Direito Civil Atual

As reformas sobre a incapacidade dos maiores no Direito Civil francês (Parte 1)

Autor

  • Abrahan Lincoln Dorea Silva

    é advogado e mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP (Largo de São Francisco) com dupla graduação em Direito pela USP e pela Université de Lyon ex-bolsista da Fapesp e membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo.

29 de novembro de 2021, 14h28

Assim como no Direito brasileiro com a Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015), no Direito Civil francês existiram reformulações recentes sobre o sistema de incapacidade. O tom das reformas recentes na França também foi o problema da inclusão. Nas reformas, o legislador tentou "conciliar a cidadania da pessoa com deficiência, de uma parte, e a proteção jurídica através da aplicação de medidas que limitam a liberdade da pessoa de outra parte" [1].

ConJur
No Direito francês, a proteção jurídica é dividida em dois grandes tipos: a proteção dos menores e a proteção dos maiores. É menor protegido "o indivíduo de um ou outro sexo que não tem ainda a idade de 18 anos completa" [2]. O maior de 18 anos goza, conforme o Article 414 do Code Civil, de presunção de capacidade, de forma que, em regra, a pessoa pode exercer todos os direitos dos quais goza. Todavia, essa presunção cede quando se percebe uma alteração das faculdades pessoais do maior que impedem a expressão de sua vontade, conforme dispõe Article 425 do Code Civil [3], o que impõe o estabelecimento de medidas de proteção.

Interessa a esta coluna a proteção dos maiores. A matéria se manteve intocada desde a publicação do Code Civil, mas foi reformada em 1968 por proposta elaborada por Jean Carbonnier [4], que tinha por intento a adaptação do direito dos incapazes à evolução da família, em especial em razão da emancipação jurídica da mulher casada. Mas também serviu a reforma para a adaptação do Code Civil à evolução da medicina psiquiátrica e ao aumento da duração da vida humana [5].

A reforma de 1968 criou três regimes de proteção judicial distintos: o de tutela, o de curatela e o de salvaguarda de justiça [6]. Em reforma de 2007, proposta pelo lyonnais Dominique Perben (como Garde des Sceaux) em 2004, houve a criação do instituto do mandado de proteção futura. Interessante destacar que desde a reforma de 2007 o nome "incapazes" (incapables) foi substituído por "protegidos" (protégés), considerando uma possível conotação pejorativa [7]. Por fim, a reforma de 2015 promovida pela Ordonnance nº 2015-1288 criou o instituto da habilitação familiar (habilitation familiale).

Para análise pormenorizada das referidas medidas, na presente coluna será apresentado o atual estado dos institutos existentes antes das reformas de 2007 e 2015, ou seja, a tutela, a curatela e a salvaguarda de justiça. Na segunda parte, serão analisadas as novas medidas protetivas: o mandado de proteção futura e a habilitação familiar.

No Direito francês a tutela faz parte do grande rol de medidas protetivas aos maiores. A tutela é um regime rígido, o maior degrau de proteção jurídica aos maiores, pois é obrigatória quando o transtorno metal de tal monta que a representação é imprescindível. A curatela se estabelece quando o maior precisará ser protegido em alguns atos da vida civil, mas a tutela seria medida rígida demais, bastando-se a assistência [8].

Os principais efeitos, tanto da tutela quanto da curatela, foram mantidos com a reforma de 2007. Nesse sentido, enquanto a curatela promove a assistência e o controle de alguns atos importantes da vida civil, a tutela tem por efeito a representação do maior em todos os atos da vida civil. Uma especificidade dos institutos em análise é a necessidade de um prazo para a medida, que terá duração máxima de cinco anos conforme Article 441 do Code Civil  novidade da reforma de 2007. Com o exaurimento do prazo, pode o juiz renovar a tutela e a curatela por igual período, conforme Article 442, al. 1er, do Code Civil. Todavia, caso não se tenha melhora substancial na saúde mental do protegido, pode o juiz renovar a medida por uma duração maior, nos termos do Article 442, al. 2, do Code Civil, contanto que não se ultrapasse 20 anos. Essa decisão deve ser motivada com base em diagnóstico de um dos médicos listados por procurador da república, nos termos do Article 431 do Code Civil[9].

A salvaguarda de justiça, por sua vez, é um instituto do direito francês que não tem qualquer paralelo com os institutos brasileiros. Ela é uma medida provisória e não reduz a capacidade, mas protege o deficiente facilitando a obtenção da invalidade de atos específicos. Assim, os atos feitos por uma pessoa em salvaguarda de justiça são em princípio válidos, mas suscetíveis de anulação.

Com efeito, a salvaguarda deve ser adotada quando há alterações nas faculdades mentais ou corporais de um maior, com impacto em seu discernimento e/ou sua capacidade de realizar suas tarefas do dia a dia, e uma medida temporária parece suficiente; ou quando a representação do maior é necessária para a produção de atos jurídicos determinados. Além disso, a medida pode ser estabelecida enquanto o processo de curatela ou tutela (medidas mais protetivas) não chegou a uma conclusão [10].

Por disposição legal, a salvaguarda caduca automaticamente com o passar de um ano. Ela é renovável por mais um, mediante demonstração por laudo médico da necessidade de que a medida seja mantida (certificat médical circonstancié). Todavia, em caso de melhora, pode o juiz, em decisão especialmente motivada e com apoio em laudo médico, renovar a medida por tempo mais longo [11]. A medida também pode ser extinta pelo juiz, por decisão motivada, em caso de melhora notável do deficiente, bem como quando se estabelece uma medida mais protetiva, como a curatela ou a tutela [12].

Na próxima coluna, serão analisados os institutos do mandado de proteção futura e da habilitação familiar, originados das recentes reformas no Direito francês.

* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

 


[1] FRICOTTÉ, Lisiane. Droit des personnes handicapées. 1. ed. Paris : Wolters Kluwer, 2016. p. 265.

[2] LAURROUMET, Christian. Droit civil: introduction à l’etude du droit privé. Paris : Economica, 1984. v.1. p. 205 e ss.

[3] DELFOSSE, Alain; BAILLON-WIRTZ, Nathalie. La reforme du droit des majeurs protégés: loi nº 2007-308 du 5 mars 2007. Paris: LexisNexis, 2009. p. 9

[4] Antes da reforma, em lei de 1966, foi criada a figura da tutela às prestações sociais adultas, que não tem paralelo com o direito brasileiro e não é relevante para o sistema de incapacidades, pois diz respeito à gerência das prestações sociais em proveito do beneficiário, não a uma proteção do beneficiário em si (BRETON, Sébastien, L’actuel système de protection juridique des majeurs et les réformes envisagées, Recherches familiales. v. 1, nº 1, p. 5-8, 2004. p. 6.), tampouco é matéria juscivilística, constando no Code de la securité socile (DELFOSSE, Alain; BAILLON-WIRTZ, Nathalie, La reforme du droit des majeurs protégés: loi nº 2007-308 du 5 mars 2007. p.1.).

[5] BATTEUR, Anick. Droit des personnes, des familles et des majeurs protégées. 9. ed. Paris : Lextenso éditions, 2017. p. 501.

[6]  BRETON, Sébastien, L’actuel système de protection juridique des majeurs et les réformes envisagées, Recherches familiales. p. 5-6.

[7] BATTEUR, Anick. Droit des personnes, des familles et des majeurs protégées. p. 502 e ss

[8] MASSIP, Jacques. Tutelle des mineurs et protection juridique des majeurs. Paris : Defrénois, Lextenso éditions, 2009. p. 298.

[9] DELFOSSE, Alain; BAILLON-WIRTZ, Nathalie. La reforme du droit des majeurs protégés: Loi nº 2007-308 du 5 mars 2007. p. 54-56

[10] STASI, Laetitia. Droit civil : personnes, incapacités, famille. p. 105-106.

[11] FRICOTTÉ, Lisiane. Droit des personnes handicapées. p. 269.

[12] STASI, Laetitia. Droit civil : personnes, incapacités, famille. p. 107-108.

Autores

  • é advogado e mestrando em direito civil pela Faculdade de Direito da USP (Largo de São Francisco), com dupla graduação em direito pela USP e pela Université de Lyon, ex-bolsista da FAPESP e membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo.

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