Opinião

AGU, 30 anos, e a tarefa do curador da constitucionalidade das leis

Autor

  • José Levi Mello do Amaral Júnior

    é professor associado de Direito Constitucional da USP professor do mestrado e do doutorado em Direito do Ceub livre-docente doutor e mestre em Direito do Estado procurador da Fazenda Nacional cedido ao TSE e secretário-geral da Presidência do TSE.

15 de fevereiro de 2023, 6h05

A propósito do aniversário da Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União, Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993, a revista eletrônica Consultor Jurídico, pelo seu diretor, Márcio Chaer, convida-me para um balanço da minha gestão.

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A sabedoria popular ensina que ninguém é bom juiz em causa própria. Portanto, prefiro deixar qualquer juízo mais específico acerca do período em que estive à frente da Advocacia-Geral da União para quem eventualmente desejar cuidar do assunto.

Por outro lado, nada impede que eu lembre — sem maiores juízos de valor — daquele período, de exatos 11 meses, entre 29 de abril de 2020 e 29 de março de 2021. Assim, limito-me, aqui, a: (1) recordar alguns casos em que atuei; e a (2) refletir sobre o que seria uma advocacia de Estado.

Foi um período bastante intenso, com desafios muito peculiares ao período pandêmico. Dediquei-me à representação da União, em especial, mas não só, perante o Supremo Tribunal Federal.

Escrevo "não só" porque também tive o privilégio de atuar diretamente, inclusive fazendo sustentações orais, junto ao Superior Tribunal de Justiça, ao Tribunal de Contas da União, à Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais, bem assim participei de audiência de conciliação junto à Vara Federal da Subseção Judiciária de São João del-Rei (MG), realizada em 8 de julho de 2020, em causa relativa à reabertura da Escola de Cadetes do Ar (Epcar).

*Leia também os artigos dos AGUs Dias ToffoliFábio Medina OsórioGrace MendonçaLuis Inácio Lucena Adams e José Eduardo Martins Cardozo

Representar a União significa representar todos os Poderes da União, não apenas o Poder Executivo, mas, também, os Poderes Legislativo e Judiciário, aí incluídas as respectivas projeções, como o Tribunal de Contas da União, o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público.

Assim, ocupei, com muita honra, a tribuna do Supremo Tribunal Federal, na condição de advogado-geral da União, quase que semanalmente (para várias sustentações orais e outras manifestações, por exemplo, audiências públicas e homenagens, como ao ministro Dias Toffoli, quando S. Exa. deixou a Presidência do Supremo, e ao ministro Celso de Mello, por ocasião da aposentadoria de S. Exa.).

Foram mais de quinze sustentações orais sobre causas as mais diversas. Recordo, em uma ordem mais ou menos cronológica: (1) a flexibilização da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) em face do contexto pandêmico; (2) o acordo entre União e Estados sobre a Lei Kandir, acordo de que participei como procurador-geral da Fazenda da Nacional e como advogado-geral da União; (3) a constitucionalidade, por dez votos a um, dos honorários; (4) a constitucionalidade da "Super Receita"; (5) a distinção entre desestatizar e desinvestir, causa bilionária e estratégica para União no que se refere à política energética; (6) a liberdade religiosa em face de concursos públicos realizados em dia de sábado; (7) a constitucionalidade do contrato de trabalho intermitente; (8) a constitucionalidade de aspecto da Lei Geral das Antenas; (9) a evidente inconstitucionalidade da chamada "legítima defesa da honra"; (10) a constitucionalidade da disciplina legal do direito de resposta; (11) a pretensa omissão no que se refere à criação de um Ministério Público de Contas junto ao Tribunal de Contas do Município de São Paulo.

Poderia, ainda, mencionar outros feitos em que atuei de modo direto ou indireto, como, por exemplo, as informações prestadas acerca da interpretação do artigo 142 da Constituição. Em manifestação expressamente por mim aprovada, a Advocacia-Geral da União, por meio da Consultoria-Geral da União, inclusive reportando-se a manifestações acordes do Ministério da Defesa e da Subchefia para Assuntos Jurídicos, protocolou, no Supremo Tribunal Federal, manifestação recusando um pretenso "poder moderador" em favor das Forças Armadas. Poder Moderador é instituição que remonta a Benjamin Constant, constou da Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824, foi extinto quando da Proclamação da República, encontrou um sucedâneo na Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934, cujos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário eram "independentes e coordenados entre si" (Constituição de 1934, artigo 3º), coordenação essa que era confiada ao Senado (Constituição de 1934, artigo 88). Ora, pretender atribuir um (inexistente) "poder moderador" às Forças Armadas seria reduzir a Constituição a uma mera folha de papel, nos termos da narrativa de Ferdinand Lassalle [1]. Como já tive oportunidade de anotar em sede doutrinária [2], é fácil constatar que, na prática, Lassalle troca o Direito pela força, sobretudo a força militar como fator real de poder. Porém, o constitucionalismo, em seu papel de limitar o poder, evoluiu de modo muito mais construtivo, como se pode constatar, por exemplo, do contraponto feito por Konrad Hesse [3].

Por fim, gostaria de fazer algumas reflexões acerca da Advocacia-Geral da União enquanto instituição de Estado. Para tanto, menciono, porque ilustrativos, quatro episódios, a saber:

(1) a morte de Sócrates, em 399 a.C.: Sócrates aceitou a condenação à morte para não contrariar as leis da pólis;

(2) S. Thomas More, patrono dos governantes e dos políticos, canonizado por são João Paulo 2º, em 31 de outubro de 2000: condenado à morte, sob Henrique 8º, disse, antes de ser decapitado, que "morria como bom servo do Rei, mas primeiro de Deus";

(3) a certificação dos votos eleitorais pelo então vice-presidente dos Estados Unidos, Al Gore, em 6 de janeiro de 2000: quase 21 anos depois, em matéria de 2 de janeiro de 2021, o Washington Post lembrava aquele evento com a manchete "Graça e humor: o vice-presidente que certificou a sua própria derrota eleitoral" [4];

(4) a certificação dos votos eleitorais pelo então vice-presidente dos Estados Unidos, Mike Pence, em 7 de janeiro de 2021, assim comentado por veículo de imprensa do estado da Louisiana, em 18 de junho de 2022: "As ações de Mike Pence em 6 de janeiro seriam totalmente banais — até que elas salvaram a nação" [5].

O que teriam em comum esses quatro fatos históricos e no que ajudariam na reflexão sobre advocacia de Estado?

Para refletir sobre o assunto, importa revisitar obra clássica que explica uma muito antiga tradição que se mantém: Os Dois Corpos do Rei: um Estudo em Teologia Política Medieval, de Ernst Kantorowicz.

Citando Sir William Blackstone, ensina Kantorowicz que o Rei "não é apenas incapaz de fazer errado, mas ainda de pensar errado: ele nunca pode ter a intenção de fazer uma coisa imprópria: nele não há tolice ou fraqueza"[6]. O Rei nunca julga, mas é a "Fonte da Justiça". Tem ubiquidade legal: "Sua Majestade (…) está sempre presente em todas as suas cortes, embora não possa distribuir justiça pessoalmente."[7] Corpo político e corpo natural: “Os Dois Corpos do Rei formam uma unidade indivisível, cada uma completamente contida na outra. No entanto, dúvida não há sobre a superioridade do corpo político sobre o corpo natural".[8] Quem julga são os seus ministros, que aplicam o Direito da terra (Law of the Land) em nome do Rei ainda que contra o pessoal comando do rei: ainda que seja difícil distinguir a vontade da Coroa e aquilo que quer o rei, "deve-se admitir, no entanto, que os advogados da coroa algumas vezes encontram oportunidade de distinguir entre as duas vontades, o que se tornou regra do Parlamento revolucionário no século 17"[9]. Essa compreensão de coisas ajuda a explicar porque os ingleses fizeram revoluções contra o rei, mas em nome do Rei, mantendo, até hoje, a Coroa[10].

O servidor de Estado, aí incluído de modo especial o advogado de Estado, defende os direitos fundamentais, a democracia, a Constituição, o Estado e o interesse público, inclusive em favor e para o resguardo do próprio gestor público, ainda que essa objetiva realidade não seja, ocasionalmente, percebida pelo gestor público.

Como visto acima, o advogado-geral da União representa os três Poderes da União. No que se refere ao Poder Executivo, é ele encabeçado pelo presidente da República, que concentra as chefias de Estado, de governo e da administração. O advogado-geral, lógico, assessora e representa o presidente da República no que toca às três chefias. É uma instituição de Estado, porque cuida do interesse público em sua continuidade no tempo. Obviamente, também orienta as políticas públicas do governo, apontando caminhos e opções dentro da Constituição e da legislação. É uma atividade tão complexa quanto essencial.

A tarefa de curador da constitucionalidade das leis, que é confiada de modo expresso pela Constituição de 1988 ao advogado-geral da União [11], talvez seja uma das mais ilustrativas desta realidade de coisas. Ora, se até acusados de crimes graves recebem defesa de advogados, tratamento igualmente digno pode e deve ser dedicado às leis impugnadas em sua constitucionalidade. Note-se: o advogado-geral, no desempenho desta tarefa, defende a constitucionalidade não apenas das leis da União, mas, também, das leis dos demais entes que venham a ser impugnadas no controle em abstrato de normas. No entanto, é mais do que usual a incompreensão, até mesmo da parte de profissionais experimentados do Direito, quanto a esta tarefa do advogado-geral. No mínimo, questiona-se a razão pela qual estaria o advogado-geral "intrometendo-se" em assuntos de outros entes. Em verdade, trata-se de uma muito nobre tarefa de que o advogado-geral somente é dispensado quando já há jurisprudência firme do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria em causa (por exemplo, é o que se dá em boa parte dos casos relativos a vícios de iniciativa em processo legislativo).

O que aqui escrevo aprendi, em boa medida, observando o trabalho dedicado, competente, diferenciado mesmo, de cinco advogados-gerais da União que tive o privilégio e a satisfação de servir mais de perto: refiro-me aos ministros Gilmar Ferreira Mendes, José Bonifácio Borges de Andrada, José Antonio Dias Toffoli, Luís Inácio Lucena Adams e André Luiz de Almeida Mendonça. Mais: tenho absoluta convicção de que já começou a escrever outra muito bonita trajetória o ministro Jorge Rodrigo Araújo Messias, cuja imensa capacidade também admiro de longa data.

Desde meados de 2022, estou afastado da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, cedido ao Tribunal Superior Eleitoral, para funcionar como secretário-geral da Presidência, na já histórica gestão do ministro Alexandre de Moraes, com quem igualmente muito aprendo de longa data. Essa mobilidade entre Poderes, penso eu, também é expressiva do que sejam carreiras de Estado.

Em suma, voltando a olhar para o período que cumpri como advogado-geral da União, trata-se de tempo da minha vida funcional que guardo com extremo carinho na memória, no coração. Também, aqui, digo, repito: fui muito afortunado em meu período como advogado-geral pela imensa qualidade das equipes da AGU, seja no órgão central, aí incluídos todos os órgãos de direção superior, seja nas respectivas projeções, sem nenhuma exceção. Destaco, com afeto e gratidão: (1) o dr. Fabrício da Soller, substituto do advogado-geral da União; (2) a dra. Izabel Vinchon Nogueira de Andrade, secretária-geral de contencioso; (3) o sr. Vinicius Torquetti Domingos da Rocha, procurador-geral da União; (4) o dr. Arthur Cerqueira Valério, consultor-geral da União; (5) os drs. Leonardo Silva Lima Fernandes e Ávio Kalatzis de Britto, procuradores-gerais federais; (6) o dr. Ricardo Soriano de Alencar, procurador-geral da Fazenda Nacional; (7) o dr. Edimar Fernandes de Oliveira, corregedor-geral da Advocacia da União; (8) o dr. Cristiano de Oliveira Lopes Cozer, procurador-geral do Banco Central do Brasil; (9) a dra. Iêda Aparecida Moura Cagni, secretária-geral da administração; (10) a dra. Vládia Pompeu Silva, bem assim os drs. Marcelo Carvalho dos Santos e Sérgio Guizzo Dri, adjuntos do advogado-geral da União; (11) o dr. Vinicius Brandão de Queiroz, chefe de gabinete do Advogado-Geral da União; (12) a dra. Fernanda Regina Vilares, bem assim os drs. Paulo José Leonesi Maluf e Paulo Henrique Kuhn, assessores especiais do advogado-geral da União; e (13) as sras. Liliane Elias Esteves e Ana Paula Ergang, respectivamente, chefes do cerimonial e da assessoria de imprensa da Advocacia-Geral da União. Nas pessoas delas e deles agradeço, sempre, de modo renovado, a todas as equipes de colegas da Advocacia-Geral da União.

Feliz aniversário, Advocacia-Geral da União! Feliz Aniversário, colegas!


[1] LASSALLE, Ferdinand. A essência da Constituição, 6ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.

[2] AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Constitucionalismo e conceito de Constituição in Revista de Direito Público, nº 98, março-abril/2021, p. 705.

[3] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição (tradução de Gilmar Ferreira Mendes), Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991.

[6] KANTOROWICZ, Ernst. The King’s two bodies: a study in medieval political theology, New Jersey: Princeton University Press, 2016, p. 4.

[7] KANTOROWICZ, The King’s two bodies…, p. 5.

[8] KANTOROWICZ, The King’s two bodies…, p. 9.

[9] KANTOROWICZ, The King’s two bodies…, p. 18. Confira-se outro excerto: "() in the name and by the authority of Charles I, King body politic, the armies which were to fight the same Charles I, king body natural". (KANTOROWICZ, The King’s two bodies…, p. 21).

[10] Importante curiosidade que Ernst Kantoriwicz ensina: "O conceito jurídico dos Dois Corpos do Rei (…) não pode ser separado de Shakespeare". (KANTOROWICZ, The King's two bodies…, p. 26). Kantorowicz examina vários excertos de Shakespeare, por exemplo, nas meditações de Ricardo II, em que se lê: "Gêmeo nascido com grandeza (…)". A "geminação" real, aqui, é referência aos Dois Corpos do Rei (KANTOROWICZ, The King's two bodies…, p. 24).

[11] Constituição, art. 103, § 3º.

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