Direito Civil Atual

Incapacidade civil e caso Schreber (parte 2)

Autor

  • Abrahan Lincoln Dorea Silva

    é advogado e mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP (Largo de São Francisco) com dupla graduação em Direito pela USP e pela Université de Lyon ex-bolsista da Fapesp e membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo.

24 de julho de 2023, 13h19

Continuação da parte 1

Na primeira parte deste artigo [1], foi descrito o Caso Schreber  "o louco mais famoso da história da psiquiatria e da psicanálise" [2] sob a ótica de sua autobiografia de nome "Memória de um doente dos nervos" ("Memórias").

ConJur
Na "segunda série" de suplementos às Memórias, escrita entre outubro e novembro de 1902, Schreber afirmou o seguinte: "depois de tudo isto não me resta mais nada senão oferecer minha pessoa ao julgamento dos especialistas, como objeto de observação científica". "Este convite é o principal objetivo que persigo com a publicação do meu trabalho."[3]

Atendendo a esse intrigante convite, tentar-se-á, de forma breve e limitada, aqui, analisar as implicações do Caso Schreber na incapacidade civil com base na psiquiatria forense.

Laudos periciais sobre Schreber
Em laudo pericial emitido em 1899, dr. Weber[4] abordou, inicialmente, o primeiro surto, ocorrido ente 1884 e 1885, considerando-se que Schreber "sofrera de um grave ataque de hipocondria, do qual se curou"[5]. Nesse sentido, não havia sintomas que, efetivamente, tenham afetado o seu discernimento.

O referido laudo se concentrou em descrever a evolução de sua paranoia — já exposta no texto anterior — e, ao final, indicou que Schreber, apesar de ter solidificado e internalizado toda a compreensão paranoica da realidade, estava em condições melhores em razão de seus esforços de levantar sua interdição e voltar para casa. Ou seja, apesar de apresentar bastante lucidez sobre os assuntos em geral, mantinha ainda uma ideia fixa e irremediável sobre as alucinações e delírios por quais passou.

O segundo laudo do dr. Weber, emitido em 28 de novembro de 1900, confirmou o primeiro laudo e o cenário se solidificou: Schreber tinha uma visão coerente e lúcida sobre a realidade, entrando com fluidez e maestria em assuntos jurídicos, políticos, econômicos, dentre outros, exceto quando se tocava no tema de suas alucinações e delírios. Desse modo, apesar de todo o avanço em seu estado mental, para Weber "[o] elemento mais importante para avaliar a capacidade de agir do paciente é e continua sendo sempre o fato de que ele não revela compreensão da natureza mórbida das inspirações e das ideias que o movem, e tudo o que se apresenta à observação objetiva como alucinação e ideia delirante é para ele certeza inabalável e legítimo motivo de ação" [6].

A questão para o dr. Weber era, sobretudo, a dúvida a respeito de como Schreber agiria diante dos problemas do dia a dia, considerando a inexistência de uma compreensão clara sobre sua doença e seu período recluso no sanatório, sem convívio social.

Essa resistência de Schreber era clara nas observações feitas por ele ao recurso que seria interposto em face da sentença que negou seu pedido de levantamento da interdição [7]. Schreber foi expresso sobre esse ponto: "Deixo em aberto a questão de saber se as ideias em questão realmente derivavam de alucinações ou se se baseavam em fatos reais" [8].

Acolhendo a posição dos laudos do dr. Weber, a sentença negou o pedido de levantamento da interdição. Com a interposição de apelação, dr. Weber foi novamente convocado para emitir um laudo pericial, desta vez para a Corte de Apelação de Dresden. Nele, apesar de manter a opinião dos laudos anteriores, dr. Weber relatou que Schreber estava agido com certa autonomia, fazendo viagens, passeios, visitando museus, teatros, tratando de pequenos negócios de forma razoável, administrando o dinheiro que recebe mensalmente sem problemas.

Weber concluiu que "os fenômenos mórbidos atualmente se manifestam externamente, em sua maior parte em áreas relativamente secundárias", e "não ameaçam prejudicar de modo significativo os interesses mais vitais do próprio doente, como saúde, patrimônio, honra — interesses, aliás, que podem ser salvaguardados por medidas curatelares"[9]. Weber indica que não há como prever se sua situação se agravará no futuro e se existiria a possibilidade de um grave perigo, indicando que o estado geral de Schreber não tende à piora e que a Corte não deveria levar a incerteza sobre eventual piora de Schreber como um critério para decidir sobre o levantamento da interdição.  Com isso, a Corte decidiu pelo levantamento da interdição de Schreber, considerando-o plenamente capaz para todos os atos da vida civil.

Schreber na visão da psiquiatria forense
Conforme Guido Arturo Palomba, a esquizofrenia é um transtorno grave, de difícil recuperação. Conforme o tratadista, "dificilmente, em face da esquizofrenia, seja de qual forma for, o indivíduo reúne condições para o exercício dos atos da vida civil". Em alguns casos, no entanto, passados anos da fase aguda, a pessoa com esquizofrenia pode apresentar somente "alguns poucos e leves defeitos esquizofrênicos", caracterizando a chamada "esquizofrenia em remissão", permitindo-se, portanto, o levantamento da interdição[10].

Com isso, na visão de Guido Arturo Palomba, não é conclusão imediata a de que a pessoa com esquizofrenia deve ser submetida à interdição total. Poderia bastar uma interdição parcial, com fundamento na incapacidade relativa. Há  casos em que a interdição é desnecessária, com evidência de "esquizofrenia em remissão".

Quanto ao caso Schreber, durante o período inicial da segunda internação e durante toda a terceira internação, as evidências indicam a ausência de qualquer condição para o exercício de atos da vida civil. Porém, considerando que as Memórias não concedem laudos periciais que permitam uma análise precisa da condição mental de 1891 a 1898, tampouco ao período da terceira internação (1907 e anos seguintes), a análise ficará restrita ao período de 1899 a 1902.

Nos laudos periciais, dr. Weber entendeu que Schreber era "uma pessoa capaz psiquicamente, mas com ideias de origem patológica" [11]. Notou-se muita estabilidade da vida pessoal e intelectual de Schreber.

No entanto, nos dois primeiros laudos, não havia evidências, para Dr. Weber, de que Schreber teria condições de realizar, sozinho, todos os atos da vida civil, em razão dos "defeitos esquizofrênicos" (em especial, deficiência em sua autocrítica). Assim, apesar da "capacidade psíquica", havia uma patologia que poderia, sim, repercutir na vida social, na capacidade de fato.

Se analisado sob a ótica do Direito Civil brasileiro antes da reforma da Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 ("Estatuto da Pessoa com Deficiência" ou "EPD"), Schreber poderia ser declarado relativamente incapaz, pois nessa hipótese se compreendiam "os parcialmente comprometidos psicologicamente, ou seja, (…) os fronteiriços, aqueles que apresentam diminuição do entendimento ou da capacidade de autodeterminação"[12]. Como consequência, a condição de Schreber poderia dar ensejo a uma interdição parcial, o que implicaria indicação de um curador para "assistir" Schreber nos atos da vida civil.

No entanto, já em 1902, em razão da maior liberdade a Schreber para realizar sozinho atos da vida civil, foi possível ao dr. Weber concluir que ele conseguiu realizar alguns negócios e viagens com autonomia e sem intercorrências. A lucidez, já identificada em Schreber, permitiu que ele retomasse sua vida como um cidadão com discernimento, apesar da existência de "defeitos esquizofrênicos", como a ausência de consciência sobre sua paranoia. Por isso a conclusão da Corte de Apelação de Dresden foi a de conceder o levantamento de sua interdição. Verificou-se efetivamente que a patologia não afetou, concretamente, boa parte de os atos básicos da vida civil daquela pessoa.

Sob a ótica do Direito Civil brasileiro anterior à reforma promovida pelo EPD, a conclusão seria similar, já que não havia nenhuma restrição ao discernimento, tampouco tendência à prática de atos que geram prejuízo aos seus negócios, ao seu patrimônio ou à sua honra constatados expressamente pelo laudo pericial do dr. Weber.

Conforme Guido Arturo Palomba, se, em casos de esquizofrenia, a capacidade crítica não tiver sido afetada de forma grave, havendo a manutenção dos valores éticos-morais e defeito circunscrito à afetividade que não é grave, permitindo que o paciente mantenha vínculos satisfatórios com o mundo, uma ocupação útil e contatos sociais, ainda que tenha uma certa falta de empatia ou algumas esquisitices de comportamento, "pode-se falar, e a bom direito, que houve satisfatória 'cura social', e neste caso é justo o perito opinar pela capacidade civil total, pela desinterdição (no caso de ter sido interditado no passado), pela capacidade de exercer o poder familiar, se as demais circunstâncias o permitirem" [13].

Conclusão
Dentre os vários aspectos criticáveis no EPD, o objetivo destas colunas sobre o Caso Schreber é escancarar somente alguns dos principais problemas da reforma legislativa — não todos.

Em primeiro lugar, o EPD declara que todas as pessoas com deficiência são plenamente capazes para todos os atos da vida civil (artigo 6º), retirando das hipóteses de incapacidade absoluta e alocando para as hipóteses de incapacidade relativa a seguinte hipótese: "aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade". Isso fez com que a psiquiatria forense, e também os tribunais, passassem a utilizar o dispositivo — que é genérico e era antes voltado a casos como o "coma" — para proteger as pessoas com transtornos mentais, o que seria o caso da esquizofrenia[14].

Em segundo lugar, o sistema, hoje, não permite a constituição judicial de curador com poderes de representação para cuidar sozinho do patrimônio e dos negócios da pessoa com transtorno metal. Só é possível curador com poderes de assistência, com fundamento na incapacidade relativa. Em casos como o de Schreber, cuja internação foi necessária e houve até sintomas catatônicos de imobilidade — que implicou a impossibilidade de emissão de sua vontade —, a incapacidade relativa seria ineficaz para a proteção de seus negócios e patrimônio. Só restaria àqueles que se importam com Schreber a gestão de negócios (artigo 861, Código Civil). Esse é um efeito adverso do "apriorismo" legal, que procura evitar o rigor da interdição simplesmente suprimindo a incapacidade absoluta e afirmando uma capacidade que pode, na prática, ou seja, na vida civil real, não se verificar.

Em terceiro lugar, a reforma parece se pautar em uma visão de que a incapacidade é uma "sanção" e não uma "proteção", apesar de farta doutrina que sustente a última posição. Na França, a confusão foi resolvida por meio da substituição do termo "incapaz" ("incapable") por "maior protegido" ("majeur protégé")[15].

O Caso Schreber demonstra que, em vez de haver uma reforma tendente a abolir as hipóteses de incapacidade, deveria ocorrer, na verdade, uma ampliação da quantidade de hipóteses de incapacidade com uma gradação dos níveis de proteção, como no caso do Direito francês[16].  Apesar das críticas já existentes à antiga redação dos artigos 3º e 4º do Código Civil de 2002[17], o modelo de incapacidade ao menos dava flexibilidade para que os peritos e os tribunais adequassem a incapacidade à gravidade do transtorno mental, evitando proteção rígida em casos simples e proteção tênue em casos graves. A antiga redação dava mais espaço para que a psiquiatria contribuísse com o Direito, medindo-se, ao lado da diagnose psíquica, a efetiva interação do quadro mental com o mundo ao redor para saber se, e em que medida, o indivíduo necessitaria de suporte para a vida civil.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

 


[2] CARONE, Marilene. Da loucura de prestígio ao prestígio da loucura. In: SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. Tradução e organização de Marilene Carone. 1. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. p. 9.

[3] SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. p. 219.

[4] Psiquiatra de Schreber e Diretor do sanatório (Sonnenstein). Dr. Weber, por vezes, denuncia ser amigo de Schreber. Em seus laudos, Weber descreve com precisão as variações de comportamento de Schreber por conhecê-lo como paciente e por compartilhar o dia a dia com ele, embora haja conflito direto entre o diagnóstico feito por Weber (“Paranoia”, como “doença mental”) e a conclusão de Schreber sobre seu próprio estado. Ao ler os laudos do Dr. Weber, Schreber discordou e afirmou que teria sido acometido de uma “doença dos nervos”, não uma “doença mental”. Na visão de Schreber, ele sempre teve condição de emitir conscientemente sua vontade.

[5] WEBER. Laudo médico-legal nos autos do processo (1899). In: SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. p. 236.

[6] WEBER. Laudo médico distrital (1900). In: SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. p. 248.

[7] SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. p. 249 e seguintes.

[8] SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. p. 251.

[9] WEBER. Laudo Pericial do Conselheiro Dr. Weber O.I. 152/0 (1902). In: SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. p. 281. A única exceção trazida pelo Dr. Weber é o desejo de publicação das memórias que, no seu entender, prejudicará a sua honra.

[10] PALOMBA, Guido Arturo. Tratado de Psiquiatria Forense Civil e Penal. São Paulo: Atheneu Editora, 2003. p. 652.

[11] GUIRADO, Marlene; MARTINS-AFONSO, Felipe; GUIRADO, Luisa. Loucura e neurose em freud: a cena originária da clínica psicanalítica em análise. Curitiba: Appris, 2012. p. 181.

[12] PALOMBA, Guido Arturo. Tratado de Psiquiatria Forense Civil e Penal. p. 157.

[13] PALOMBA, Guido Arturo. Tratado de Psiquiatria Forense Civil e Penal. p. 652.

[14] BARROS, Daniel Martins de. Introdução à Psiquiatria Forense. Porto Alegre: Artmed, 2019. p. 53-54.

[15] BATTEUR, Anick. Droit des personnes, des familles et des majeurs protégées. 9. ed. Paris: Lextenso éditions, 2017. p. 502 e ss

[17] PALOMBA, Guido Arturo. Tratado de Psiquiatria Forense Civil e Penal. p. 157-158.

Autores

  • é advogado e mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP (Largo de São Francisco), com dupla graduação em Direito pela USP e pela Université de Lyon, ex-bolsista da Fapesp e membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo.

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