Diário de Classe

Como sociedade, devemos refletir sobre os direitos autorais dos criadores!

Autores

  • Victor Gameiro Drummond

    é doutor em Direito (Unesa-RJ) com pós-doutorado na Universidade de Lisboa professor de mestrado e doutorado e advogado.

  • Luísa Giuliani Bernsts

    é doutoranda e mestre em Direito Público (Unisinos) bolsista Capes/Proex membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos (Unisinos) e do grupo de pesquisa Bildung — Direito e Humanidades (Unesa) e professora da Faculdade São Judas Tadeu (SJT-RS).

3 de junho de 2023, 10h20

Preâmbulo: A velha e constante discussão que vai e volta: novas tecnologias e o (des)respeito ao trabalho dos criadores, artistas e intelectuais. Agora muito mais do que atualizada, mostrando um novo rompimento de paradigmas em consequência de dois temas urgentes: streaming e inteligência artificial.

 

Trazemos esses dois assuntos pois eles implicam diretamente na criação e na distribuição, duas circunstâncias do universo criativo dos direitos autorais, que representam, podemos assim dizer, os pilares do sistema de direitos autorais. Essa ideia é bastante correta, inclusive. Afinal, sem criação, não há obra (tautologia flagrante), o que, a seu turno, conduz veementemente ao esvaziamento do convívio humano. E as perdas são grandes. O mundo sem arte e atividade intelectual é inimaginável… até mesmo se estivéssemos diante de uma abordagem distópica. Caso fosse possível cindir a arte da vida (e das narrativas), esta seria a construção paradoxalmente mais distópica de todas! Eis que a criação é elemento existencial para o humano, o resultado criativo precisa voar, sendo o resultado da criação, o alimento compartilhado! Este é o papel da distribuição. Sem distribuição, o objeto da criação não chega a quem necessita usufruí-lo. Distribuição é um dos elementos que transforma a criação (no sentido amplo) em produto cultural. Ou seja: este é o papel fundamental da indústria. Claro que operamos aqui uma síntese forçosa, para que caiba nessas breves linhas — que se colocam um tanto poéticas — conceitos fundamentais à compreensão dos direitos autorais.

Outra informação se evidencia: a criação humana nunca seria (e nem será) desassociada da tecnologia. Obviamente a definição de tecnologia pode gerar muitas controvérsias, mas podemos apontar algumas linhas de interpretação. A tecnologia pode ser definida como um conjunto de métodos e sistemas que, utilizados entre si, buscam um resultado final que é perseguido ou desejado. Esse conjunto de métodos e sistemas não precisa ser utilizado necessariamente ao lado de "maquinário", mas contemporaneamente se identifica dessa forma. Também pode ser, a tecnologia, o conjunto de processos que busca modificar o mundo e a natureza. Os debates não terminariam. Mas para alcançar algum pragmatismo e entender o que pretendemos, acreditamos que compreender a inteligência artificial e o streaming como elementos que contribuem ao avanço tecnológico, parece mais do que evidente. Há mais, porém.

O streaming se transformou na mais popularizada forma de consumo de obras audiovisuais e musicais. E o processo criativo compõem sua existência como forma de distribuição, mas o inverso também ocorreu, pois o consumo definiu novas formas de criar. Vivenciamos um ambiente de padronizações contraditórias com a essência criativa inerente à própria arte.

No caso do audiovisual, as séries se transformaram no mais proeminente formato do audiovisual. Ou seja, forma de consumo gerando modificações no processo criativo, com base no: "o que o mercado hoje quer!". As ideias para filmes de longa metragem, os argumentos, os roteiros, as direções, o senso estético, a direção de arte, as interpretações, a criação e utilização de trilha sonora, tudo referido ao processo criativo recebeu inovações no senso estético por uma nova forma de transformar criações e interpretações em produtos. Isso não é necessariamente ruim. O formato seriado — por exemplo — atualmente parece bastante adequado a muitas (esperamos que não todas) formas de contar histórias.

No caso da manifestação musical, temos outras dúvidas. Parece ter havido uma reformulação do tratamento da canção, gerando uma emergência de tempo no que a obra deve trazer ao público. De início, já se pode perceber que os refrões foram "antecipados" e as canções agora precisam caber nas emergências das redes sociais. Não é exatamente uma antecipação de refrão — melhor explicar — é uma espécie de metonímia. O chamariz melódico, o tema melódico principal, agora precisa vir sem surpresas, em poucos segundos, ao menos se o objetivo pretendido é ser um êxito nas redes sociais.

Ou seja, em novas linhas gerais, além da alteração da forma de distribuição, também reflexos significativos alcançaram o processo criativo. Assim, de súbito, é possível compreender o quanto novas formas tecnológicas podem modificar circunstâncias (criação e distribuição) impactando diretamente, portanto, no sistema de direitos vinculado ao desenvolvimento tipicamente autoral. Vejamos que chegamos neste ponto a partir de uma análise (sobre criação/direitos) impulsionada pelo streaming, mas vejamos, de forma ainda relacional, podemos chegar à algo semelhante se enviesarmos nosso ponto de partida pela inteligência artificial.

A inteligência artificial vem possibilitando que antigas formas de criação sejam desenvolvidas por meio de suas ferramentas. É o que acontece mais precisamente com o Chat GPT — pois permite criação de textos — e plataformas como DALL-E e Midjourney para obras de natureza visual. Sobre estas se pode se alegar que permitem formas já previamente existentes, mas não substituem artes visuais que levam em conta o processo manual. Um possível problema que não podemos deixar de mencionar, diante desse contexto, se constitui na medida em que a IA passa a impactar na própria criação.

Assim, não obstante termos salientado a importância da distribuição e da criação no streaming como algo que deve ser observado de lupa, no caso dessas breves reflexões em relação à inteligência artificial, apontamos somente a preocupação primeira sobre a criação. O que se deve compreender é: as ferramentas podem gerar danos aos criadores em diversas atividades pois podem, de fato, substituí-los em muitos processos e, seguramente, num futuro já bem próximo, de forma bastante "criativa". (O uso da expressão criativa é proposital, para chocar e trazer reflexão. No mais, se estivéssemos nos referindo ao grau de inovação artística, o termo correto seria originalidade.).

Surgem algumas perguntas, portanto, como consequência dessa breve reflexão:

Qual a necessidade (do ponto de vista da sociedade) de se fazer uso de ferramentas de inteligência artificial para a criação de obras de diversas naturezas, como textos, obras musicais, obras visuais? Quão satisfatório será (de forma utilitarista) e qual o preço social que será pago?

Além de tais perguntas básicas, deve-se pensar no processo. O que pretende um artista, um criador, um intelectual, alcançar um resultado ou buscar o processo? O fazer também importa ao criador. Há uma alegria contundente ao se compor uma música e ao escrever um texto. Substitua-se a palavra alegria por outras emoções: diversão, agrado, satisfação, tesão…. Caminante no hay caminho, se hace caminho al andar (Antonio Machado).

Correlacionando um pouco as questões, é necessário saber se valerá a pena impactar uma enorme massa de criadores, artistas, intelectuais, desestimulando-os, deslocando-os de suas atividades, transformando-os em profissionais de outras especialidades, por conta da possibilidade de que as suas atividades criativas sejam substituídas por ferramentas tecnológicas. Ou seja, damos por certo que haverá a possibilidade de substituição em algumas atividades. E talvez com alguma superioridade em alguns setores da criação. E valerá a pena? Será que a graça de tudo não está nas imperfeições? Não é essa a beleza da arte?

Buscando a união das duas temáticas (streaming e inteligência artificial); entendendo que ambas podem influenciar e modificar pilares da cadeia produtiva criativa das artes (criação e distribuição) é preciso refletir sobre as consequências jurídicas, econômicas mas antes de tudo, éticas. E no campo da ética, o que poderia haver em comum entre os dois temas? Pois deveria esse ser o ponto de partida da discussão. Tratemos de incorporá-lo ao debate.

Há uma compreensão — por parte do setor cultural — de que o streaming é uma mera nova forma de utilização de obras. Dito de outra forma, seria uma "janela" — expressão utilizada sobretudo no setor audiovisual. Não é bem assim. Ora, se uma nova forma de utilização é suficiente para modificar a distribuição e a criação – pelo menos em alguma medida – não se trata de algo simplório, mas muito mais profundo e que conduz a um rompimento paradigmático (modificando a forma de criação, inclusive).

Mas há resistência — por mais espantoso que possa ser — ao reconhecimento de algo basilar relacionado à nova forma de se "distribuir" (genericamente), as obras. Estamos nos referindo aos direitos autorais dos criadores dos resultados artísticos. Há quem diga — de forma contraditória ao sistema de direitos autorais, sobretudo o de origem francesa (droit d'auteur) — que toda a relação contratual pode resolver a remuneração (futura) dos criadores, mesmo que a forma de utilização das obras não tenha sido prevista anteriormente. Falácia!!!!

Há mais! os mesmos que utilizam tais argumentos, o fazem em nome dos pretensos infinitos ganhos de toda a indústria do setor, por óbvio, constituído sob a exploração dos criadores. Ora, se ocorreu o rompimento paradigmático (atualmente as empresas adoram se autonomear disruptivas), o streaming será a forma dominante pelos menos nas próximas décadas, e os criadores que as atravessarão estão, desde já, em maus lençóis. Diante desse caminho, questionamos: como a indústria e todos os setores envolvidos irão tratar o tema do ponto de vista da ética? De forma utilitarista? Existem limites para a perversão do artístico erigida no esquecimento dos autores (humanos)?

Precisamos voltar, neste ponto, à inteligência artificial, quando ela vincula-se a capacidade de "substituição do processo criativo". As perguntas (re)voltam: Se o próprio processo criativo (inerentemente humano) é o valor da arte, como poderá não importar se o criador será ferramenta, uma máquina ou um sistema? Não importará o processo criativo, como ato sublime, simplesmente por ser humano? As imperfeições da criação humana serão substituídas por resultados promovidos por inteligência artificial e isso será bom? Umberto Eco, que nos deixou em 2016, dizia, como todos sabemos, que a internet deu voz à uma legião de imbecis, e certamente não seria fácil para ele suportar o sofrimento do que hoje desfila diante de nossos olhares.

Pode parecer forçoso, demasiadamente complexo e — paradoxalmente — reducionista, mas as perguntas que insistimos em trazer à baila estão todas vinculadas à uma mesma problemática: se não nos importamos com a (re)existência dos criadores, reforçada a partir da garantia de seus direitos; se não nos importamos com a sua manutenção como criadores; se não nos importamos com a possibilidade de sua substituição, o que salta aos olhos, é que não nos importamos mais com a própria arte!!! Mas há de se recordar que a obra (de arte) — que logo se transforma (ou não) em produto — não surge espontaneamente, mas é resultado de um processo criativo, por vezes complexo, mas sempre inerente ao sentir emocional (talvez até irracionalizável) que só se dá em um ser humano.

O autor vai e a obra fica. Se ele não for remunerado pode não querer continuar a criar e daí todos perdemos. Está é a lógica. Qualquer criança entende. O não pagamento dos criadores é a lógica da derrota dos criadores, dos autores, dos artistas, da arte e, portanto, de todos nós. Recebemos a sua entrega em forma de arte. A nossa entrega precisa ser coletiva, em forma de respeito e direito, e não de aceitação da sua (nossa) derrota!

Já é passada a hora de refletir, publicamente, esses temas sob o viés da ética, pois afinal, são os criadores que nos permitem sobreviver nos momentos mais difíceis, amparando as nossas vidas com arte.

Rogamos aos que ainda se alimentam de arte que não podemos deixar-lhes à margem nessa sociedade high-tech, afinal, diante da ausência de artesãos/artistas e da cada vez mais próxima (re)produção mecânica de padrões (a)estéticos e sem valor, o que seria de nós? Por todas essas razões, entendemos que esse debate público é necessário e não somente pertence aos criadores (primeiros afetados), mas pertence a todos nós que resistimos todos os dias à massificação acrítica que a estética pós-moderna nos impõe todos os dias.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!