Opinião

Advocacia pública municipal e sua dimensão constitucional

Autores

  • Elisa Albuquerque Maranhão Rego

    é procuradora do município de Camaragibe (PE) mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco (PPGD/UFPE) e diretora secretária-geral da Federação Pernambucana dos Procuradores Municipais (FPPM).

  • Gustavo Machado Tavares

    é procurador do município do Recife presidente da Associação Nacional dos Procuradores Municipais (ANPM) e conselheiro dos Institutos dos Advogados de Pernambuco (IAP).

9 de dezembro de 2022, 18h04

Muito embora existam entendimentos (minoritários) de que existiria uma omissão intencional da Constituição ao não tratar expressamente das procuradores e procuradores dos municípios em seu artigo 132, tal interpretação não se coaduna com o modelo de federalismo adotado pelo constituinte originário e tampouco com a conformação constitucional do núcleo da advocacia pública — o qual integra as funções essenciais à Justiça [1].

A engenharia constitucional do Estado, com o advento da Carta de 1988, tem como seu pilar a defesa dos direitos fundamentais, de modo que é intuitivo e implícito que todo arcabouço normativo estatal deve oferecer os meios indispensáveis à efetivação e defesa daqueles direitos, sob pena de fazer-se tábua rasa e torná-los inoperantes. É o que se denomina de teoria poderes implícitos [2].

Nessa ordem de ideias, é que se faz necessário a existência de instituições que, independentes e livres de pressões não republicanas, possam exercer as atribuições relevantes à manutenção do Estado Democrático de Direito, lastreando a base estrutural dos preceitos constitucionais, sendo, ainda, em última instância próprias e essenciais à concretização do bem comum, titularizando, pois, o desempenho das denominadas funções essenciais à Justiça.

O ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal Carlos Mário da Silva Velloso tratou sobre o tema na obra Tratado de Direito Municipal:

"Às carreiras que desempenham funções essenciais à justiça, a Constituição deferiu especial tratamento – Ministério Público, Advocacia Pública, Advocacia e Defensoria Pública – na disciplina constitucional relativa à organização dos poderes. Qual a razão dessa inovadora opção do constituinte? Por que elevar determinadas categorias à privilegiada condição de essenciais à Justiça?
(…)
Penso que a inovadora opção do legislador constituinte decorreu da constatação de que o Ministério Público, a Advocacia Pública, a Advocacia e a Defensoria Pública desempenham funções essenciais ao Estado Democrático de Direito em que se constitui a República Federativa do Brasil (CRFB/88, art. 1º).
É dizer: o Ministério Público, a Advocacia Pública, a Advocacia e a Defensoria Pública revelam-se instrumentos fundamentais e indispensáveis — por isso, essenciais — para assegurar, cada qual com o seu trabalho, toda a gama de interesses que permeiam a Constituição, seus valores e princípios, em especial a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (CRFB/88, art. 3º, I), objetivo do Estado Democrático de Direito [3]."

O constituinte brasileiro, reconhecendo a tutela do interesse estatal enquanto função essencial à Justiça, elevou a institucionalização da investidura dos membros da advocacia pública ao nível constitucional, exteriorizando a relevância de sua atividade no contexto institucional brasileiro.

O exercício das atribuições da advocacia pública deve ser desempenhado por agentes públicos investidos em caráter efetivo, para que possam atuar com independência e sem temor de serem exonerados "ad libitum" pelo chefe do Poder Executivo pelo fato de haver exercido, legitimamente e com inteira correção técnica, os encargos irrenunciáveis inerentes às suas relevantes funções institucionais.

Em qualquer âmbito federativo, a concretização dos princípios constitucionais pertinentes à administração pública é viabilizada através do exercício regular e idôneo da atividade de advocacia pública, haja vista que a representação e consultoria jurídica exercidas por um corpo de procuradores efetivos, pautados eminentemente pela técnica, com vínculos estável e duradouro e despidos de anseios políticos e econômicos, proporciona ao Estado lisura e retidão no cumprimento da lei e na defesa de seus interesses, além de resguardar sua memória jurídica.

A ministra Carmén Lúcia Antunes Rocha, em sua obra Princípios Constitucionais dos Servidores Públicos, pontua:

"O advogado público tem vínculo jurídico específico e compromisso peculiar com o interesse público posto no sistema jurídico, o qual há de ser legalmente concretizado pelo governante e pelo administrador público. Tal interesse não sucumbe nem se altera a cada quatro anos aos sabores e humores de alguns administradores ou de grupos que, eventualmente, detenham maiorias parlamentares e administrativas. Por isso mesmo é que o advogado não pode ficar sujeito a interesses subjetivos e passageiros dos governantes" [4].

Em suma, diante da importante envergadura da função desempenhada pela advocacia pública, a Constituição Federal (artigo 132) tratou de delinear e discriminar as atribuições que lhes são inerentes, consideradas, pois, indisponíveis e intransferíveis a outrem que não os próprios procuradores efetivos da respectiva unidade federativa. Longe de ser um privilégio, são, a bem da verdade, prerrogativas inerentes e essenciais aos órgãos de caráter permanente e próprio de Estado.

Dito isso, não se deve analisar e interpretar o artigo 132, da Constituição, de forma isolada e apartada do sistema jurídico. Ao revés, deve ser conjugado com os demais dispositivos do sistema constitucional, para que, a partir disso, tenha-se uma verdadeira interpretação sistemática das normas que tratam das funções essenciais à justiça.

Nesse diapasão, são elucidativas as palavras do ministro Eros Grau:

"A interpretação do direito, enquanto operação de caráter lingüístico, consiste em um processo intelectivo através do qual, partindo de fórmulas lingüísticas contidas nos atos normativos, alcançamos a determinação do seu conteúdo normativo; dizendo-se de outro modo, caminhamos dos significantes (os enunciados) aos significados. Ademais, não se interpreta a Constituição em tiras, aos pedaços. Tenho insistido em que a interpretação do direito é interpretação do direito, não de textos isolados, desprendidos do direito. Não se interpreta textos de direito, isoladamente, mas sim o direito — a Constituição — no seu todo. (…)" [5].

Nessa perspectiva, o procurador do município de São Paulo e professor de Direito Administrativo da PUC-SP Ricardo Marcondes Martins pondera que não há um silêncio e nem omissão constitucionais no que se refere à advocacia pública municipal. Entende, o jurista, que existe uma lacuna constitucional. Veja-se:

"Defende-se aqui que não se trata nem de silêncio constitucional — a Constituição não nega implicitamente a Advocacia Pública aos Municípios — nem de omissão constitucional — o constituinte não deixou ao crivo do editor da Lei Orgânica do Município ou ao crivo do Legislador Municipal decidir se institui ou não, para a respectiva entidade, a Advocacia Pública. Trata-se de inequívoca lacuna constitucional, uma vez que o texto expresso exige uma interpretação extensiva, a partir da análise sistemática da Constituição.
A razão é simples: todos os argumentos que justificam a Advocacia Pública para a União e para os Estados-membros também a justificam para os Municípios. Por evidente, o interesse destes é, juridicamente, equivalente ao interesse daqueles. Os Municípios também não têm interesse de contrariar a Constituição e as leis. A necessidade de prerrogativas para o bom desempenho da missão de dizer qual é, segundo a legislação vigente, o interesse público a ser perseguido também está presente nos Municípios. É, enfim, com todo respeito pelas posições contrárias, absolutamente inegável: as razões jurídicas que justificam uma Advocacia Pública — rectius, advocacia exercida por titulares de cargos públicos efetivos — na União e nos Estados estendem-se, igualmente, aos municípios" [6].

Ainda nesse caminhar, sobre a questão da inexistência de omissão constitucional das Procuradorias Municipais, interessante a contextualização histórica trazida por Claudio Penedo Madureira, ao analisar as discussões anotadas no Diário da Assembleia Nacional Constituinte. Assevera, Claudio Madureira, que, quando da Constituinte de 1988, ficou evidenciado que não houve, em absoluto, omissão:

"Com efeito, por ocasião dos debates, na Comissão de Redação, sobre o qual seria denominação mais adequada para ser atribuída ao Capítulo IV do Título IV da Constituição (o que doravante ficou designado como “Das Funções essenciais à justiça”), o constituinte José Maria Eymael formulou o seguinte questionamento aos seus colegas no Parlamento:
[…] Na parte pertinente à Advocacia-Geral da União, o art. 132, §4º, trata da representação judicial e consultoria jurídica dos Estados e do Distrito Federal. Minha pergunta, Sr. Relator, é a seguinte: aqui se estabelece que 'a representação judicial e consultoria jurídica dos Estados e do Distrito Federal serão exercidas pelos respectivos procuradores, organizados em carreira…'. Foi estudada a não extensão desse instituto aos Municípios, ou é omissão?
A essa indagação o relator da Comissão, constituinte Bernardo Cabral, respondeu: 'Não; só dos Estados mesmo'. Não satisfeito, Eymael indagou, novamente: 'Não se trata de omissão?'. E a isso, Cabral lhe respondeu: 'Não'"[7].

Esse registro histórico afasta a visão equivocada de que houve omissão constitucional da advocacia pública municipal. E, considerando que não se extrai no texto constitucional interpretação contrária à existência das atribuições das procuradoras e procuradores municipais, o que existe é uma lacuna constitucional.

Nesse sentido, a diversidade do ente federativo ao qual se vincula o exercício da advocacia pública não transmuda sua essência, a uma, porque a atividade pública é ontologicamente a mesma e, a duas, sendo os entes federativos existentes de forma autônoma entre si, conforme preceituado pelo artigo 1º da nossa CRFB/88, não se poderia excluir da advocacia pública municipal de carreira o caráter de função essencial à Justiça, expressamente reconhecido à advocacia pública estadual e federal.

Corroborando o entendimento, o ministro Carlos Mário da Silva Velloso, seguindo interpretação sistemática da Carta Magna, também reconhece que a advocacia pública municipal integra as funções essenciais à Justiça, encontrando-se, portanto, prevista implicitamente na Constituição de 1988:

"Vale enfatizar que os advogados públicos municipais – os procuradores municipais – desempenham idênticas atribuições de seus congêneres da União, dos estados e do Distrito Federal, no contencioso judicial e na consultoria jurídica. O que se disse, relativamente a estes, aplica-se, numa interpretação lógico-sistemática da Constituição, no tocante a eles, procuradores municipais.
Assim, exercendo funções essenciais à justiça, porque advogados públicos, os procuradores municipais são indispensáveis à consecução dos valores e princípios inscritos na Lei Maior, contribuindo, no âmbito da edilidade, para tornar realidade a dimensão igualitária da Justiça, indispensável à concretização do Estado democrático de Direito" [8].

Nesse contexto, a conclusão é precisa: os procuradores municipais devem ser reconhecidos como integrantes das atividades essenciais à Justiça, estando previstos no artigo 132 da Carta Constitucional.

Não outro motivo, o STF assentou a dimensão constitucional da advocacia pública municipal: "Os procuradores municipais integram a categoria da Advocacia Pública inserida pela Constituição da República dentre as cognominadas funções essenciais à Justiça, na medida em que também atuam para a preservação dos direitos fundamentais e do Estado de Direito" (RE 663.696/MG — Repercussão Geral — Tese 510 do STF).

Importantes, nessa toada, transcrever os seguintes trechos exarados no citado RE 663.696/MG:

"A natureza da função, seu papel institucional, a lógica de atuação, os interesses protegidos e até o recrutamento dos componentes é feito a partir dos mesmos requisitos" (trecho do voto do ministro Luiz Fux).
"é imperativo que todas as disposições pertinentes à Advocacia Pública sejam aplicadas às Procuradorias Municipais, sob pena de se incorrer em grave violação à organicidade da Carta Maior" (trecho do voto do ministro Luiz Fux).
"O Procurador, quer o estadual, quer o municipal, defende interesse público – e defende interesse público da mesma envergadura, atuando no campo administrativo e também no contencioso. Não cabe assentar fator de discriminação para dizer-se que, no caso, há de haver tratamento diferenciado, conforme se trate de Procurador estadual ou Procurador municipal" (trecho do voto do ministro Marco Aurélio).
"…também as Procuradorias Municipais consistem em Função Essencial à Justiça, pois, como já afirmei, suas atribuições equiparam-se ao restante das carreiras integrantes da Advocacia Pública. E, assim, a simetria de tratamento impõe-se, como forma de garantia da defesa de parcela do interesse público e da justiça" (trecho do voto do ministro Edson Fachin).

Portanto e à guisa de conclusão, seria uma discriminação perversa o não reconhecimento da advocacia pública municipal como função essencial à Justiça e o direito não admite perversidades, como bem pontuado pelo ministro Carlos Mário da Silva Velloso [9].


[1] A temática é tratada no livro: TAVARES, Gustavo Machado; REGO, Elisa Albuquerque Maranhão. Advocacia pública como função essencial à justiça e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Belo Horizonte: Fórum, 2022.

[2] MENDES, Gilmar Ferreira Mendes; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 1350.

[3] VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Procurador municipal — teto de remuneração — inteligência do art. 37, inciso XI, da Constituição Federal. In: NASCIMENTO, Carlos Valder do; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MENDES, Gilmar Ferreira. (coord.) Tratado de direito municipal. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 457.

[4] ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Princípios Constitucionais dos Servidores Públicos. Saraiva, 1999.

[5] BRASIL. ADI 3.685 DF. Relator(a): min. Ellen Gracie, Tribunal Pleno, julgado em 22/3/2006. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?classeNumeroIncidente=%22ADI%203685%22&base=acordaos&sinonimo=true&plural=true&page=1&pageSize=10&sort=_score&sortBy=desc&isAdvanced=true. Acessado em: 22/2/2022.

[6] MARTINS, Ricardo Marcondes. Contratações de advogados por pessoas jurídicas de direito público.. In: TAVARES, Gustavo Machado; MOURÃO, Carlos Figueiredo; VIEIRA, Raphael Diógenes Serafim. (coord.). A obrigatoriedade constitucional das procuradorias municipais Belo Horizonte. Fórum, 2022, p. 241.

[7] MARTINS, Ricardo Marcondes. Contratações de advogados por pessoas jurídicas de direito público. In: TAVARES, Gustavo Machado; MOURÃO, Carlos Figueiredo; VIEIRA, Raphael Diógenes Serafim. (coord.). A obrigatoriedade constitucional das procuradorias municipais Belo Horizonte. Fórum, 2022, p. 23/24.

[8] VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Procurador municipal — teto de remuneração — inteligência do art. 37, inciso XI, da Constituição Federal. In: NASCIMENTO, Carlos Valder do; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MENDES, Gilmar Ferreira. (coord.) Tratado de direito municipal. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 465.

[9] VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Procurador municipal — teto de remuneração — inteligência do art. 37, inciso XI, da Constituição Federal. In: NASCIMENTO, Carlos Valder do; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MENDES, Gilmar Ferreira (coord.) Tratado de direito municipal. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 466.

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