Tribunal do Júri

A Lei Maria da Penha e a "assistência qualificada" no Tribunal do Júri

Autor

  • Daniel Ribeiro Surdi de Avelar

    é juiz de Direito mestre e doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil) professor de Processo Penal (UTP EJUD-PR e Emap) e professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

4 de fevereiro de 2023, 8h00

A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006 — LMP) é reconhecida por ser um dos estatutos mais avançados do mundo no combate à violência de gênero. Porém, a preocupação do legislador brasileiro foi não apenas a de punir o agressor, mas de igualmente criar uma política de maior extensão preocupada na prevenção e assistência à mulher. Nesse caminho, a assistência jurídica foi consagrada nos artigos 27 e 28 da LMP, estabelecendo que em "todos os atos processuais, cíveis e criminais, a mulher em situação de violência doméstica e familiar" deverá ser assistida por profissional do Direito (advogado constituído, nomeado ou defensor público):

Spacca
"Art. 27. Em todos os atos processuais, cíveis e criminais, a mulher em situação de violência doméstica e familiar deverá estar acompanhada de advogado, ressalvado o previsto no art. 19 desta Lei.

Art. 28. É garantido a toda mulher em situação de violência doméstica e familiar o acesso aos serviços de Defensoria Pública ou de Assistência Judiciária Gratuita, nos termos da lei, em sede policial e judicial, mediante atendimento específico e humanizado."

Dessarte: (1) toda mulher em situação de violência doméstica e familiar deve ser imediatamente cientificada a respeito dos seus direitos (LMP, artigo 9º), dentre eles, o direito à assistência judiciária, objetivando preservar a sua integridade física e psicológica; e, (2) preenchendo os requisitos legais e, sendo esse o seu desejo, terá acesso ao serviço da Defensoria Pública ou de assistência judiciária gratuita, o qual deverá ser prestado mediante atendimento específico e humanizado.

Com isso, na fase processual, em todos os momentos em que sua presença se fizer necessária, a mulher deverá "estar acompanhada de advogado" (LMP, artigo 27), independentemente da sua condição econômica. Tal auxílio, contudo, guarda estreita relação com a orientação para o ato específico ao qual a mulher se fará presente, objetivando informar-lhe quanto ao seu conteúdo jurídico e finalidade, abrangendo seus direitos e obrigações.

Uma primeira questão que pode surgir, especialmente nas comarcas de pequeno porte, é o que fazer quando verificada a inexistência — ou não comparecimento — de um profissional para a audiência?

Nesse caso, entendemos que a ausência do profissional (advogado constituído, dativo ou defensor público) para acompanhar o depoimento da vítima não implicará no adiamento ou nulidade do ato processual. Primeiro, porque que a lei (LMP ou CPP) não disciplina qualquer regra a respeito do tema. Segundo, porque preservar e garantir os direitos da mulher é função articulada (LMP, artigo 9º, caput) de todos os sujeitos processuais, em especial, do magistrado e do membro do Ministério Público, os quais, inclusive, podem ser penalizados caso descumpram tal mister. Para tanto, basta voltarmos os olhos para o disposto nos artigos 201, §6º, 400-A, 474-A, do CPP e artigo 37 da LMP [1]. Assim, nada impede (na verdade, recomenda-se) que antes da sua oitiva, a vítima seja alertada quanto aos seus direitos (e obrigações) pelo magistrado, promotor de justiça, ou, ainda, por profissionais que realizam o atendimento especializado da mulher, salvaguardando-se a sua integridade física, psíquica e emocional, evitando-se uma possível revitimização com a realização de qualquer tipo de julgamento moral ou comportamental.

Mas qual é a abrangência da atuação do profissional que deverá acompanhar a mulher e atuar mediante um atendimento específico e humanizado? No que consiste a chamada "assistência qualificada"? A questão ganha relevo no Tribunal do Júri, especialmente quando a LMP não dá os necessários contornos dessa forma de assistência jurídica.

Preliminarmente, entendemos que o acompanhamento da mulher não implica na atuação automática e indiscriminada de um advogado ou defensor público para todos os demais atos processuais e, tampouco autoriza uma participação diversa da prévia orientação e acompanhamento do depoimento. Ou seja, resta vedado que tal profissional passe a inquirir a vítima (ou testemunhas/informantes), interrogar o acusado, juntar documentos, oferecer alegações finais, etc. Para tanto, faz-se necessária a formalização da atuação como assistente de acusação, a qual, sem prejuízo de posterior adequação, pode ser autorizada no mesmo ato, fazendo-se constar da ata da audiência.

Agir de modo contrário é subverter as regras de regência do rito do júri, ou seja, o CPP. Se a intenção da LMP fosse a de criar uma nova figura processual para além da assistência de acusação, ou, quando menos, equiparar a assistência qualificada às prerrogativas de tal figura processual, teria assim previsto expressamente na própria lei, ou acrescentado regra própria no corpo do CPP.

Uma interpretação ampliativa de tal figura ("assistência qualificada") coloca em risco outras regras e princípios, em especial, o devido processo legal, a paridade de armas e a plenitude de defesa. A atuação no rito do júri, em especial, no plenário, é regida por regras específicas que estipulam prazo para a habilitação (CPP, artigo 430), juntada de documentos (CPP, artigo 479), nulidades de plenário (CPP, artigo 478), dentre outras, que visam equilibrar o julgamento e precisam ser respeitadas.

Tal entendimento em nenhum momento contribuiria para que a vítima restasse desamparada ou deixasse de ter a visibilidade que a lei lhe conferiu, pois, mesmo não possuindo recursos para contratar um advogado, nada impediria que a própria Defensoria Pública atuasse na qualidade de assistente da acusação:

"RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. ATUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA COMO ASSISTENTE DE ACUSAÇÃO: POSSIBILIDADE. DESNECESSIDADE DE NORMA REGULAMENTAR ESTADUAL AUTORIZANDO O EXERCÍCIO DE TAL FUNÇÃO. INEXISTÊNCIA DE EMPECILHO A QUE A DEFENSORIA REPRESENTE, NO MESMO PROCESSO, VÍTIMA E RÉU. DIREITO DE ACESSO UNIVERSAL À JUSTIÇA. 1. Nos termos do art. 4º, XV, da Lei Complementar 80/1994, é função da Defensoria Pública, entre outras, patrocinar ação penal privada e a subsidiária da pública. Sob esse prisma, mostra-se importante a tese recursal, pois, se a função acusatória não se contrapõe às atribuições institucionais da Defensoria Pública, o mesmo ocorre com o exercício da assistência à acusação. Precedentes. 2. "A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, notadamente pela defesa, em todos os graus de jurisdição, dos necessitados (art. 134 da CR). Essa essencialidade pode ser traduzida pela vocação, que lhe foi conferida pelo constituinte originário, de ser um agente de transformação social, seja pela redução das desigualdades sociais, seja na afirmação do Estado Democrático de Direito ou na efetividade dos direitos humanos, mostrando-se, outrossim, eficiente mecanismo de implementação do direito fundamental previsto art. 5º, LXXIV, da C.R" (RHC 092.877, relatora: ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, julgado em 18/4/2018, publicado no DJe de 23/4/2018). 3. Para bem se desincumbir desse importante papel de garantir o direito de acesso à Justiça aos que não têm como arcar com os custos de um processo judiciário, o legislador assegurou à Defensoria Pública um extenso rol de prerrogativas, direitos, garantias e deveres, de estatura constitucional (artigo 134, §§ 1º, 2º e 4º, da CR) e legal (artigos 370, § 4º, do Código de Processo Penal, 5º, § 5º, da Lei nº 1.060/1950, 4º, V, e 44, I, da Lei Complementar nº 80/1994), permeados diretamente por princípios que singularizam tal instituição. Assim sendo, ainda que não houvesse disposição regulamentar estadual autorizando expressamente a atuação da Defensoria Pública como assistente de acusação, tal autorização derivaria tanto da teoria dos poderes implícitos, quanto das normas legais e constitucionais já mencionadas, todas elas concebidas com o escopo de possibilitar o bom desempenho da função constitucional atribuída à Defensoria Pública. 4. Não existe empecilho a que a Defensoria Pública represente, concomitantemente, através de defensores distintos, vítimas de um delito, habilitadas no feito como assistentes de acusação, e réus no mesmo processo, pois tal atuação não configura conflito de interesses, assim como não configura conflito de interesses a atuação do Ministério Público no mesmo feito como parte e custos legis, podendo oferecer opiniões divergentes sobre a mesma causa. Se assim não fosse, a alternativa restante implicaria reconhecer que caberia à Defensoria Pública escolher entre vítimas e réus num mesmo processo os que por ela seriam representados, excluindo uns em detrimento de outros. Em tal situação, o resultado seria sempre o de vedação do acesso à Justiça a alguns, resultado que jamais se coadunaria com os princípios basilares de igualdade e isonomia entre cidadãos que norteiam a Constituição, inclusive na forma de direitos e garantias fundamentais (artigo 5º, caput, CF) que constituem cláusula pétrea (artigo 60, § 4º, IV da CF). 5. Recurso ordinário a que se dá provimento, para reconhecer o direito dos impetrantes de se habilitarem como assistentes da acusação na ação penal, no estado em que ela se encontrar" (RMS n. 45.793/SC, relator: ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, julgado em 7/6/2018, DJe de 15/6/2018) [2].

Cientes somos da existência de forte e embasado entendimento em sentido diverso [3], porém, compreendemos que não é admissível a atuação no plenário do Tribunal do Júri — espaço iluminado pela plenitude de defesa — sem a adequação à vestimenta adequada, ou seja, desuniformizada de uma das figuradas delimitadas pelo Código de Processo Penal, pois, tal agir, seria forjar um novo corpo sem prévia fixação de seus direitos e obrigações.

Ademais, a inarredável proteção das vítimas não pode solapar, em desmedida proporção, os direitos do acusado e o fair trial. Voltemos os olhos para o que reza o Estatuto de Roma (artigo 68, 1 e 3) quando trata da bilateralidade de direitos:

"1. O Tribunal adotará as medidas adequadas para garantir a segurança, o bem-estar físico e psicológico, a dignidade e a vida privada das vítimas e testemunhas. Para tal, o Tribunal levará em conta todos os fatores pertinentes, incluindo a idade, o gênero tal como definido no parágrafo 3º. do artigo 7º., e o estado de saúde, assim como a natureza do crime, em particular, mas não apenas quando este envolva elementos de agressão sexual, de violência relacionada com a pertença a um determinado gênero ou de violência contra crianças. O Procurador adotará estas medidas, nomeadamente durante o inquérito e o procedimento criminal. Tais medidas não poderão prejudicar nem ser incompatíveis com os direitos do acusado ou com a realização de um julgamento equitativo e imparcial.

3. Se os interesses pessoais das vítimas forem afetados, o Tribunal permitir-lhes-á que expressem as suas opiniões e preocupações em fase processual que entenda apropriada e por forma a não prejudicar os direitos do acusado nem a ser incompatível com estes ou com a realização de um julgamento equitativo e imparcial. Os representantes legais das vítimas poderão apresentar as referidas opiniões e preocupações quando o Tribunal o considerar oportuno e em conformidade com o Regulamento Processual."

Assim, tal entendimento não possui qualquer função limitativa dos direitos da mulher, e sim o oposto. Ter a compreensão de que a mulher pode se fazer ouvir em plenário pelo meio e modo adequado, qual seja, mediante a figura de assistente de acusação é garantir que sua participação seja ampliada, possibilitando-se, por exemplo, a juntada de documentos aos autos, a inquirição das testemunhas, a sustentação em plenário em voz até mesmo dissonante do membro do Ministério Público, o retorno em réplica, a interposição de recurso, etc. Por outro lado, a presença pelo meio e modo inadequado pode acarretar dois grandes problemas: (1) a vedação da sua atuação em plenário pelo magistrado; e, (2) a possível anulação do julgamento pelas vias recursais, momento em que a grande prejudicada será a própria vítima diante do atraso na prestação jurisdicional e na possibilidade de que o acusado, estando preso, seja colocado em liberdade.

A luta contra a violência estrutural é uma bandeira de todos, mas qualquer batalha, para ser legítima, deve ser feita dentro do campo de batalha e com o necessário respeito às regras.

 


[1] Quanto ao dever de zelar para as vítimas tenham participação efetiva na fase da investigação e no processo, recordamos ainda da Resolução nº 234 de 18/10/2021 do CNMP. Não podemos esquecer, ainda, que o desrespeito à honra da mulher pode acarretar a nulidade do ato processual, nos termos do que restou decidido na ADPF 779/DF, e é função do magistrado evitar a prática de qualquer ato passível de gerar tal vício.

[2] No mesmo sentido: AgRg no REsp nº 1.733.623/SC, relator: ministro Sebastião Reis Júnior, 6ª Turma, julgado em 4/9/2018, DJe de 17/9/2018.

[3] O Colégio Nacional dos Defensores Públicos-Gerais (Condege) por meio de sua Comissão de Defesa dos Direitos das Mulheres, elaborou o seguinte enunciado a respeito do tema: "Enunciado VI – Considerando o art. 4º, inciso XI e XVIII, da Lei Complementar 80/1994, a atuação da Defensoria Pública na defesa da mulher em situação de violência doméstica e familiar, conforme os artigos 27 e 28 da Lei Maria da Penha, é plena e não se confunde com a assistência de acusação dos artigos 268 e seguintes do CPP".

Autores

  • é juiz de Direito, presidente do 2º Tribunal do Júri de Curitiba desde 2008, mestre em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE Centro Universitário, UTP e Emap), professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

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