Público & Pragmático

Pragmatismo jurídico e advocacia pública: a Lindb na AGE-MG

Autores

  • é especialista em política pública e gestão governamental em Minas Gerais mestranda em gestão de políticas públicas pela Universidade de São Paulo graduada em administradora pública na Fundação João Pinheiro e em processos gerenciais pela Universidade do Estado de Minas Gerais.

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  • é procuradora do estado do Paraná mestranda em Direito Administrativo pela Universidade de São Paulo especialista em Direito Processual Civil e ex-procuradora municipal.

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29 de janeiro de 2023, 8h00

Quase cinco anos se passaram desde a alteração da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, promovida pela Lei nº 13.655, de 25 de abril de 2018, que incluiu no Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942, disposições sobre segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público. No entanto, sua aplicabilidade ainda não é ampla e consolidada, sendo imperioso, por essa razão, analisar o seu grau de enforcement nos diferentes órgãos da administração pública; e, mais ainda, se o novo paradigma de decisão pretendido por seus dispositivos está sendo utilizado rumo a decisões públicas mais pragmáticas.

Antes de tudo, lembramos que o pragmatismo aqui, não é apenas aquele prático, realista e objetivo definido no bom e velho Aurélio. Mais do que isso, refere-se a uma atuação que considera, como parte dos fatores determinantes para a prolação de uma decisão, o contexto e as consequências práticas possíveis advindas dela, desprendendo-se da ideia de que o Direito — que vai beber dessa fonte — é imutável, estático, puramente dogmático [1]. Falamos, então, do pragmatismo do Clube do Metafísico, que surgiu como uma corrente filosófica nos Estados Unidos do século XIX/XX, tendo como principais representantes Charles Sanders Peirce, William James e John Dewey [2].

Vale dizer que, ao longo de sua construção, o pragmatismo acabou se apresentando como um verdadeiro método, e não propriamente como uma teoria autônoma. Tal método estaria, então, ancorado em um tripé — antifundacionalismo, contextualismo e consequencialismo — marcado pela predominância da prática, pela aceitação da mudança permanente, pela noção de investigação constante, em nítida aproximação com o modelo científico. De maneira até mesmo natural, o pragmatismo espraiou-se pela teoria do Direito, revelando-se como um filtro muito alinhado ao escopo de pacificação de conflitos [3].

E esse filtro tem sido utilizado, paulatinamente, na concepção e remodelação de institutos no Direito Administrativo [4]. De modo geral, podemos observar os atos públicos cada vez mais operacionalizados considerando o contexto, como nas análises de impacto regulatório recomendadas pelos organismos internacionais e acatadas nacionalmente; ou na adoção, de forma institucionalizada, de acordos administrativos para solucionar conflitos de interesse entre o público e o privado [5]. Recorrentemente, deparamo-nos com acórdãos e súmulas embasadas no contextualismo e consequencialismo na priorização da segurança jurídica e dos fins almejados pela norma [6]. Contudo, todos esses exemplos têm em comum a presença de estudiosos predispostos à inovação, ou de atores cuja função contempla a análise e aplicação de dispositivos, o que deixa antever, em certa medida, a ausência — ou a insuficiência — políticas institucionais pragmáticas.

Especificamente quanto às alterações ocorridas em 2018 na Lindb, pergunta-se, então, como está ocorrendo a incorporação, no dia a dia do gestor público, desse novo paradigma pragmático, uma vez que olhar para a aplicação da lei pela burocracia traz outras nuances. Seja pela falta de informações inerentes às decisões públicas, seja pela instabilidade de diretrizes programáticas típicas da democracia, os servidores, em diversas situações, são levados a tomar rápidas decisões, sem a possibilidade de realizar um diagnóstico prévio à altura da complexidade constatada. Além disso, especialmente no contexto municipal, verifica-se um quadro de pessoal pouco qualificado e que depende de uma política de capacitação ativa para acessar tantas inovações legislativas [7].

Neste sentido, a advocacia pública parece ocupar um papel central, na medida em que detém a competência para a consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo, nos termos do disposto nos artigos 131 e 132, da Constituição Federal. E aqui, em que pese a ausência de alusão expressa aos procuradores municipais no texto constitucional, uma interpretação restritiva "(…) não se coaduna com o modelo de federalismo adotado pelo constituinte originário e tampouco com a conformação constitucional do núcleo da advocacia pública — o qual integra as funções essenciais à Justiça" [8].

É a advocacia pública que vai, geralmente em prazos exíguos, apresentar ao gestor o cenário normativo, as possibilidades, os caminhos. A ela incumbe estudar, pesquisar e interpretar a legislação, ganhando ainda mais relevo nos momentos de crise, que exigem conhecimento, mas, acima de tudo, criatividade, sem descuidar, obviamente, da matriz orientadora de sua atuação: o ente federativo. Não custa repetir que a advocacia pública está a serviço do Estado, e não de determinado governo.

Ocorre que, dada a realidade brasileira, na qual muitos municípios são extremamente pequenos, seja em dimensão, seja em ocupação — cerca de 70% [9] deles possuem menos de 20 mil habitantes, no qual as prefeituras dependem, majoritariamente, de recursos repassados pelo governo federal para dar conta de gastos correntes, e se envolvem em conflitos políticos em busca de emendas parlamentares para investimentos essenciais — não há sequer procuradorias regularmente constituídas. Por outro lado, no caso de entes estruturados e maiores, como a união e os estados, além do órgão geral (ou central), as procuradorias ou advocacias-gerais também possuem suas respectivas setoriais, especializadas por assuntos ou por pastas governamentais, o que lhes permite não apenas conhecer melhor a realidade da gestão pública, mas também desenvolver um trabalho jurídico dedicado à resolução de problemas e à construção de bases essenciais ao desenvolvimento de políticas públicas.

Assim, considerando o contexto, é de se esperar que a União e os estados-membros, nos últimos cinco anos, tenham contribuído de maneira mais arrojada para o enforcement da Lei nº 13.655/2018 no âmbito da administração pública. Entretanto, uma análise da utilização da normativa nos pareceres jurídicos da Advocacia-Geral do Estado de Minas Gerais — AGE põe em questão esta hipótese. Foi realizada uma pesquisa [10] no site do órgão mineiro e, dentre todos os 2.540 pareceres disponíveis no arquivo eletrônico, publicados desde 2014, apenas 21 deles mencionaram a Lindb.

Desse total, apenas um foi emitido antes da publicação das alterações promovidas em 2018, sendo que os demais foram emitidos de maneira aleatória nos anos seguintes, não sendo possível verificar qualquer relação entre o tempo de vigência e a utilização da lei. Um ponto interessante a ser destacado é que 2021 foi o ano com a maior invocação da lei nos pareceres da AGE-MG, o que poderia indicar alguma relação com a necessidade de contextualização à pandemia de coronavírus (Covid-19), presente de maneira alarmante ao longo daquele ano. Todavia, estas menções foram majoritariamente observadas em temas relacionados a recursos humanos (11) e meio ambiente (5), que são áreas de alta complexidade, grande volume relativo e de maior disputa de interesses entre o público e o particular. Os outros cinco documentos tratavam de temas na área de empresas públicas, tecnologia da informação, tributação, bens públicos e parceria público-privada. Curiosamente, nenhum deles dizia respeito à saúde pública.

Como uma segunda perspectiva de análise, este levantamento demonstrou que a maioria dos pareceres (21) fez menção ao artigo 26 da Lindb, remetendo à possibilidade expressa de a administração pública celebrar termos de compromisso para eliminar irregularidades, incertezas ou situações contenciosas. Além de revelar relação direta com as temáticas mais observadas (pessoal e meio ambiente), a abertura para promover termos de ajustamento de condutas, em sentido amplo, está intimamente relacionada aos princípios pragmatistas do antifundacionalismo e consequencialismo, o que demonstra, mesmo de maneira incipiente, que a Lei 13.655/2018 tem trazido algum grau de inovação para o estado.

Outros artigos com maior número de menções, respectivamente, são o 23 (5) e 30 (4), que estabelecem diretrizes para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas; e os artigos 20 (3) e 21 (3), que tratam da necessidade de se considerar as consequências práticas para a tomada de decisão jurídica, controladora e administrativa. Assim, e mais uma vez, detectamos a influência direta do Clube do Metafísico na aplicação da Lindb.

Destaca-se que a invocação dos dispositivos que tratam do contextualismo foi pouco verificada, o que pode sinalizar que os pareceres consideram mais as consequências da decisão do gestor em detrimento do contexto e das condições que o levaram a tomar suas decisões.

Por fim, verificamos que, de todos os pareceres emitidos, dois terços deles foram redigidos e assinados pelos mesmos procuradores, ambos lotados no mesmo setor da AGE-MG e com grande atuação acadêmica. Os outros sete pareceres foram assinados por procuradores diferentes. Estes números demonstram que o nível de utilização da lei, atualmente, parece estar mais relacionado à pessoa que se propõe a atuar como um agente propagador, e não a uma preocupação ou objetivo institucional do órgão, o que reforça, em nosso sentir, que, a despeito da vocação constitucional, a advocacia pública, em sua função consultiva, ainda é tímida na utilização da Lindb.

O exame aqui proposto, obviamente, constitui um recorte, e a agenda de pesquisa em relação à utilização da Lindb ainda é extensa, com diversas ramificações. No entanto, a cada novo levantamento, como foi o caso dos números expostos, fica mais latente, diante da relevância do diploma, a necessidade de um protagonista que assuma a responsabilidade de difundir os preceitos da Lei 13.655/2018 e propagar as vantagens advindas do método pragmático de decidir. A advocacia pública parece estar próxima o suficiente para ser o agente de capilarização, mas ainda temos um longo caminho a percorrer.

 


[1] PROGREBINSCHI, Thamy. Pragmatismo: teoria social e política. RJ: Relume Dumará, 2005, pp. 11-72.

[2] GHIRALDELLI Jr., Paulo. O que é Pragmatismo? Coleção Primeiros passos. SP: Brasiliense, 2017.

[3] POSNER, Richard. Pragmatismo filosófico versus cotidiano. In: POSNER, Richard. Direito, pragmatismo e democracia. RJ: Forense, 2010, pp. 19-43.

[4] OLIVEIRA, Rafael C. R. A releitura do direito administrativo à luz do pragmatismo jurídico. RDA – Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 256, p. 129-163, jan./abr. 2011.

[5] OLIVEIRA, Gustavo Henrique Justino de. Os acordos administrativos na dogmática brasileira contemporânea. In: MOREIRA, António Júdice et al. (Coords). Mediação e Arbitragem na Administração Pública: Brasil e Portugal. São Paulo: Almedina, 2020. p. 103-113.

[6] ROSILHO, André et al. Como o TCU aplica a Lindb? JOTA, 1/9/2021. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/controle-publico/como-o-tcu-aplica-a-lindb-01092021

[7] Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Atlas da vulnerabilidade social nos municípios brasileiros. Brasília: 2015.

[8] REGO, E.A.M; TAVARES, G.M. Advocacia pública municipal e sua dimensão constitucional. CONJUR: 9/12/2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-dez-09/regoe-tavares-advocacia-publica-municipal-dimensao

[9] Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

[10] Levantamento realizado no sítio eletrônico da Advocacia Geral do Estado de Minas Gerais, em https://advocaciageral.mg.gov.br/legislacoes/pareceres/, dia 11 de novembro de 2022.

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