Público & Pragmático

O controle do exercício regulamentar das agências reguladoras

Autor

  • José Maciel Sousa Chaves

    é advogado juiz do Tribunal Administrativo Tributário de MS especialista em Direito Constitucional Tributário pela PUC-SP Direito e Processo Penal pelo Ebradi e mestrando em Direito pelo IDP-DF.

22 de janeiro de 2023, 8h00

1. Introdução
Em sede administrativa, casos concretos que reclamam regulamentação ou mesmo aqueles que visam se esquivar de regras antipáticas, geralmente evidenciam o Poder Judiciário como protagonista para a resolução de conflitos. Não raramente a Jurisdição Constitucional é provocada a responder por demandas cujo objeto emerge das necessidades dinâmicas do mundo contemporâneo não resolvidas pela administração pública.

No âmbito das agências reguladoras, essa avocação sui generis de competência regulamentar pelo Poder Judiciário decorre de dois fatores: primeiro, da ausência ou inadequação do exercício de regulação administrativa e, em segundo, da ausência ou inadequação de regulação pelo Poder Legislativo.

Essa última — ausência de regulação pelo Poder Legislativo — é a causa maior do que vem a ser chamado de ativismo judicial, cuja abordagem mais eufêmica a identifica como sendo uma atitude, uma escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance [1], mas que na prática revela-se um mecanismo que, se usado for, que seja em caráter excepcional e com imensa cautela, sob pena de tornar obsoleta a bem desenhada tripartição dos poderes e, o que é pior, permitir o pernicioso ressurgimento da discricionariedade judicial [2].

Por ora, não trataremos especificamente das nuances acerca da invasão dos espaços do Poder Legislativo pelo Poder Judiciário, mas sim de primeiro exaltar a existência de espaços específicos que, em regra, não devem ser usurpados entre os Poderes; e, em segundo, identificar o surgimento de uma nova espécie de regulação e sua evolução enquanto fonte primária.

Tais noções nos permitem identificar a existência de uma reserva de regulação da administração pública no âmbito das agências reguladoras, mas que cuja inércia ou inadequação pode resultar na atuação substitutiva do Poder Legislativo, além da inafastável provocação do Poder Judiciário.

2. A reserva de regulação administrativa
A reserva de regulação é uma variante da reserva de administração. Dentro do conceito de reserva de administração, há uma análise mais específica que se refere à atuação regulatória do Estado. Com apoio nas ideias de especialização funcional e capacitação técnica das entidades regulatórias administrativas, é possível, em tese, identificar a existência de uma reserva de regulação.

Nesses contornos, a regulação aparece como função atípica de setores específicos da administração, resultando em uma atividade multifacetária, que perpassa diversas funções distintas e necessárias para a manutenção do equilíbrio sistêmico do objeto regulado [3].

A CF/88 adotou um modelo de Estado regulador quando, em seu artigo 174, salienta que "como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado".

Da conjugação dessa norma com o artigo 173 da CF/88, conclui-se que há um direcionamento constitucional dirigido ao Estado no que toca ao dever de regular, interagir e integrar a realidade econômica brasileira.

Com brilhantismo, Sérgio Guerra bem define que a regulação existe quando a classe política se libera de uma parte de seus poderes a favor de entidades não eleitas pelo povo, que são capazes de bloquear as decisões das eleitas [4], sendo que tal cenário reclama não somente a separação entre o os entes governamentais e os operadores, mas também o distanciamento entre o poder regulador e o governo, para que as decisões tomadas não sejam vulneráveis aos anseios de natureza política.

Esse é um panorama desejável do que seria a reserva de regulação da administração pública Indireta.

3. As discussões sobre a regulação administrativa no âmbito do STF
O tratamento da matéria se inaugura no âmbito das cortes superiores com a ADI 1.949, que discutia a constitucionalidade de previsões da Agência Reguladora do Rio Grande do Sul. No caso, discutia-se o julgamento de medida cautelar, cuja questão de fundo era a possibilidade de condicionar a nomeação de conselheiros à aprovação da Assembleia Legislativa e se os conselheiros, apesar de estar proibida a demissão ad nutum pelo Executivo, poderiam ser submetidos ao mesmo ato (demissão) pela própria Assembleia Legislativa. Essa última hipótese foi taxada inconstitucional pelo STF.

A celeuma inaugural, portanto, era se essa nomeação poderia ser submetida ao exame da Assembleia, o que levantava a dúvida sobre a autonomia administrativa da agência reguladora. Tais questões colocam em xeque a própria existência das agências reguladoras enquanto produtoras de normas, já que não integram o Poder Legislativo.

Passados 17 anos dessa discussão, o assunto novamente veio à tona através da interessantíssima ADI 5.501, que liminarmente suspendeu os efeitos da Lei 13.269/16, que autorizava a comercialização e o uso da fosfoetanolamina sintética (pílula do câncer).

A referida lei foi declarada inconstitucional, por apertada maioria de votos [5], a partir do voto do relator. Ficou condensada a ideia de que o STF partiu da noção de separação de poderes e de especialização funcional para justificar a capacitação técnica da Anvisa como agência reguladora apta para realizar a análise da viabilidade de uso e comercialização de medicamentos. Tratou-se, portanto, de dirimir sobre a primazia normativa, cuja fonte primária de emissão normas, nesse caso, deve advir da agência reguladora respectiva.

Posteriormente, sobreveio a ADI 4.874, cujo mérito foi julgado em 2018. A discussão tratava da possibilidade de adição de substâncias ao tabaco. O STF foi chamado a dirimir sobre a possibilidade de serem proibidas, pelas agências reguladoras, certas atividades econômicas, além de intervir na própria esfera particular dos indivíduos que desejavam consumir cigarros com determinados sabores.

Aqui, o STF novamente assume um viés pró-reguladoras, deixando assentada a ideia de que a função normativa das agências não se confunde com a função regulamentadora da administração (artigo 84, IV, CF/88[6]), tampouco com a figura do regulamento autônomo (artigos 84, VI, 103-B, § 4º, I, e 237 da CF/88). A competência normativa, então, reassume novos contornos para a definição de sua amplitude quanto ao exercício do direito de regulação pela administração pública.

Por fim, encerrando os precedentes mais importantes sobre a matéria, surge a ADI 6.276, cujo mérito foi julgado em setembro de 2021. Na referida via foi discutida a constitucionalidade da Lei 13.848, que novamente revisitou matérias apreciadas na ADI 1.949, mas de forma mais específica. No caso, a requerente da medida defendeu que os dispositivos legais impugnados estabeleceram restrições inconstitucionais para participação na estrutura diretiva de agências reguladoras, porquanto são discriminatórios no que toca às atividades sindicais.

Apesar de ser afeto à atividade normativa das agências reguladoras, esse julgamento, na verdade, ressalta mais a competência do ente administrativo para tratar de questões interna corporis do que permitir a sua intervenção na atividade econômica. Diz respeito mais ao filtro que deve ser imposto para que as funções específicas do setor sejam atendidas de forma eficiente e adequada.

O assunto ainda é nebuloso, embora sua compreensão venha galgando passos relevantes. Não quanto à possibilidade de que as agências reguladoras emitam normas e regulamentos, não quanto à existência de uma discricionariedade técnica que denotaria, em tese, capacitação do corpo funcional desses órgãos, mas sim quanto às matérias que estariam as agências reguladoras aptas a adentrar e em quais dimensões pessoais, temporais e espaciais tais influências poderiam molestar a atividade econômica e as liberdades individuais.

4. Invalidação e supressão de atos das agências reguladoras
Dentro de um contexto moderno de direito administrativo, é inevitável que se reconheça o exercício regulamentar das agências regulatórias como uma função típica desses órgãos da administração, classificação essa que não destitui os conceitos clássicos de direito administrativo, mas propõe uma nova perspectiva da matéria, cujo estudo, em um futuro próximo, não será mais possível ser dissociado do direito econômico.

Já há, na doutrina, vozes mais ousadas e otimistas quanto ao reconhecimento de uma trivalência de funções atribuídas às agências reguladoras [7]. Ao nosso sentir, essa positiva perspectiva ainda não condiz com estágio em que se encontram as discussões, principalmente em âmbito judicial, sobre a solidez e a extensão da competência normativa das agências reguladoras.

Não por outra razão, o Poder Judiciário, ainda que venha se inclinando em sentido favorável à possibilidade de regulação das agências, se põe a enfrentar, de forma material, o conteúdo das normas emitidas.

Ademais, até hoje se nota certo "mal-estar democrático" decorrente exclusivamente da criação das agências reguladoras [8], não sendo possível ainda o reconhecimento de uma estrutura sólida, polivalente e uniforme desses entes, com setores devidamente organizados e aptos a fornecer segurança jurídica aos administrados.

Não poderia deixar de mencionar também a constante insatisfação dos regulados quanto ao modelo de regulação tradicional conhecido como "comando e controle", pautado essencialmente na emissão de pesados comandos sancionatórios que, na maioria das vezes, são ineficazes e estimulam a judicialização dos casos.

Assim, os atos administrativos emanados na qualidade de normas produzidas pelas agências reguladoras ainda estão sujeitos ao controle pelo Poder Judiciário e, sim, ao possível exercício predatório de suas competências, pelo Poder Legislativo.

Na medida em que fica evidenciado o propósito de se sedimentar a competência normativa das agências reguladores como fonte primária, a coexistência de um controle desses atos pelo Poder Judiciário se mostra, além de constitucionalmente inafastável, extremamente necessária. Ora, se ao Poder Judiciário cabe apreciar a inconstitucionalidade de normas advindas do Poder Legislativo, é evidente que também está credenciado a fazê-lo sob o âmbito das normas expedidas pelas agências reguladoras.

Não por outra razão, já em 1997 o STF determinou a suspensão[9] da eficácia de dispositivo da Lei da Anatel que conferia à agência poderes normativos para dispor sobre o procedimento licitatório de outorga do serviço de telefonia de forma diversa da prevista na lei geral de licitações.

Não se trataria mais de invasão do mérito administrativo, ou mesmo em uma intervenção fora das automáticas possibilidades de se controlar a legalidade [10]. Trata-se de um controle a ser feito pelo Judiciário sobre atos híbridos (administrativos e legislativos) emanados por órgãos que, na maioria das vezes, não detêm a organização de normas de estrutura densas [11] para que se promulguem normas de conduta que influirão diretamente na atividade econômica e nas liberdades individuais.

Ademais, conforme lembra a boa doutrina de Processo Constitucional [12], as alterações promovidas na Lindb, em especial nos artigos 20 a 30, cuja leitura, em conjunto com o artigo 489 do CPC, constituem os mecanismos infraconstitucionais que buscam elencar critérios para se decidir adequadamente, inclusive temas complexos, e. g. invalidação de atos de Agências Reguladoras.

Quanto à supressão da competência normativa das agências reguladoras pelo Poder Legislativo, tem-se que eventual embate entre regulação administrativa e determinada legislação sempre será virtual. Em um plano real, o que se terá é um confronto entre normas de estrutura (as que criam as agências e lhes conferem determinadas competências) e normas de conduta emanadas pelo Legislativo (que usurpam a competência não exercida, ou exercida inadequadamente, pela agência reguladora, avançando ao mérito da matéria).

Sim, pois é insuficiente a disposição constitucional do artigo 174 para que se possibilite a existência das agências reguladoras. Estas, por óbvio, têm nascedouro através de lei cujas previsões disporão sobre a estrutura, organização e funcionamento desses órgãos, delimitando as competências a serem exercidas, dentre elas, a normativa.

É inegável que exista um espaço de atuação de regulação da administração pública. No entanto, não é possível que a administração pública regule determinada matéria sem que esteja formalmente legitimada para tanto. E essa legitimidade deve decorrer exclusivamente da lei.

Assim, a discussão passa pela identificação da competência, mas pode (e deve) percorrer o mérito, afinal, não é razoável que já possamos identificar certa incapacidade técnica do Poder Legislativo em detrimento de uma suposta especialização e capacitação das agências reguladoras.

Com efeito, ante a necessidade de maior maturação e eficiência por parte de algumas agências reguladoras, inexiste razão para que a lei não possa assumir, ao menos em tempos atuais, uma competência normativa supletiva em casos de omissão ou inadequação do exercício da competência normativa atribuída às agências.

5. Conclusão
A transferência de funções típicas entre Poderes, como visto, justifica-se em razão da alta complexidade dos setores econômicos [13]. Ainda em progressivo aprimoramento, essa reserva de regulação não detém totais condições para se firmar como absoluta, podendo o Poder Judiciário ou o Poder Legislativo, em hipóteses diferentes, realizar o controle desse exercício regulamentar quando não exercido ou quando exercido inadequadamente.

Inobstante essa constatação, é preciso dar tempo ao tempo: o remédio não é recomeçar essa sistemática, transferindo a conselhos ou ministérios, por exemplo, a tarefa de produção normativa no âmbito das agências reguladoras. Em coexistindo a reserva de regulação administrativa com os Poderes Legislativo e Judiciário, é almejável o fortalecimento das funções híbridas da administração pública, hoje tão necessárias à efetividade e à segurança jurídica dos setores regulados.

 


[1] BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo, 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 442.

[2] Lenio Streck bem pontua que a vontade e o conhecimento do magistrado não constituem salvo conduto para decidir como quiser (STRECK, Lenio. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas, 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 39)

[3] FONSECA, Francisco José Defanti. Reserva de Regulação da Administração Pública. In: GUERRA, Sérgio. Teoria do Estado Regulador. Volume II. Curitiba: Juruá, 2016, p. 143.

[4] GUERRA, Sérgio. Discricionariedade, Regulação e Reflexividade. Uma Nova Teoria Sobre Escolhas Administrativas. 3ᵃ ed. Belo Horizonte: Fórum, 2015, p. 94-95.

[5] Por maioria, foi concedida a liminar, eliminando os efeitos da autorização legal, vencidos os ministros Fachin, Rosa Weber, Dias Toffoli e Gilmar Mendes.

[6] Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: (…) IV – sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução;

[7] MARTINS, Ives Gandra. Perfil Constitucional Das Agências Reguladoras. In: COSTA, Daniel Castro Gomes da; FONSECA, Reynaldo Soares da. Direito Regulatório: Desafios e perspectivas para a Administração Pública. Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 121-122.

[8] Egon Bockman também parte da premissa de que existe um verdadeiro “mal-estar democrático” advindo especificamente do surgimento das agências reguladoras, o que faz com que sejam criados mecanismos aptos a lhe conferir legitimidade (MOREIRA, Egon Bockman. Agências Reguladoras Independentes, Déficit Democrático e a "Elaboração Processual de Normas". Belo Horizonte: Revista de Direito Público da Economia – RDPE, 2003, p. 222).

[9] STF, ADIn 1.668, rel. min. Marco Aurélio de Mello, DJ 23.10.97.

[10] Conforme as lições de Seabra Fagundes, "ao Poder Judiciário é vedado apreciar, no exercício do controle jurisdicional, o mérito dos atos administrativos. Cabe-lhe examiná-los, tão-somente, sob o prisma da legalidade. Este é o limite do controle, quanto à sua extensão" (FAGUNDES, M. Seabra. O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 145)

[11] Aqui estamos a falar de normas de competência, de tramitação, de aprovação e demais técnicas legislativas das quais não a administração pública ainda não tem o efetivo domínio, se comparadas ao Poder Legislativo.

[12] ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro. 5ᵃ ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2021, p. 347.

[13] Nesse sentido: FONSECA, Francisco José Defanti. Op Cit., p. 159.

Autores

  • é advogado, juiz do Tribunal Administrativo Tributário de MS, especialista em Direito Constitucional Tributário pela PUC-SP e em Direito e Processo Penal pelo Ebradi e mestrando em Direito pelo IDP-DF.

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