Direito Civil Atual

As reformas sobre a incapacidade dos maiores no Direito Civil francês (Parte 2)

Autor

  • Abrahan Lincoln Dorea Silva

    é advogado e mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP (Largo de São Francisco) com dupla graduação em Direito pela USP e pela Université de Lyon ex-bolsista da Fapesp e membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo.

6 de dezembro de 2021, 14h10

Dando continuidade à análise das recentes reformas do sistema de incapacidade do maior na França, serão abordados os institutos do mandato de proteção futura e da habilitação familiar.

ConJur
O mandato de proteção futura é a única medida protetiva convencional prevista no Code Civil. O instituto tem a finalidade de proteção da pessoa e de seus interesses patrimoniais. Nesse sentido, dispõe o article 481, al. 1, do Code Civil que o mandato tem efeito "quando o mandante não pode mais perseguir sozinho os seus interesses". A medida de proteção é destinada tanto aos maiores quanto aos menores, havendo dois tipos de mandato de proteção futura: 1) o mandato de proteção futura por si mesmo (article 477, al. 1 e 2, Code Civil); 2) o mandato de proteção futura por outrem (article 477, al. 3, Code Civil) [1].

O primeiro se dá quando o maior pactua, pelo instrumento, que uma ou mais pessoas se encarregarão de sua proteção quando houver impossibilidade de manifestação da vontade nos termos do article 425 do Code Cvil. O mandado não poderá ser constituído se a pessoa estiver sendo protegida, no momento da manifestação da vontade, por tutela ou habilitação familiar, conforme article 477, al. 1, Code Civil. Essa restrição não afeta, entretanto, o maior curatelado, que poderá pactuar mandato de proteção futura com a assistência de seu curador, conforme article 477, al. 2, Code Civil [2].

Nos termos do article 477, al. 3, Code Civil, o mandato de proteção futura por outem, por sua vez, é realizado pelos pais para a proteção do filho menor ou maior. Nesse sentido, há duas hipóteses: a) quando o filho é menor e os pais exercem ainda poder familiar (autorité parentale); b) quando o filho é maior, mas os pais têm encargo afetivo e material dele. Além disso, o mandato de proteção futura não afeta a capacidade de agir. Nesse sentido, todos os atos são, em princípio, válidos, mas suscetíveis de anulação. Na constituição do mandato, poderão ser pormenorizados quais bens serão afetados. A título de exemplo, o mandato de proteção futura pode garantir poderes de cuidado a um único imóvel, a um carro ou a uma empresa [3].

Conforme explicitado na primeira coluna [4], uma novidade da reforma de 2007 é a especificação de prazos para as medidas protetivas. Entretanto, a reformação que instituiu o mandato de proteção futura no Direito francês não estipulou à medida nenhum prazo. Ademais, as causas que dão fim ao mandato de proteção futura estão enumeradas no article 483 do Code Civil [5].

Em resumo, o mandato de proteção futura se assemelha muito mais ao mandato do que a uma medida protetiva, embora esteja elencada no seu rol. Seria possível classificá-lo como um mandato condicionado ocorrência de qualquer evento do article 425 do Code Civil.

A reforma de 2015 (Ordonnance nº 2015-1288 de 15 de outubro de 2015) criou nova medida de proteção jurídica do maior, a habilitação familiar (habilitation familiale), cujo propósito é desencarregar os juízes da proteção, deixando-a para as famílias, de forma que a intervenção judicial se dá somente na instauração da medida. Com efeito, se uma pessoa está impossibilitada de seguir seus interesses, em condições como as descritas no article 425 do Code Civil, pode o juiz de tutelas habilitar uma ou mais pessoas entre os descendentes, ascendentes, colaterais, cônjuge, companheiro ou concubino para representar o maior, a fim de salvaguardar seus interesses, nos termos do article 491-1. Todavia, a alteração mental deve ser suficientemente grave para justificar uma medida de proteção.

O juiz de tutelas irá decidir quem será o habilitado à proteção do maior, levando em consideração se há ligação próxima ou manifesto interesse à proteção do habilitado, conforme article 494-4, al. 2, Code Civil. Além disso, a incapacidade de fato na habilitação familiar é variável. Diferentemente da tutela e da curatela, que são medidas excessivamente formais, na habilitação podem ser delimitados os efeitos protetivos em face a objetos ou atos em específicos, podendo atingir, se necessário, todos os atos da vida civil. Poderá, assim, se limitar a um imóvel específico, a um veículo ou à realização de um ato. Há, todavia, um único ato que o maior protegido não pode fazer em hipótese alguma: pactuar um mandato de proteção futura.

O representante do maior por habilitação familiar é mais livre que o tutor. Ele pode, por exemplo, gerir livremente as contas bancárias do maior (article 494-7, Code Civil), podendo também, sem autorização, vender bens, ceder quotas e ações em sociedades, constituir seguros etc. Ele não precisa prestar conta ao juiz de tutela todos os anos, como tem de fazer os tutores. Somente alguns atos precisam de autorização do juiz de tutelas: a pessoa habilitada não pode fazer disposições a título gratuito, como doações, pedir a confirmação um ato, bem como fazer atos pelos quais decorreriam conflitos de interesse. Além disso, como ocorrem com as demais medidas judiciais, a legislação prevê duração máxima de dez da habilitação familiar, podendo haver renovação pelo mesmo prazo [6].

Como um critério geral para a seleção de qualquer medida protetiva no Direito francês, o juiz de tutelas deverá observar três princípios norteadores do sistema de incapacidade: necessidade, subsidiariedade e proporcionalidade. Assim, só se podem estabelecer medidas quando há necessidade, ou seja, quando as condições mentais ou físicas da pessoa impõem uma proteção jurídica. Além disso, só é aplicável uma medida quando ela não pode ser substituída suficientemente por uma medida mais branda. Por fim, o princípio da proporcionalidade indica que a medida adotada deve ser proporcional ao nível de incapacidade da pessoa protegida e adaptada às condições particulares e necessidade [7].

Com cinco medidas protetivas, o sistema francês consegue ter maior flexibilidade com os casos mais simples, mas prevê forma protetiva mais rígida para quando seja necessário afastar a pessoa com transtornos mentais de toda a vida jurídica (através da medida judicial da tutela). Assim, nota-se um processo de individualização das medidas protetivas, cada vez mais adequáveis à situação de cada pessoa.

Nota-se que o legislador francês, apesar de flexibilizar o sistema e permitir medidas mais brandas que garantem maior adaptabilidade, não excluiu as medidas mais rígidas do sistema. A legislação francesa, assim, promoveu inclusão sem desconsiderar a proteção que por vezes é fundamental. Caminho diferente do que tomou o legislador brasileiro, com a admissão, pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, de que todos as pessoas com deficiência são plenamente capazes para todos os atos da vida civil. Qual legislador foi mais assertivo? A história e a jurisprudência constatarão!

* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).


[1] DELFOSSE, Alain; BAILLON-WIRTZ, Nathalie. La reforme du droit des majeurs protégés: Loi nº 2007-308 du 5 mars 2007. p. 167, 174 e 178.

[2] Importante destacar que a faculdade de designar um mandatário não se confunde com a possibilidade que toda pessoa capaz tem de designar previamente um curador ou tutor, caso uma medida judicial de proteção jurídica possa ser pronunciada. Nesse sentido: DELFOSSE, Alain; BAILLON-WIRTZ, Nathalie. La reforme du droit des majeurs protégés: Loi nº 2007-308 du 5 mars 2007. p. 167.

[3] DELFOSSE, Alain; BAILLON-WIRTZ, Nathalie. La reforme du droit des majeurs protégés: Loi nº 2007-308 du 5 mars 2007. p. 168 e 178-181.

[5] "Le mandat mis à exécution prend fin par:
1° Le rétablissement des facultés personnelles de l'intéressé constaté à la demande du mandant ou du mandataire, dans les formes prévues à l'article 481;
2° Le décès de la personne protégée ou son placement en curatelle ou en tutelle, sauf décision contraire du juge qui ouvre la mesure ;
3° Le décès du mandataire, son placement sous une mesure de protection ou sa déconfiture;
4° Sa révocation prononcée par le juge des tutelles à la demande de tout intéressé, lorsqu'il s'avère que les conditions prévues par l'article 425 ne sont pas réunies, ou lorsque l'exécution du mandat est de nature à porter atteinte aux intérêts du mandant.
Le juge peut également suspendre les effets du mandat pour le temps d'une mesure de sauvegarde de justice." (Article 483, Code Civil)

[6] Para fundamentar os três últimos parágrafos, ver: BATTEUR, Annick. Droit des personnes, des familles et des majeurs protégés. 9ª ed. Paris : Lextenso éditions, 2017. p. 562 a 564

[7] BRETON, Sébastien, L’actuel système de protection juridique des majeurs et les réformes envisagées. Recherches familiales. v. 1, nº 1, p. 5-8, 2004. p. 8. Os princípios mencionados estão dispostos no Code Civil, notando-os no Article 440, no qual se dispõe que: "La curatelle n’est prononcée que s’il est étaabli que la sauvegarde de justice ne peut assurer une protection suffisante. La tutelle n’est prononcée que s’il est établi que ni la sauvegarde de justice, ni la curatelle ne peuvent assurer une protection suffisante". No caso da habilitação familiar, em especial, o Code Civil prevê que a medida só é aplicável quando a proteção não é suficientemente garantida pelas regras de direito comum de representação, as de deveres e direitos dos cônjuges e as regras de regimes matrimoniais, em particular as regras previstas nos Articles 217, 219, 1426 e 1429, ou por estipulação do mandato de proteção futura concluído pelo interessado, conforme prevê o Article 494-2 do Code Civil.

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  • é advogado e mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP (Largo de São Francisco), com dupla graduação em Direito pela USP e pela Université de Lyon, ex-bolsista da Fapesp e membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo.

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