Direito Civil Atual

Incapacidade civil e caso Schreber (parte 1)

Autor

  • Abrahan Lincoln Dorea Silva

    é advogado e mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP (Largo de São Francisco) com dupla graduação em Direito pela USP e pela Université de Lyon ex-bolsista da Fapesp e membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo.

19 de junho de 2023, 15h11

Em duas colunas publicadas em 2021, foram abordadas as reformas francesas do sistema de incapacidade [1] [2], que se caracterizaram por um processo de contínua flexibilização e ampliação do escalonamento das medidas protetivas aos maiores protegidos (majeurs protégés).

As reformas permitiram que se tivesse maior flexibilidade na proteção das pessoas com transtornos mentais, abrangendo os casos que precisam de uma proteção mais rígida e os casos que precisam de uma proteção mais tenra, ou seja, casos em que a afetação do discernimento atrapalha, mas não impossibilita a vida civil da pessoa com deficiência.

ConJur
A reforma no Direito Civil brasileiro feita pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD — Lei nº 13.146/2015), em sentido inverso, excluiu a possibilidade de proteção das pessoas com deficiência do rol dos incapazes (artigos 3º e 4º, CC), por entender que "a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa" (artigo 6º, EPD), enquanto manteve a possibilidade de curatela das pessoas com deficiência (artigo 1.775-A, CC). Uma interpretação — dentre as várias possíveis — é a de que há ainda a interdição relativa das pessoas com transtornos mentais, com fundamento no artigos 1.767, inciso I, e 4º, inciso III, do Código Civil [3]Com isso, reduziu-se o escalonamento da proteção às pessoas com transtornos mentais no Brasil, que agora se limita à hipótese menos protetiva de incapacidade civil.

O problema da falta de escalonamento deixa os transtornos mentais graves — a exemplo das "psicoses em geral, toxicomanias graves, alcoolismo crônico, oligofrenia moderada e grave, degenerações senis etc" — desprotegidos, já que, "tendo o perito concluído por uma forma grave de transtorno mental, com prognóstico desfavorável, não há outro caminho que não o da incapacidade".

Conforme Guido Arturo Palomba, a interdição relativa deveria ser aplicada somente a transtornos mais leves, quando "o indivíduo examinado, pródigo ou não, é um fronteiriço, portador de perturbação da saúde mental ou portador de desenvolvimento mental retardado que não tem capacidade psicológica para o exercício de certos atos da vida civil" [4].

Dentre as patologias graves, pode-se mencionar a esquizofrenia (espécie de psicose [5]), transtorno mental que afeta o discernimento, provocando alucinações, delírios, discurso desorganizado, comportamento grosseiramente desorganizado ou catatônico e sintomas negativos (i.e. expressão emocional diminuída ou avoila) [6].

Para a crítica da ausência de escalonamento de hipóteses protetivas às pessoas com transtornos mentais poderiam ser analisados diversos casos de esquizofrenia, na literatura e na vida. A exemplo do caso de John Forbes Nash, ganhador de prêmio Nobel em Ciências Econômicas, que tinha esquizofrenia paranoide. Ou mesmo o caso de Chuck McGill, personagem ficcional — da premiada série de televisão Better Call Saul — que foi acometido no fim da vida por "perturbações cenestésicas", crendo ter o que ele mesmo chamou de "hipersensitividade eletromagnética", o que poderia dar fundamento a um diagnóstico de esquizofrenia tardia.

No entanto, será analisado o caso de Daniel Paul Schreber, que é "o louco mais famoso da história da psiquiatria e da psicanálise" [7], por ter relatado seu adoecimento em autobiografia de nome "memórias de um doente dos nervos", a qual foi estudada por Sigmund Freud [8].

Nesta coluna, haverá somente uma descrição do caso, deixando-se a análise para a parte 2 da coluna.

O caso Schreber
Daniel Paul Schreber, doravante Schreber, teve uma carreira meteórica no Direito, como jurista importante e funcionário do Ministério da Justiça do Reino da Saxônia. Tendo por primeiro cargo escrivão-adjunto, passou a auditor da Corte de Apelação, assessor do Tribunal, conselheiro da Corte de Apelação, vice-presidente do Tribunal Regional de Chemnitz, presidente do Tribunal Regional de Freiburg e, por último e mais importante, juiz-presidente da Corte de Apelação (Senatspräsident) de Dresden [9].

Durante a vida, Schreber foi submetido a três relevantes internações em razão de surtos psicóticos: uma em 1884, outra em 1893 e, por fim, a última em 1907.

Na primeira vez, foi internado na clínica para doenças nervosas da Universidade de Leipzig, dirigida então pelo professor Paul Emil Flechsig, uma das maiores autoridades da Psiquiatria e da Neurologia da época. Nessa ocasião, apesar de pouco abordar a questão no livro, ele foi acometido de manifestações delirantes não sistematizadas e duas tentativas de suicídio.

Dentre os sintomas, queixava-se de ter perdido de 15 a 20 quilos de peso (enquanto a balança contrariamente apontava um ganho de dois quilos), convencendo-se de que os médicos o enganam intencionalmente; estava certo que teria um ataque do coração logo (hipocondria); suspeitava que sua esposa fosse mandada para longe e não voltaria; sentia-se fraco ao ponto de ter que ser carregado; pediu para ser fotografado seis vezes e, em 26 de maio daquele ano, pediu que tirassem a sua "última foto", suspeitando-se que fosse morrer [10].

Schreber acusa que este primeiro colapso se deu em razão de sua candidatura ao Reichstag, momento em que era diretor do Tribunal de Província em Chemmitz. Ficou internado somente por seis meses e recebeu alta [11].

Porém, em junho de 1893, Schreber recebeu visita do ministro da Justiça da Saxônia, o qual, pessoalmente, avisou-lhe que ele seria nomeado para o cargo de juiz-presidente da Corte de Apelação (Senatspräsident) de Dresden, cargo irrecusável sob pena de caracterização do delito de lesa-majestade [12].

No intervalo entre a nomeação para a presidência da corte de apelação e a posse, teve Schreber um sonho, que marca, conforme Freud, a exteriorização do sintoma que o leva à paranoia, em que teria realizados condutas reputadas por ele como "femininas", embora fosse ele homem [13].

O posto era assaz elevado para a sua idade à época da nomeação (51 anos). Os esforços para atender bem as expectativas e exigências do novo posto e ser bem apreciado por seus colegas levaram Schreber ao colapso mental, sendo novamente internado e diagnosticado com dementia paranoides (hoje, esquizofrenia), em 21 de novembro de 1893 (segunda internação) [14].

De 1893 a 1899, Schreber viveu um "adoecimento" profundo, afirmando que falava com Deus e os demônios zombam dele, gritava durante a noite, alimentava-se de modo irregular (ora comia em excesso, ora recusava alimento), fazia caretas para o sol, escrevia cartas em italiano e assinava como "Paul Höllenfürst" (Paul, Príncipe dos Infernos), acreditava estar se transformando em mulher, dentre vários outros sintomas. Sua agitação e ausência de controle fez com que ficasse trancafiado em uma cela-forte no sanatório por anos, isolado dos demais [15].

Somente em dezembro de 1898, voltou a dormir no quarto, começando a expor suas ideias de forma organizada em 1899. Com a volta dos pensamentos organizados, não desapareceram as alucinações e delírios. Pelo contrário, Schreber passou a estruturá-los de forma sistemática. Schreber criou uma realidade completamente nova em sua mente, o que fez com todos os eventos que sofria tivessem uma racionalidade, ainda que fossem vozes e visões de pessoas que desapareciam, uma nova concepção sobre a divindade e uma visão de que os deuses se relacionavam com tudo que há no universo por conexões nervosas estruturadas pelos raios solares.

O principal e mais famoso sintoma é a emasculação, que é o delírio de que Deus, através dos raios solares, estava o transformando em mulher. Todo esse universo é sistematizado no livro Memória de um Doente dos Nervos, relato autobiográfico de Schreber [16].

Com o retorno do pensamento organizado — e paralelamente a escrita de sua autobiografia —, Schreber passou a denunciar suposta irregularidade de sua curatela, que tinha sido estabelecida em 1894. Ocupou-se pessoalmente de todos os passos de seu pedido de levantamento da interdição, para que fosse reconhecida sua capacidade civil, tendo sentença desfavorável em 1900, a qual foi revertida em apelação em 14 de julho de 1902. O livro foi escrito entre 1900 e 1902 e foi anexado ao seu processo de levantamento da interdição [17].

Levantada a interdição e com alta do sanatório, Schreber insiste e, a contragosto da família, publica as suas memórias pela editora O. Mutze, de Leipzig, em 1903. No mesmo ano, adotou uma criança órfã de 13 anos de idade. Embora estivesse com mais de 60 anos, Schreber demonstrava grande vitalidade física e intelectual: "lê muito, interessa-se por todas as manifestações da cultura, participa de campeonatos de xadrez e emite, em caráter privado, pareceres inteiramente adequados sobre questões legais".

Os sinais exteriores da esquizofrenia desapareceram quase completamente. Perguntado sobre a doença, dizia que "as vozes nunca o deixaram, mas que agora soam como um zumbido incompreensível e contínuo, localizado num ponto da parte posterior da cabeça, por onde tem a sensação de ser puxado por um fio" [18].

Após morte de sua mãe e doença de sua esposa, Schreber sofre sua última internação no sanatório de Dösen, próximo a Leipzig, em 27 de novembro 1907. Passa a ter sintomas catatônicos de imobilidade, fala coisas ininteligíveis, fica acamado e mal se alimenta por anos, morrendo em 14 de abril de 1911 [19].

Na parte 2 da coluna, será feita uma análise das implicações do caso na incapacidade civil com fundamento na psiquiatria forense.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

Continua na parte 2

 


[3] "Na prática, é possível que pacientes psiquiátricos graves sejam interditados de acordo com o inciso I [do artigo 1.767, CC], equivalente ao inciso III do artigo 4º do Código Civil, que faz menção às pessoas que 'por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade'. Quem atua em saúde mental sabe que em vários casos graves o que falta aos pacientes é justamente a capacidade de expressar sua vontade. Por mais que se queira valorizar a autonomia das pessoas, não é responsável nem justo – sequer humano – deixar que pacientes bipolares em mania se desfaçam de seus patrimônios, ou que pacientes demenciados graves decidam sobre sua herança, tampouco que pacientes psicóticos sem crítica determinem os caminhos de seu tratamento. Esse é outro aspecto do Estatuto da Pessoa com Deficiência que não encontra plena aplicação na prática". (BARROS, Daniel Martins de. Introdução à Psiquiatria Forense. Porto Alegre: Artmed, 2019. p. 53-54)

[4] PALOMBA, Guido Arturo. Tratado de Psiquiatria Forense Civil e Penal. São Paulo: Atheneu Editora, 2003. p. 218.

[5] ELKIS, Helio; RIBEIRO, Rafael Bernardon; CORDEIRO, Quirino; MARAFANTI, Ísis. Transtornos psicóticos e esquizofrenia. In: BARROS, Daniel Martins de; CASTELLANA, Gustavo Bonini.  Psiquiatria Forense: interfaces jurídicas, éticas e clínicas. 2.ed. Porto Alegre: Artmed, 2020. p. 228.

[6] American Psychiatric Association. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-5). Tradução Maria Inês Corrêa Nascimento. 5. ed. Porto Alegre: Armed, 2014. p. 87.

[7] CARONE, Marilene. Da loucura de prestígio ao prestígio da loucura. In: SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. Tradução e organização de Marilene Carone. 1. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. p. 9.

[8] FREUD, Sigmund. Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia: o caso Schreber. In: artigos sobre técnicas e outros textos (1911-1913). Tradução e notas de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

[9] CARONE, Marilene. Da loucura de prestígio ao prestígio da loucura. In: SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. p. 10-11.

[10] CARONE, Marilene. Da loucura de prestígio ao prestígio da loucura. In: SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. p. 12-13.

[11] SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. p. 54.

[12] CARONE, Marilene. Da loucura de prestígio ao prestígio da loucura. In: SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. p. 11.

[13] SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. p. 45. Comenta Freud: "Se recordarmos o sonho tido no período de incubação da doença, antes da mudança para Dresden, ficará evidente que o delírio da transformação em mulher não é mais que a realização do teor daquele sonho. Na época ele se revoltou contra esse sonho, com masculina indignação, e também pelejou inicialmente contra sua efetivação durante a enfermidade, vendo a transformação em mulher como um ultraje que lhe destinavam com intenções hostis. Mas houve um momento (novembro de 1895) em que começou a se reconciliar com tal transformação e a vinculou a elevadas intenções por parte de Deus. 'Desde então inscrevi em minha bandeira, com plena consciência, o cultivo da feminilidade'" (FREUD, Sigmund. Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia: o caso Schreber. In: artigos sobre técnicas e outros textos (1911-1913). p. 45).

[14] CARONE, Marilene. Da loucura de prestígio ao prestígio da loucura. In: SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. p. 11.

[15] CARONE, Marilene. Da loucura de prestígio ao prestígio da loucura. In: SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. p. 12-13.

[16] SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. passim.

[17] CARONE, Marilene. Da loucura de prestígio ao prestígio da loucura. In: SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. p. 13.

[18] CARONE, Marilene. Da loucura de prestígio ao prestígio da loucura. In: SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. p. 13-14.

[19] CARONE, Marilene. Da loucura de prestígio ao prestígio da loucura. In: SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. p. 14-15.

Autores

  • é advogado e mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP (Largo de São Francisco), com dupla graduação em Direito pela USP e pela Université de Lyon, ex-bolsista da Fapesp e membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo.

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