Resolução Cidadã e abolitio criminis: uma análise dos efeitos penais da norma
6 de fevereiro de 2023, 8h00
A Resolução-TSE nº 23.659/21 trata da gestão do Cadastro Eleitoral e um dos maiores destaques do regulamento foi a reorganização dos conceitos relativos ao domicílio eleitoral, com o objetivo de fortalecer e amplificar o exercício de direitos de participação políticas pelos cidadãos, removendo obstáculos indevidamente levantados nessa seara.
Para tanto, a norma estabeleceu:
"Art. 23. Para fins de fixação do domicílio eleitoral no alistamento e na transferência, deverá ser comprovada a existência de vínculo residencial, afetivo, familiar, profissional, comunitário ou de outra natureza que justifique a escolha do município."
Nesse cenário, o conceito de domicílio eleitoral foi inteiramente dissociado da ideia de residência — em outras palavras, morar em uma cidade é condição suficiente para que a pessoa possa alistar-se como eleitora naquela urbe, contudo, esta não é a única condição autorizativa.
É possível comprovar o vínculo e, consequentemente, realizar a inscrição eleitoral, valendo-se de outros elementos como a propriedade de imóveis, o exercício de atividades laborativas, a residência de parentes próximos, o nascimento no local, a matrícula em estabelecimentos de ensino, o recebimento de benefícios sociais naquela localidade, entre outros diversos.
A relação política entre uma pessoa e uma urbe que deve guiar o exercício do direito de voto é complexa e envolve interesses variados e não pode estar limitada à moradia, tanto mais em uma sociedade com relações complexas em rede como a que existe atualmente.
A alteração normativa perpetrada pela Resolução do Tribunal Superior Eleitoral, indubitavelmente, impactou de forma positiva a seara do processo eleitoral e o exercício dos direitos políticos, conquanto não esteja limitada a este ambiente.
É importante reconhecer que a alteração acabou produzindo importantes impactos na interpretação de alguns tipos penais desenhados no Código Eleitoral. Especialmente, aquele previsto no artigo 289: "Inscrever-se fraudulentamente eleitor: Pena — Reclusão até cinco anos e pagamento de cinco a 15 dias-multa".
Com a alteração normativa e abertura conceitual da expressão "domicílio eleitoral" muitas condutas consideradas ilícitas anteriormente passaram a ser completamente acobertadas pelo manto da regularidade.
A mesma compreensão deve ser empregada para a análise de declarações de punho firmada pelos eleitores afirmando possuir domicílio eleitoral em uma determinada circunscrição. Nesse caso, é de se afastar a figura a falsidade ideológica eleitoral, assim desenhada:
"Art. 350. Omitir, em documento público ou particular, declaração que dêle devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, para fins eleitorais:
Pena – reclusão até cinco anos e pagamento de 5 a 15 dias-multa, se o documento é público, e reclusão até três anos e pagamento de 3 a 10 dias-multa se o documento é particular."
O crime não existe, uma vez que o conteúdo das declarações é verdadeiro, essa conclusão afasta, igualmente, a possibilidade de cogitar-se a ocorrência do crime de uso de documento falso com finalidade eleitoral: "Art. 353. Fazer uso de qualquer dos documentos falsificados ou alterados, a que se referem os artigos. 348 a 352: Pena – a cominada à falsificação ou à alteração".
Por outro lado, é certo que os crimes contra a fé pública, grupo no qual se insere a falsidade ideológica eleitoral e o uso de documento falso, exigem para a sua configuração quatro elementos essenciais e inafastáveis: dolo, imitação da verdade, alteração da verdade e potencial de dano.
Entendimento que já foi confirmado pelo TSE:
"O tipo penal da falsidade ideológica eleitoral objetiva proteger a fé pública eleitoral do falso conteúdo posto em documento verdadeiro, consumando–se com a simples potencialidade do dano, de natureza eleitoral, visado pelo agente, não sendo imprescindível, para a sua configuração, a efetiva ocorrência de prejuízo. É delito formal, cuja consumação independe de qualquer resultado naturalístico ou efetiva lesão à administração eleitoral" (TSE, CC nº 060073781, rel. min. Og Fernandes, 22/6/2020).
No caso, não há qualquer potencial de dano, tendo em vista que o eleitor passa a ter reconhecido o seu domicílio eleitoral na circunscrição, consequentemente, estará afasta a aplicabilidade dos tipos penais.
Em todos os casos o máximo da pena aponta para uma prescrição em 12 anos, o que demonstra a gravidade das condutas e o potencial de acumulação de processos referentes a isso nas Zonas e Tribunais Regionais Eleitorais.
Na prática, com a edição da Resolução Cidadã os processos penais correntes que possuem como questão nevrálgica a discussão acerca do domicílio eleitoral são diretamente afetados, pois ocorre hipótese de abolitio criminis.
A jurisprudência tem entendimento pacífico no sentido de admitir a possibilidade de ocorrência de tal efeito a partir da modificação ou edição de Resolução, conforme se depreende do seguinte julgado do STJ:
"1. As instâncias ordinárias concluíram pela extinção da punibilidade do recorrente quanto ao crime do art. 183 da Lei n. 9.472/1997, sob o fundamento de que a Resolução n° 680, de 27 de junho de 2017, que entrou em vigor no prazo de 60 dias da data da sua publicação (artigo 7°), deu nova redação à Resolução n° 614, de 28 de maio de 2013 (que, por sua vez, revogou a Res. 272/2001), deixando de exigir a outorga da ANATEL para a exploração do Serviço de Comunicação Multimídia de radiação restrita até cinco mil usuários. 2. Tendo em vista a superveniência de norma que deixa de considerar crime a conduta praticada pelo recorrente, imperiosa a aplicação da novatio legis in mellius." (STJ, REsp 1.857.832, relator: ministro Nefi Cordeiro, 2/6/2020)
De outra banda, é notório que o abolitio criminis é matéria de ordem pública, podendo ser reconhecido de ofício pelo julgador, no sentido do que é determinado pelo Código de Processo Penal: "Art. 61. Em qualquer fase do processo, o juiz, se reconhecer extinta a punibilidade, deverá declará-lo de ofício".
Dessa maneira, os processos que consideram delituosa a conduta de quem não residindo em determinado município, mas possuindo vínculo de outra ordem realizam a inscrição eleitoral devem ser atingidos pelos efeitos benfazejos da norma nova, gerando como consequência lógica o reconhecimento da extinção da punibilidade dos agentes ex officio, seguindo as diretrizes do artigo 107, III do Código Penal.
A Resolução Cidadã faz jus ao seu epíteto por conseguir amplificar o exercício da cidadania, inclusive, ao restringir a desnecessária persecução penal que atinge, especialmente, pessoas pobres, com baixo nível de escolaridade e habitantes de cidades menores afastadas dos grandes centros urbanos.
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