direito garantido aos magistrados [6]. Evidentemente existem sanções que implicam afastamento da jurisdição, previstas na Lei Orgânica da Magistratura e Regimento Interno dos Tribunais. Entretanto a gravidade das condutas, risco de prejuízo à apuração, bem como indícios efetivos de conduta e autoria de Appio, não justificavam o afastamento do juiz. Senão tornaram explícito o casuísmo que deixa entrever interesses, estes sim, de embaraço à atividade de revisão e controle que promovia.

O afastamento cautelar solicitado pelo corregedor e deferido pela Corte Especial, sem oitiva prévia, afronta não só o artigo 5º, inciso LIV, LV da CF, mas o regimento interno do TRF-4, que define que, após concluída apuração preliminar  não sendo caso de arquivamento de plano —, o magistrado será notificado a prestar informações (artigo 67, §3º, RITRF4), o que não ocorreu.

Deve nos causar espanto a disparidade entre as posturas da corregedoria frente a possíveis desvios de seus magistrados. O denodo com que puniram o juiz Appio vis-à-vis a verdadeira coautoria durante a "lava jato", sob comando de Moro, pelo mesmo tribunal.

A decisão recente do TRF-4 que ataca a jurisdição, sem apontar o nexo entre a tutela cautelar adotada e parâmetros definidos pela lei para aplicação da medida excepcional, contém não só óbvia desproporção, mas desvela viés do tribunal. Não apenas de Moro, considerado suspeito pelo Supremo Tribunal Federal em relação a Lula.

Neste diapasão, impõe saudar a recente decisão do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), proferida pelo ministro Luis Felipe Salomão, de instauro da "correição extraordinária na 13º Vara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba/PR e dos Gabinetes dos Desembargadores Integrantes da 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região".

Com condão de apurar fatos determinados relativos a deficiências nos serviços judiciais e serventias. E que apuradas deverão ser imediatamente comunicadas ao Ministério Público (artigo 54 e artigo 58, da Res.  nº 67/2009).

Encerrada no dia 2 de junho [7], a correição determinada pelo CNJ impôs inspeção in loco do corregedor ministro Salomão, que desembarcou em Curitiba no último dia 16 para aprofundar investigações no sobre possíveis desvios ocorridos na 13º Vara Federal e na 8ª Turma do TRF-4, este com sede em Porto Alegre. Havendo já suspeita sobre os depósitos judiciais, no valor de R$ 1 bilhão [8].

Foi solicitado o compartilhamento das provas da "vaza jato" para utilizar material na inspeção [9]; solicitou-se ainda acesso a uma reclamação relacionada ao operador financeiro Tacla Duran, que em março afirmou ser vítima de um suposto esquema de extorsão envolvendo o atual senador Sergio Moro.

Podem ser solicitadas quebras de sigilos bancários, caso seja verificada necessidade. Pretende-se avaliar também como foram conduzidos acordos de cooperação internacional, colaboração premiadas de investigados e acordos de leniência celebrados por empresas.

Que tal, como no passado obscuro do regime militar, foram muitas vezes colhidas sob tortura. Como no caso do cliente que defendi, privado de banhos de sol.

Mais do que infelicitar as semelhanças entre os abusos da ditadura e da "lava jato", e raiz totalitária de justificação de seu modus operandi, que remete a ascensão do nazismo [10] (i.e, à ideia de que a ordem jurídica pode ser suspensa para liquidação de ameaça interna, em nome de certa unidade do corpo político, justificando seletividade e desproporção contra "inimigos"), devemos aprender com o passado para dar novo desfecho às tais recidivas autoritárias.

Durante o período da redemocratização brasileira foram anistiados àqueles que violaram direitos humanos, perseguiram, torturaram e assassinaram no durante 21 anos de autoritarismo; e ao fazê-lo deixamos intactas estruturas que colocaram nossa democracia em risco — como evidenciou o fatídico dia da tentativa de golpe do 8 de janeiro.

É preciso promover verdadeiro aprendizado enquanto sociedade em relação aos abusos da "lava jato". Tais como atos de afronta a democracia criaram condições para o ataque às instituições, em Brasília, mas certamente todas investidas para esvaziar o sentido de nossa Constituição no período recente, devem ser investigados e autores responsabilizados. Para que jamais se repitam.

 


[1] Conforme Habeas Corpus apresentado ao TRF4 nº 5008025-74.2014.404.0000, com mais detalhes no livro de Fernando Fernandes, Geopolítica da Intervenção (pg. 115 e 298. São Paulo: Geração, 2020)

[2] "A 'exceção' é o caso que não cabe no âmbito da 'normalidade' abrangida pela norma geral. A norma geral deixaria de ser geral se a contemplasse. Da 'exceção' não se encontra alusão ao discurso da ordem jurídica vigente. Define-se como tal justamente por não ter sido descrita nos textos escritos que compõem essa ordem. É como se nesses textos de direito positivo não existissem palavras que tornassem viável sua descrição. Por isso dizemos que a 'exceção' está no direito, ainda que não se encontre nos textos normativos do direito positivo". GRAU, E. R. Por que tenho medo dos juízes (a interpretação/aplicação do direito e os princípios). 6ª ed. refundida do Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 124-25).

[3] FERNANDES, Fernando. Democracia e Crise em homenagem a Pedro Serrano, Autonomia Literária: São Paulo, 2020.  pg. 84

[4] Schmitt, Carl. Teologia Política. Belo Horizonte, Del Rey, 2006, p.8.

[5] SERRANO, Autoritarismo e golpes na América Latina. São Paulo: Alameda, 2016, p. 96.

[6] Conforme versa o artiho 25 da LC 35/1970. Ressalvadas as exceções expressamente previstas pela Constituição, que em seu artigo 95, inciso II, também prevê a inamovibilidade, por interesse público na forma do artigo 93, inciso III, ou seja, nas promoções por antiguidade ou merecimento.

[7] Conforme PORTARIA N. 32, DE 30 DE MAIO DE 2023

[10] Vale recordar que o advogado Roberto Batochio denunciou esta semelhança em 2016 durante as audiências realizadas na 13ª Vara Federal de Curitiba: https://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/advogado-de-lula-insinua-que-moro-e-nazista-e-que-curitiba-e-provinciana-5xwy950n7s9buk1mwpyon9v4d/

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