Ambiente Jurídico

Organismos vivos de todas as origens: nós humanos precisamos das outras espécies?

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10 de junho de 2023, 8h00

Para que se resolva um problema, é preciso primeiro ter um problema. Talvez por isso, por a nossa sociedade não ver a biodiversidade como um problema, os últimos 150 anos, com enorme aceleração nos últimos 100 anos, causamos uma degradação sem precedentes no planeta e colocamos em risco a nossa própria sobrevivência.

A preocupação maior com as mudanças climáticas, que nos atinge diretamente, parece deixar em segundo plano o desaparecimento das espécies, que parece não nos atingir. Não damos atenção às quase inexistentes hoje revoadas de pássaros, à redução da fauna e da flora, ao desaparecimento dos insetos e dos pequenos animais bem descritos em Primavera Silenciosa, um dos primeiros livros que enfrentaram a degradação causada pela exploração humana e pelos pesticidas nas planícies norte americanas [1].

Essa é a pergunta subjacente, inconsciente talvez, em conversas de que participei e em manifestações favoráveis à prevalência da economia em discussões sobre a sustentabilidade: nós humanos precisamos das outras espécies? No que nos afeta o desaparecimento do urso polar no Ártico, das baleias nos oceanos, do gorila na África? Ou dos lagartos e das abelhas? Há um problema a resolver?

Spacca
A definição mais conhecida de biodiversidade foi definida pela Convenção sobre a Diversidade Biológica, aprovada no Brasil durante a Rio-92. Assim, a biodiversidade significa "a variabilidade de organismos vivos de todas as origens; compreendendo, dentre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem parte; compreendendo ainda a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de ecossistemas". Ou, em uma definição mais extensa, diversidade biológica ou biodiversidade é a variedade e variabilidade de organismos vivos em uma determinada área; no século 20 o termo passou a referir-se à riqueza de diferentes categorias biológicas, à variedade de ambientes da vida e aos processos ecológicos que os mantém organizados; a variabilidade de organismos vivos de todas as origens nos diversos ecossistemas e diversidade dentro de espécies, entre espécies e de ecossistemas [2].

A diversidade biológica constitui o pilar da vida no planeta, incluindo nós humanos que no passar de milênios fomos nos distinguindo de outras espécies; sustenta o ciclo da vida e da energia, em que as espécies existentes em um determinado ecossistema se interligam, servem de alimento umas às outras, protegem e diversificam a flora e contribuem para a qualidade do clima e das águas; o desaparecimento de uma espécie reflete e prejudica as demais.

O Brasil foi agraciado com a maior diversidade biológica do planeta, como decorre de seus números: 5.000 espécies de fungos filamentosos e leveduras – 10% da diversidade mundial; 22% da diversidade de briófitas do mundo; cerca de 1.400 espécies de pteridófitas — 12% da diversidade mundial; maior diversidade de plantas angiospermas do mundo. Estima-se mais de 45 mil espécies; entre 90 a 120 mil espécies de insetos — 10% da diversidade mundial; maior diversidade de peixes do mundo. Mais de 3.500 espécies; a fauna mais rica do mundo para o grupo dos anfíbios; cerca de 1.800 espécies de aves; mais de 650 espécies de mamíferos [3].

No entanto, o futuro preocupa. Segundo projeção do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), em 1800 a população humana era de 0,9 bilhão com 7,6% da área terrestre convertida para uso humano e uma perda de 1,8% de espécies nos ecossistemas; em 1.900 passamos a 1,7 bilhão, 16,9% de áreas convertidas e -4,9% espécies; em 2000 passamos a 6,1 bilhão, 39,3% de áreas convertidas e -13,6% espécies de vida; a projeção para 2.100 (no modelo verde) é de 8,7 bilhão de pessoas, 33,4% de áreas convertidas e -11,6% espécies, ou (no modelo atual) 12 bilhões, 49,1% e -17% [4].

Hoje, 96% da vida animal é constituída pelos humanos e por seus animais domesticados, apenas 4% constituindo o que denominamos de vida selvagem; 70% dos pássaros são hoje pássaros domesticados para nosso deleite e consumo. Antes, a natureza determinava como sobrevivíamos; hoje, nós determinamos como a natureza sobrevive [5].

Segundo os estudiosos, estamos em meio — e nos encaminhando para  uma extinção em massa, caracterizada por momento em que a Terra perde mais de três quartos de suas espécies num curto intervalo geológico, como aconteceu por cinco vezes nos últimos 540 milhões de anos; estudos confirmam que as taxas atuais de extinção estão muito altas e sugerem que uma sexta extinção em massa está em andamento, pondo em risco a integridade da biosfera e enunciando uma nova era geológica, o antropoceno; são mudanças causadas pelos seres humanos que tornam o planeta menos hospitaleiro e dificultam a nossa sobrevivência [6].

A técnica e a ciência têm um limite; identificam e advertem do avanço da desertificação, do aumento da acidez dos mares e do aquecimento dos polos, das consequências da destruição da fauna e da flora; podem ajudar a retardar e reduzir a degradação antevista para que, num futuro distante, a natureza e a diversidade biológica refaçam o equilíbrio do planeta em que vivemos; mas não podem interromper o processo em andamento.

Essa constatação e preocupação não são de hoje. Em 1968 ocorreu em Paris a Conferência Intergovernamental de Especialistas sobre as Bases Científicas para o Uso Racional e a Conservação e a Conservação dos Recursos da Biosfera, a Conferência da Biosfera, organizada pela Unesco, Organização Mundial da Saúde (OMS), Food and Agriculture Organization (FAO), órgãos da ONU, International Union for the Conservation of Nature (IUCN) e o Conselho Internacional de Ciência (CIC) com o objetivo de tratar da conservação e do uso sustentável da biosfera; reuniu cerca de trezentos delegados de sessenta países, entre eles o Brasil e foi a primeira reunião global a adotar resoluções sobre as questões ambientais e enfatizar sua importância.

Em 1971 foi aprovada na cidade iraniana de Ramsar, entrando em vigor em 1975, a Convenção sobre Zonas Úmidas de Importância Internacional, a Convenção de Ramsar, com o objetivo de evitar a degradação das zonas úmidas e promover a sua conservação, vida e habitar de aves aquáticas: áreas de pântano, charco, turfa ou água, natural ou artificial, permanente ou temporária, com água estagnada ou corrente, doce, salobra ou salgada, incluindo áreas de água marítima com menos de seis metros de profundidade na maré baixa.

Em 1972 realizou-se a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente em Estocolmo com a participação de 113 países, 250 organizações não-governamentais e organismos da ONU, que criou o Pnuma e aprovou a Declaração de Estocolmo, com 26 princípios referentes a comportamentos e responsabilidades dos países e metas específicas como a moratória de dez anos para a caça à baleia e a prevenção ao derramamento deliberado de óleo nos oceanos.

Em 1987 a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, reunida na Noruega, publicou o Relatório Brundtland, mais conhecido como Nosso Futuro Comum (Our Common Future) no qual houve a disseminação da ideia de desenvolvimento sustentável, conceito o qual vinha sendo concebido desde a década de 1970 [7].

Em 1973, em vigor em 1975, foi concebida na cidade de Washington a Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (Cites); ela controla ou proíbe o comércio internacional de espécies ameaçadas e inclui cerca de 5.000 espécies animais e 29.000 vegetais. Em 1982 foi aprovada a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM) ou United Nations Convention on the Law of the Sea (Unclos), que definiu aspectos de soberania, jurisdição, direitos e obrigações dos Estados em relação aos oceanos e aos recursos marinhos com 320 artigos e nove anexos, incluindo a regulamentação da poluição do meio ambiente marinho, a utilização equitativa e eficiente dos recursos vivos e o estudo, a proteção e a preservação dos ecossistemas marinhos [8] [9].

Em 1992, na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento no Rio de Janeiro, a Rio-92, foram aprovadas a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) e a Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação, assinadas por líderes de mais de cem países. A Convenção Sobre Diversidade Biológica (CDB, também conhecida como Convenção da Biodiversidade) trazia três objetivos principais: a conservação da diversidade biológica (ou biodiversidade), o seu uso sustentável e a distribuição justa e equitativa dos benefícios advindos do uso econômico dos recursos genéticos, respeitada a soberania de cada nação sobre o patrimônio existente em seu território.

Essa Convenção reconhece, pela primeira vez no direito internacional, que a conservação da diversidade biológica é "uma preocupação comum da humanidade" e é parte integrante do processo de desenvolvimento. O acordo abrange todos os ecossistemas, espécies e recursos genéticos, e estabelece ligações entre os esforços tradicionais de conservação e metas econômicas de utilização sustentável dos recursos biológicos; abrange a biotecnologia e a biossegurança no Protocolo de Cartagena, lembra que os recursos naturais são finitos e estabelece o princípio da precaução segundo o qual onde há uma ameaça de redução ou perda da diversidade biológica significativa, a falta de plena certeza científica não deve ser utilizada como razão para postergar medidas para evitar ou minimizar essa ameaça [10].

A Convenção foi desenvolvida nas várias COP que seguiram, que trouxeram estudos e Planos Estratégicos para os anos seguintes. O Plano Estratégico de 2010 teve o prazo estendido para 2020. No documento Year in Review (2010), a CDB constatou, apesar dos esforços, não ter havido redução na taxa de perda da biodiversidade, com exceção de algumas poucas e limitadas populações; houve aumento na queda da abundância das espécies e das pressões que levam à sua perda, pressões essas que se mantiveram constantes ou aumentaram. Registrou que apenas 1% dos oceanos estava protegido contra 15% da superfície terrestre, estas ainda alvo de desmatamento, degradação e baixa efetividade no manejo.

As 20 Metas de Aichi, aprovadas na COP-10 realizada em Nagoya para o período 2010-2020 com a participação do Brasil, estão organizadas em cinco objetivos estratégicos: a) conscientizar governos e sociedades das causas da perda da biodiversidade; b) reduzir as pressões diretas sobre ela e promover o uso sustentável; c) resguardar ecossistemas, espécies e diversidade genética; d) disseminar os benefícios da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos; e e) incentivar o planejamento participativo na gestão do conhecimento e capacitação [11].

Em próximo artigo analisaremos a Política Nacional da Biodiversidade e como ela se desenvolve, no campo legal e jurídico, no Brasil.

 


[1] Silent Spring, Rachel Carson, publicado em 1962, que analisou a degradação causada pelos pesticidas e a propaganda enganosa divulgada pelas indústrias químicas fabricantes. O livro é facilmente encontrado em capa dura e em versão digital.

[2] NINA LIS DE ABREU NUNES e FERNANDA DA ROCHA BRANDO, "Vinte anos da Política Nacional da Biodiversidade: o que esperar?", in Proteção ao Meio Ambiente no Brasil, passado, presente e futuro: estudos em homenagem a Patricia Iglecias, Ed. Almedina, São Paulo, 2023, pág. 575. Outras informações desse interessante trabalho são utilizadas neste artigo.

[3] Biodiversidade: o que é, brasileira e ameaças — Toda Matéria (todamateria.com.br), acesso em 8-6-2023. Fungos são seres macroscópicos ou microscópicos dividido em cinco filos, com cerca de 1,5 milhão de espécies como os cogumelos, leveduras, bolores, mofos, utilizados entre outros fins na culinária, medicina, produtos domésticos. Briófitas são plantas que não possuem vasos condutores de seiva, portanto, são avasculares. Vivem, geralmente, em ambientes úmidos e formam "tapetes" verdes sobre rochas, troncos ou outras superfícies. Precisam de água para sua reprodução; habitam, preferencialmente, ambientes úmidos, todavia existem espécies em locais de calor e frio extremos; são plantas de pequeno porte, geralmente atingem entre cinco a 40 centímetros. Pteridófitas são plantas vasculares ou traqueófitas, ou seja, que possuem tecidos condutores e criptógamas pois não possuem sementes. Os exemplos mais conhecidos são as samambaias, avencas e cavalinhas, muito utilizadas como plantas ornamentais. Angiospermas são plantas complexas que apresentam raiz, caule, folhas, flores, frutos e sementes; representam o grupo mais diversificado de plantas, com mais de 250 mil espécies. As angiospermas ocorrem nos mais variados tipos de habitats, desde ambientes aquáticos até áridos.

[5] (82) Sir David Attenborough — Greatest Speech Ever | Creators for Nature – YouTube, acesso em 8-6-2023. Um discurso que impressiona. Sir David Attenborough produziu uma série de documentários sobre o mundo natural em seus vários aspectos que podem ser vistos na BBC, Netflix e Youtube.

[6] NINA LYS DE ABREU NUNES e al, obra citada, pág. 576.

[7] O relatório Brundtland indicou que a pobreza dos países do terceiro mundo e o consumismo elevado dos países do primeiro mundo eram causas fundamentais que impediam um desenvolvimento igualitário no mundo e, consequentemente, produziam graves crises ambientais. Também trazia ainda dados sobre o aquecimento global, as chuvas ácidas e a destruição da camada de ozônio, temáticas que também eram bastante novas para o momento de seu lançamento, inclusive sugerindo à Assembleia Geral da Nações Unidas a necessidade da realização de uma nova conferência internacional para avaliar esses e outros grandes impactos sofridos pelo meio ambiente nos anos anteriores, como perda da biodiversidade e ocorrências de desastres ecológicos de responsabilidades industriais. E ainda foi a primeira tentativa de estabelecer uma série de metas a serem seguidas por nações de todo o mundo para evitar o avanço das destruições ambientais e o desequilíbrio climático, embora até a atualidade as nações ainda não conseguiram criar um consenso sobre como agir em conjunto em prol do desenvolvimento sustentável. Relatório Brundtland – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

[8] EDIS MILARÉ, Direito do Ambiente, 11ª Ed. RT, São Paulo, 2018, pág. 1717-1743. Essa obra é utilizada em diversas menções do artigo.

[11] NINA LYS DE ABREU NUNES e al, obra citada, pág. 581. Ver Aichi Biodiversity Targets (cbd.int), acesso em 8-6-2023.

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