Opinião

AGU de 2023 encontra-se com a de 1993: 30 anos de democracia

Autores

  • Luis Inácio Lucena Adams

    é sócio de Tauil & Chequer Advogados associado a Mayer Brown ex-advogado geral da União ex-procurador Geral da Fazenda Nacional pós-graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e bacharel pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

  • José Eduardo Martins Cardozo

    é ex-ministro da Justiça professor da PUC-SP e consultor no caso inglês de Mariana (pelas vítimas).

14 de fevereiro de 2023, 6h08

A Advocacia-Geral da União (AGU) nasce no texto da Constituição Cidadã como uma grande novidade no universo jurídico brasileiro. Até a promulgação da Carta de 1988, a representação da União era exercida pelo Ministério Público Federal, sistema comum aos países da península ibérica, em que o órgão incumbido da persecução penal também concentrava a defesa do Estado.

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A novidade constitucional que se fez na constituinte, cujo patrono foi o saudoso jurista Saulo Ramos, teve um alcance único no fortalecimento da democracia e do Estado, como passamos a comentar.

O primeiro efeito visível foi o de estabelecer uma autonomia mais clara do governo e do Ministério Público, já que a vinculação anterior gerava uma ambiguidade na atuação desse órgão ministerial. De um lado, fiscalizava a ação governamental e patrocinava a ação penal que incluía agentes do Estado, do outro representava e defendia judicialmente todos os órgãos estatais. Assim, com a separação promovida pelos constituintes em 1988, o Ministério Público da União e dos Estados adquire maior foco e liberdade de ação, afastando a dubiedade e contradição até então existente.

O segundo efeito é o de dar igualmente foco na defesa das políticas públicas que são adotadas pelo Executivo e pelo Legislativo. Neste sentido, a AGU tornou-se uma espécie de "cão de guarda" da escolha majoritária da população, permitindo que, no contraditório judicial e extrajudicial, as escolhas feitas pela sociedade e refletidas no Legislativo e no Executivo sejam efetivamente defendidas. As escolhas majoritárias adotadas pela sociedade por meio de seus representantes teriam um defensor ativo e altivo, capaz de reagir com presteza e qualidade aos desafios que surgem no dia a dia da aplicação do Direito.

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Nada mais evidente dessa função em defesa da democracia do que o papel atribuído ao Advogado-Geral da União de curadoria da lei, conforme previsto no § 3º do artigo 103 da Constituição Federal:

§ 3º Quando o Supremo Tribunal Federal apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo, citará, previamente, o advogado-geral da União, que defenderá o ato ou texto impugnado.

A competência constitucional acima impõe o dever de o Advogado-Geral defender a lei e não as suas convicções pessoais, morais ou jurídicas sobre uma norma cuja legitimidade venha a ser desafiada, em face do texto constitucional, no Supremo Tribunal Federal. É o dever institucional derivado da constituição de um defensor dativo para defender a norma aprovada pelos representantes da maioria da população brasileira, sejam elas federais ou estaduais. É um dever que caracteriza a Advocacia Geral da União e o advogado-geral da União como uma função de Estado e não de governo, já que o advogado-geral deve, como parte do seu múnus público, defender uma norma legal que possa ser desafiada pelo próprio presidente da República que o nomeou.

Essa obrigação moral e constitucional, que vai ao encontro das regras que o integram no sistema de instituições que são funções essenciais à justiça do Capítulo IV do Título IV da Constituição, comportam pouquíssimas exceções. A primeira delas remete ao reconhecimento e valorização dos precedentes já existentes no STF, em que é permitido ao AGU afastar-se de sua obrigação de defender a escolha majoritária quando o próprio STF já estabeleceu entendimento no mesmo sentido que o da impugnação apresentada contra a norma. Em outras palavras, se existe no Supremo Federal precedente que afirme o conflito com a Constituição no mesmo sentido do indicado pela nova impugnação, é permitido ao Advogado defender a inconstitucionalidade da norma. A referida situação foi muito comum durante o período denominado de guerra fiscal em que o estados desafiavam o Supremo reiteradamente com novas leis que repetiam leis anteriores declaradas inconstitucionais.

A segunda exceção, no nosso ponto de vista, estabelece-se quando a inconstitucionalidade é baseada no conflito de competência formal entre estados e a União. Disso decorre que o advogado-geral deve posicionar-se nesse conflito, já que a declaração de constitucionalidade de uma norma implica na inconstitucionalidade de norma igual editada por ente federativo diverso. Não pode o advogado-geral ser obrigado a defender a constitucionalidade de norma federal e estadual que estão em conflito por razão de competência federativa. Assim, ele deve emitir um juízo jurídico de qual o ente da República efetivamente competente.

Reconhecida, portanto, a função essencial à justiça e à democracia da AGU, os últimos 30 anos têm sido um constante fortalecer do seu papel institucional. A formação da Procuradoria-Geral Federal, por exemplo, veio a dar coordenação e uniformidade à atuação dos órgãos de representação judicial nas diversas esferas da administração. Além disso, o crescimento do papel da conciliação no âmbito da AGU, com a adoção das Câmaras de Conciliação e a aprovação da Lei de Transação Tributária, tornaram a instituição em um espaço de solução e pacificação de conflitos, elemento indispensável a qualquer democracia.

Mais recentemente, cremos ser um desafio à AGU, o resgate do papel da antiga Consultoria-Geral da República, que perdurou por 90 anos antes de sua substituição e que tanto honrou o Estado brasileiro. Foram consultores-gerais da República figuras como Carlos Maximiliano, Orozimbo Nonato, Themiscoles Brandão Cavalcanti (função exercida por duas vezes), Miguel Seabra, Haroldo Valadão, Brochado da Rocha, Caio Tácito, Victor Nunes Leal, Caio Mario da Silva Pereira, Adroaldo Mesquita da Costa, Paulo Brossard, Saulo Ramos, entre tantas outras figuras históricas que influenciaram de forma inigualável o nosso sistema jurídico nacional.

O resgate a que nos referimos faz-se tão mais indispensável para permitir que a formação da jurisprudência administrativa, função única do advogado-geral da União prevista no artigo 4º, inciso XI, da Lei Complementar 73, de 1993, seja capaz de prover mais segurança jurídica, menos litígio e maior credibilidade da Administração Pública junto à sociedade. O fortalecimento da Consultoria-Geral da União, que funcionalmente substituiu a Consultoria-Geral da República, é a nova frente a ser fortalecida e priorizada nos próximos anos. Somente assim o desafio da segurança jurídica poderá ser alcançado.

Mais recentemente, o ministro Jorge Messias anunciou várias iniciativas a fortalecer o papel da AGU na consolidação da democracia. São eles o Conselho de Acompanhamento e Monitoramento de Riscos Fiscais Judiciais, a Procuradoria Nacional de Defesa do Clima e do Meio Ambiente e a Procuradoria Nacional da União da Defesa da Democracia.

A conselho criado para focar nos riscos fiscais é uma medida de importância significativa, pois permite aos dirigentes da Administração Pública antecipar riscos decorrentes de conflitos existentes com setores da sociedade e, assim, prover soluções que afastem a necessidade de medidas danosas como o parcelamento de precatórios. Já a Procuradoria voltada ao meio ambiente é medida essencial a promover ações e políticas previstas em lei para enfrentar um desafio que é mundial, sendo o Brasil um dos principais atores nesse debate. Por fim, a Procuradoria de Defesa da Democracia é a mais polêmica e que depende de uma maior compreensão de como irá funcionar e atuar. Mas, igualmente, é uma iniciativa que também vai ao encontro da razão de ser da instituição: expressão de maturação e garantia da democracia. Neste passo, a AGU de 2023 encontra-se com a AGU de 1993, abrindo-se para novos ciclos de mudança e aperfeiçoamento do mais longevo período democrático brasileiro.

*Luis Inácio Lucena Adams foi advogado-geral da União de 2009 a 2016
**José Eduardo Cardozo foi AGU em 2016

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