Público & Pragmático

Breves impressões sobre a temida PEC dos Freios e Contrapesos

Autor

  • José Maciel Sousa Chaves

    é advogado juiz do Tribunal Administrativo Tributário de MS especialista em Direito Constitucional Tributário pela PUC-SP Direito e Processo Penal pelo Ebradi e mestrando em Direito pelo IDP-DF.

8 de janeiro de 2023, 8h00

1. A proposta
Após reclames da FPE (Frente Parlamentar do Empreendedorismo) quanto à amplitude das funções exercidas pelas agências reguladoras, foi assinada uma Proposta de Emenda Constitucional para remodelar consideravelmente as atividades executiva, normativa e julgadora no âmbito dessas entidades.

O documento visa ao acréscimo do artigo 37-A à Constituição Federal, dispondo que a administração pública direta e indireta "será organizada e funcionará por meio da separação e autonomia entre os órgãos responsáveis pelas atividades executiva, normativa e de contencioso administrativa".

Na condição de entidades integrantes da administração pública indireta, as agências reguladoras surgem como alvo desse acréscimo de norma constitucional e, sem o propósito de esgotar as impressões sobre a proposta, alguns pontos merecem ser refletidos diante da possibilidade de vingar a sua aprovação.

2. Redistribuição de competências
As agências, que hoje exercem cumuladas atividades de natureza executiva, normativa e julgadora, passariam apenas a exercer alguma atividade de natureza executiva e de modo concorrente com outros órgãos.

A tarefa de distribuir competências entre agências, secretarias, ministérios e autarquias acerca da implementação de políticas públicas, prestação direta de serviços públicos e fiscalização, caberia à norma infraconstitucional e, por ora, não se sabe quais dessas funções ainda restariam a cargo das agências.

As alterações mais contundentes viriam nos planos da regulação e da estruturação dos julgamentos administrativos independentes, atividades essas hoje concentradas na esfera de atribuições das agências reguladoras. É sob essas duas facetas que analisaremos a proposta, abordando pontos negativos e positivos dessa possível mudança de perspectiva normativa.

Tal investida é fruto da insatisfação de alguns setores regulados com a postura das agências reguladoras, que em sua maioria ainda adotam o modelo de comando e controle para a imposição de sanções, além de oferecerem julgamento de impugnações e recursos no próprio âmbito das agências, sugerindo certa desconfiança quanto a imparcialidade dos órgãos julgadores.

2.1. Poder normativo das agências reguladoras
A começar pela parte nebulosa da proposta, a atividade normativa, hoje assumida pelas Agências, passaria a ser exercida por meio de Conselhos ligados aos Ministérios e secretarias que atuarão nas funções de regulação, deslegalização e edição de atos normativos infralegais.

Nota-se um propósito de democratizar e, com isso, burocratizar o processo de produção de normas, tornando-o similar ao existente no Poder Legislativo: aumentar-se-iam os trâmites, as fases deliberativas e a participação de mais atores.

Merece destaque também a menção de "deslegalização" de atos normativos infralegais. Apesar de parecer um termo inofensivo, deslegalizar, tecnicamente, é retirar a dependência da lei para tratamento de determinada matéria, cujo poder regulamentar passaria a ser exercido por atos normativos de menor envergadura, tais como regulamentos administrativos.

A rigor, somente a própria lei teria aptidão para deslegalizar determinadas matérias, e sob elas, dirimir uma nova competência regulamentar. Isso porque a ideia de deslegalizar está associada a hierarquia normativa.

No entanto, mesmo sem essas normas de estrutura ditadas pelo Poder Legislativo, o STF já vem reconhecendo a existência de espaços normativos ocupáveis pelas Agências, dado a complexidade técnica das matérias reguladas: trata-se da denominada reserva de regulação.

Essa complexidade técnica das matérias submetidas a apreciação da administração pública denuncia até certa limitação sofrida pelo Poder Judiciário. O controle desses atos administrativos tende a ser reduzido [1], na medida em que a capacidade técnica dessas entidades lhes confere poder de atuação específico e direcionado na seara econômica, tendo seus atos maior capacidade de intervenção do que os emanados pelo Poder Legislativo, de caráter genérico [2].

Mas o projeto vai além. A "deslegalização" referida no texto assumiria um outro contexto, qual seja, o de deslegalizar aquilo que, como dito, já vem sendo "deslegalizado". Seja qual for o termo, não há ainda elementos que nos permitem aferir a capacidade técnica desses novos legitimados referidos no projeto para estabelecerem as regras antes ditadas pelas agências reguladoras. A identificação de uma reserva de regulação das agências reguladoras, mesmo que não seja absoluta, é fruto de uma constatação histórico-evolutiva dessas entidades, aliada a um juízo prospectivo positivo quanto à eficiência dos modelos de regulação testados e revistos, além dos mecanismos de aferição pragmática e teleológica (avaliação regulatória) dessas normas quanto ao resultado produzido nos setores regulados.

Como denota a própria qualificação desses órgãos, a razão de ser das Agências é justamente a regulação. No Brasil, a criação desses órgãos se deu na década de 1990, fruto das novas feições de um paradigma de Estado Regulador, isto é, propenso a uma intervenção estatal de caráter mais regulatório e menos centralizador nos setores econômicos.

Hoje, após mais de duas décadas, é possível atestar certa evolução no que tange ao exercício desse poder normativo, dado o empenho dos agentes públicos em estabelecer metodologias adequadas e demonstrar alta capacidade técnica.

Merece destaque também a eficiência e dinamicidade com o qual se portam essas entidades regulatórias, na busca de um cenário mais adequado ao regulado, por vezes denunciando sua própria fragilidade e se propondo, inclusive, a reconfigurar todo seu modelo de regulação.

Exemplo disso é a postura altruísta de diversas agências reguladoras em adotar um modelo de regulação responsiva, dado ao insucesso do método tradicional de "comando e controle". Esse novo modelo, que atualmente se encontra em fase de implantação, impõe uma atividade mais complexa ao regulador, na medida em que este não mais estaria reduzido ao trabalho de impor sanções pecuniárias aos regulados, mas sim incumbido de analisar cada caso concreto para então decidir, motivadamente, qual a providência razoável cabível.

Esse tipo de esforço, que tende a tornar mais razoável a regulação de setores econômicos estratégicos, é um atestado de progresso regulatório no âmbito das agências, com vistas a valorizar o diálogo com os regulados e fornecer um cenário de segurança jurídica do qual a coletividade se beneficia.

Interromper esse ciclo não parece ser uma medida acertada, mormente no momento em que esse promissor método responsivo de regulação começa a caminhar no Brasil, dado a iniciativa de diversas agências, como Anatel, Anac ANTT, dentre outras.

Ademais, se após duas décadas de existência ainda não se vê total maturidade das agências reguladoras enquanto entes dotados de poder normativo, não se espera que outros órgãos, tais como conselhos esparsos, estariam substancialmente aptos a regular matérias de alta complexidade técnica.

2.2. Criação de tribunais administrativos
Soa oportuna a ideia de retirar das agências reguladoras a competência judicante para apreciação dos fatos sob os quais essas próprias agências lançaram normas e exercitaram seu poder fiscalizatório. Editar normas, fiscalizar e principalmente julgar são ações independentes, que requerem predicados diversos e específicos ao agente competente.

Não se pode exigir níveis de excelência em todas essas funções hoje abraçadas pelas agências, principalmente quanto à atividade julgadora, que se desenvolve adequadamente quando observados determinados nortes principiológicos constitucionais e infraconstitucionais. Esses últimos estão dispostos em normas procedimentais administrativas específicas e no Código de Processo Civil.

Além do conhecimento do direito material, um julgador administrativo deve ser bem esclarecido quanto às normas processuais e conduzir o feito adequadamente, observando todos os princípios da isonomia processual, duração razoável do processo, primazia da decisão de mérito e, dentre outros, o princípio do devido processo legal, garantindo-se o direito à produção probatória, ao contraditório e à ampla defesa — além de princípios mais específicos aplicáveis ao julgador, como o da motivação das decisões e os referidos no artigo 1º do Código de Ética da Magistratura [3], com destaque para a independência e a imparcialidade.

O princípio da motivação é o que valida e legitima as decisões. Em recente abordagem [4], pontuou-se que não é somente um dever da administração pública, mas afigura-se como um verdadeiro direito do administrado, pois visa proporcioná-lo o conhecimento dos pressupostos de fato e de direito que culminaram nas decisões estatais, mesmo porque, todo ato relevante que afete os direitos dos particulares ou implique em obrigações, exige plena motivação.

Nery Júnior [5] observa que a Constituição não dita sanções, sendo simplesmente descritiva e principiológica, afirmando direitos e impondo deveres. No entanto, "a falta de motivação das decisões é vício de tamanha gravidade que o legislador constituinte, abandonando a técnica de elaboração normativa, cominou no próprio texto constitucional a pena de nulidade".

Para além de um ônus meramente formal, a suficiência de motivação das decisões administrativas merece ser encarada com igual ou maior rigor que a exigência de motivação das decisões judiciais. Primeiro, por conter caráter de definitividade contra o Estado e, em segundo, por ditar os limites cognitivos da lide, delimitando-se a matéria possível de ser objeto de eventual controle judicial.

Também a imparcialidade e a neutralidade são predicados desejáveis de se encontrar num julgador administrativo. Não necessariamente por dolo ou outro elemento espúrio, mas se nota certa dificuldade de um agente fiscalizador se manter equidistante de seu ofício primário quando se propõe a julgar os conflitos administrativos. Se cumuladas funções fiscalizatórias e judicantes, é natural que esse julgador tenha uma predisposição de salvaguardar os interesses que pressupõe ser do Estado.

Há um abismo entre exercer a plenitude da atividade judicante e simplesmente buscar a chancela de imposições da administração. A neutralidade somente sobrevém na medida em que o julgador administrativo se liberta da função de representante de um potencial direito estatal, direcionando a sua expertise para a solução justa das controvérsias, sem qualquer interferência externa. Mais do que retidão de conduta, a imparcialidade de um julgador quer significar a sua condição de não parte, sua neutralidade, sua assubjetividade [6].

Destaca-se a existência de órgãos autônomos de julgamento que preveem o duplo grau de jurisdição administrativa com composição colegiada paritária, a fim de que a matéria tratada nas decisões singelas seja devolvida ao tribunal para uma revisão qualificada por julgadores oriundos da administração e de setores de interesses coletivos, transmitindo assim maiores feições de imparcialidade às decisões.

De acordo com o § 3º da proposta, haveria de ser desenhada uma estrutura hierarquizada e organizada de um modelo de trâmite de processo administrativo no âmbito das agências reguladoras similar ao que ocorre em seara tributária de cada ente tributante em níveis federais (Carf) ou estaduais (TAT-MS, TIT-SP).

Esses modelos de configuração de tribunais administrativos independentes seriam bons exemplos para dirimir sobre os litígios administrativos que envolvem as matérias regidas pelas agências reguladoras, possibilitando dispensar a administração pública indireta de um ônus judicante que seria mais bem desenvolvido em outro formato e sob outra competência.

3. Conclusão
Apresentamos duas impressões sobre a polêmica PEC dos Freios e Contrapesos:

Uma negativa, que exprime certa precipitação em extirpar o poder normativo das agências reguladoras, mormente em um momento de transição entre modelos regulatórios, fruto de reconhecimento dos próprios entes quanto à necessidade de adequação das providências e dosimetria das sanções impostas aos regulados. E outra, positiva, pois é oportuna a criação de órgãos de jurisdição independentes, estruturados sob duas instâncias e composição paritária, em busca da prestação imparcial da tutela administrativa.

 


 


[2] CUELLAR, Leila. As Agências Reguladoras e o seu Poder Normativo. São Paulo: Dialética, 2001, p. 129.

[3] Trata-se dos princípios da independência, da imparcialidade, do conhecimento e capacitação, da cortesia, da transparência, do segredo profissional, da prudência, da diligência, da integridade profissional e pessoal, da dignidade, da honra e do decoro.

[4] CHAVES, José Maciel Sousa. A Motivação das Decisões Administrativas Como Fator de Relevância Vinculante ao Controle Judicial. In: RIBAS, Lídia Maria; DECARLI, Gigliola Lilian. Acesso à Justiça: Mecanismos de Solução de Conflitos e Sustentabilidade Responsiva. São Paulo: Dialética, 2022, p. 306.

[5] NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição federal. 8ᵃ ed. São Paulo: RT, 2004, p. 219.

Autores

  • é advogado, juiz do Tribunal Administrativo Tributário de MS, especialista em Direito Constitucional Tributário pela PUC-SP e em Direito e Processo Penal pelo Ebradi e mestrando em Direito pelo IDP-DF.

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