Retrospectiva 2023

O Direito das Relações de Consumo em 2023

Autor

  • Fabíola Meira

    é doutora em Direito das Relações de Consumo pela PUC-SP VP de Relações Institucionais da Abarec diretora do Comitê de Relações de Consumo do Ibrac e sócia do escritório Meira Breseghello Advogados.

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30 de dezembro de 2023, 13h14

Já nos primeiros dias de 2023, o Direito das Relações de Consumo passou por grandes mudanças no país. O cargo de secretário Nacional do Consumidor foi assumido por Wadih Damous, que entendeu a importância do superendividamento como um tema para atuação. Para o cargo de diretor do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor foi nomeado Ricardo Blattes, enquanto Vitor Hugo do Amaral Ferreira foi confirmado, na ocasião, como coordenador de Estudos e Monitoramento de Mercado da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) — atualmente, ele ocupa o cargo de diretor do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor e está à frente de medidas relevantes.

Proteção da mulher consumidora
Entre iniciativas de relevo da Senacon, algumas foram bastante aplaudidas, como foi o caso da Nota Técnica nº 6/2023/CGEMM/DPDC/Senacon/MJ [1], assinada em 7/3. Referida nota apresenta as Diretrizes de Proteção e Defesa da Consumidora, tais como (1) igualdade de gênero e não-discriminação; (2) garantia da proteção contra práticas comerciais desleais e contra a discriminação de gênero nas condições de acesso aos produtos e serviços; (3) promoção, educação e conscientização visando a eliminação de estereótipos e preconceitos de gênero; (4) comunicação não sexista evitando a objetificação, sexualização da mulher em campanhas publicitárias; (5) garantia de preços justos e igualdade de acesso às mulheres, não sendo permitida a aplicação de preços diferenciados sem justificativa clara e objetiva; (6) garantia de segurança e qualidade de produtos e serviços, de modo especial, a consumidora gestante; (7) participação das mulheres em órgãos e instâncias de proteção aos direitos das relações de consumo, de forma a garantir que as políticas de proteção sejam sensíveis às necessidades e aos seus interesses; (8) legislação clara e efetiva, que assegure a igualdade de tratamento entre homens e mulheres no acesso a produtos e serviços de consumo; e (9) promoção de ações afirmativas para fomentar igualdade de gênero nas relações de consumo, com incentivo à inclusão de mulheres.

Superendividamento
Na linha do que se definiu como tema de relevância para a Senacon, qual seja, o superendividamento, em abril de 2023 foi assinada a Nota Técnica nº 11/2023/CGEMM/DPDC/Senacon/MJ [2] posicionando-se no sentido da ilegalidade e inconstitucionalidade do Decreto nº 11.150/2022, que havia fixado o mínimo existencial, em R$ 303,00 (trezentos e três reais).

Na sequência, em junho de 2023, o Decreto nø 11567/23 alterou o Decreto nº 11.150/22 para o fim de majorar e fixar o mínimo existencial para R$ 600, além de estabelecer que a Senacon organizará, periodicamente, mutirões para a repactuação de dívidas para a prevenção e o tratamento do superendividamento por dívidas de consumo de forma articulada com os órgãos do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor nos estados, no Distrito Federal e nos municípios.

Enfrentamento ao racismo e ao preconceito nas relações de consumo
Tema de destaque ao longo do ano foi a Nota Técnica Nº 14/2023/CGEMM/DPDC/Senacon/MJ apresentando as Diretrizes de Enfrentamento ao Racismo nas Relações de Consumo, aqui resumidamente apresentadas: (1) a proteção da pessoa negra consumidora deve ser baseada nos princípios da igualdade e da não-discriminação; (2) garantia contra práticas comerciais racistas e contra a discriminação nas condições de acesso aos produtos e serviços, inclusive por combinações de algoritmos e impulsionamento de discurso de ódio racista em redes sociais; (3) a promoção sobre a educação e a conscientização sobre direitos e valorização da cultura da pessoa negra, visando a formação da sociedade para eliminação de estereótipos e preconceitos; (4) comunicação não racista em campanhas publicitárias, devendo a publicidade sempre atender a diversidade étnico-racial presente nas relações de consumo; (6) participação e representação das pessoas negras consumidoras em órgãos e instâncias de proteção aos direitos provenientes das relações de consumo, de forma a garantir que as políticas de proteção sejam sensíveis às necessidades e aos seus interesses; (7) proteção da pessoa negra consumidora em cooperação entre os membros do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, baseada em uma legislação clara e efetiva, que assegure a igualdade de tratamento no acesso a produtos e serviços de consumo, bem como por meio de ações afirmativas para fomentar a igualdade e o combate à discriminação racial nas relações de consumo.

No tocante ao tema da discriminação nas relações de consumo, o Procon-SP divulgou, em 29/11, pesquisa [3] respondida por 748 pessoas, das quais 37,03% afirmaram ter sido discriminadas em alguma situação de relação de consumo, na maior parte decorrente da situação financeira, depois em razão da raça/cor e pelo gênero (mulheres).

Rotulagem alimentar
Outro assunto que voltou a ser abordado no âmbito do Direito das relações de consumo envolve saúde e segurança alimentar. No caso, não obstante as normas sobre rotulagem nutricional tenham sido publicadas em 9 de outubro de 2020 (RDC 429/20) com o objetivo de facilitar a compreensão das informações nutricionais presentes nos rótulos dos alimentos, especialmente a rotulagem frontal por meios mais visuais, apenas em 9/10 deste ano (sem prejuízo das ressalvas da RDC – Anvisa nº 819/23) foi encerrado o prazo para adequação dos produtos alimentícios embalados na ausência dos consumidores às novas regras de rotulagem. Com isso, o consumidor notou que algumas embalagens de alimentos passaram a apresentar um selo frontal com símbolo de lupa informando de maneira destacada a presença de alto teor de açúcares, gordura saturada e sódio, nos termos da IN 75/2020.

Panorama judicial das relações de consumo em 2023
Acerca da judicialização das demandas de consumo, os números continuam elevados. De acordo com a 20ª edição do relatório Justiça em Números (Brasília: CNJ, 2023) [4] as demandas consumeristas constam entre os cinco maiores assuntos da Justiça Comum e Juizados Especiais, inclusive em âmbito recursal, especialmente com discussões de danos morais e materiais. Entre a “taxa de congestionamento nas varas exclusivas, por tipo de competência”, o tema “consumidor” chega a 80%.

Em relação à judicialização, a título ilustrativo trazemos algumas decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ), considerando apenas acórdãos publicados em 2023.

Nesse sentido, a 3ª Turma entendeu que notificação de inscrição em cadastro de inadimplentes não pode ser feita, exclusivamente, por e-mail ou por SMS, sendo obrigatório o envio de correspondência ao endereço do consumidor, sob o fundamento que a notificação, exclusiva, via e-mail ou SMS representa diminuição da proteção do consumidor (REsp 2.056.285).

No que se refere à representatividade adequada de associações para fins de ajuizamento de ação civil pública, a 3ª Turma decidiu que “não obstante a finalidade associativa possa ser, de forma razoável, genérica, essa amplitude não pode ser demasiadamente abrangente a ponto de salvaguardar qualquer interesse transindividual, fazendo-se referência a tudo”. No caso, considerando que a associação tinha por finalidade a proteção de 04 categorias ou interesses amplos completamente diferentes — idoso; deficiente físico; consumidor e meio ambiente —, o STJ entendeu que tal fato descaracteriza a exigência de representatividade adequada do grupo lesado, subvertendo a função social da entidade associativa (REsp nº 2.035.372/MS).

Arbitragem
Quanto à arbitragem, a 4ª Turma reforçou o entendimento de que a validade da cláusula compromissória, em contrato de adesão caracterizado por relação de consumo, está condicionada à efetiva concordância do consumidor no momento da instauração do litígio entre as partes (AgInt nos EDcl no AREsp 2.086.916/RS e AgInt no AREsp n. 2.330.021/MG).

Publicidade
A técnica publicitária conhecida como puffing também foi levada a julgamento durante 2023. Decidiu-se que anúncios de aparelhos de ar-condicionado “silenciosos” podem ser considerados técnica publicitária lícita, enaltecendo certa característica do produto (REsp nº 1.370.677/SP).  Também restou decidido que não há ilicitude na assertiva publicitária “O melhor em tudo que faz”, tendo em vista que se trata de mero exagero tolerável, sendo “razoável permitir ao fabricante ou prestador de serviço que se declare o melhor naquilo que faz, mormente porque esta é a autoavaliação do seu produto e aquilo que se busca alcançar, ainda mais quando não há qualquer mensagem depreciativa no tocante aos seus concorrentes” (REsp nº 1.759.745/SP).

Mais litígios
A desconsideração da personalidade jurídica nas relações de consumo foi diversas vezes debatida no sentido de que o artigo 28, § 5º, do CDC permite a aplicação da teoria menor, que consiste na prescindibilidade do consumidor fazer prova de fraude ou abuso de direito ou ainda a existência de confusão patrimonial, bastando que seja demonstrado (1) o estado de insolvência do fornecedor ou (2) o fato de que a personalidade jurídica represente um obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados” (AgInt nos EDcl no REsp nº 1.978.715/DF).

Além disso, a 3ª Turma reforçou que a Corte Superior “admite a existência da figura do consumidor por equiparação nas hipóteses de danos ambientais, nos termos do art. 17 do Código de Defesa do Consumidor” (AgInt no REsp n. 2.047.558/BA – AgInt nos EDcl no REsp n. 2.073.932/BA).

A 4ª Turma, ao tratar de ação revisional de contrato bancário, asseverou que o “fato de a taxa contratada de juros remuneratórios estar acima da taxa média de mercado, por si só, não configura abusividade, devendo ser observados, para a limitação dos referidos juros, fatores como o custo de captação dos recursos, o spread da operação, a análise de risco de crédito do contratante, ponderando-se a caracterização da relação de consumo e eventual desvantagem exagerada do consumidor” (AgInt no AREsp nº 2.202.138/RS).

Quanto ao conceito de consumidor, a 3ª Turma decidiu que ocorrido acidente em área comum em shopping center (banheiro), aplica-se o CDC, independentemente de se tratar de lesão em funcionária, ou seja, “o fato de a vítima ser funcionária de loja de shopping center e ter sofrido acidente durante o horário de trabalho em área de uso comum (banheiro) não afasta a aplicação do CDC” (REsp n. 2.080.225/SP).

No tocante à responsabilidade pela venda de passagens, a 3ª Turma entendeu que a “vendedora de passagem aérea não responde solidariamente com a companhia aérea pelos danos morais e materiais experimentados pelo passageiro em razão do cancelamento do voo” (REsp nº 2.082.256/SP).

No que se refere à aplicação do artigo 18, CDC, a 3ª Turma afastou o dever de restituição da quantia paga em veículo 0km, pois os vícios foram sanados em prazo razoável, ainda que ultrapassado o prazo de 30 dias, principalmente em razão de o bem ter sido utilizado normalmente por mais de três anos. (AgInt no AREsp nº 2.329.940/MG).

Quanto ao fato do serviço, a 3ª Turma embora tenha reconhecido que a concessionária que administra o metrô mantém relação consumerista com os respectivos usuários e, portanto, atrai a responsabilidade objetiva, no caso do “maníaco da seringa”, o evento danoso “foi causado diretamente por pessoa estranha aos quadros da ora recorrente e sem qualquer relação com o serviço de transporte metroviário prestado, não se tratando, portanto, de fortuito interno”, ocasião em que afastou a responsabilidade da empresa de transporte (REsp nº 1.849.987/SP).

Para a 3ª Turma, a utilização de marca como palavra-chave para direcionar o consumidor do produto ou serviço para o link de seu concorrente configura-se como meio fraudulento para desvio de clientela, porquanto permite a concorrência parasitária e a confusão do consumidor (REsp nº 2.012.895/SP).

O tema da emissão de boleto fraudulento também foi tratado pela corte, ocasião em que foi afastada a responsabilidade da instituição financeira, pois o boleto não foi emitido pela instituição, mas sim por terceiro estelionatário, sendo que o e-mail usado para o envio também não era de titularidade do banco (REsp nº 2.046.026/RJ).

Quanto ao dever de informar, o STJ concluiu que embora reconhecida relação de consumo existente entre a pessoa natural e as sociedades que prestam de forma habitual e profissional o serviço de corretagem de valores e títulos mobiliários, ainda que elevado o valor das operações realizadas e o nível de discernimento do cliente acerca do mercado, a Corte afastou a falha na prestação de serviço, pois estava clara a ciência da possibilidade de perdas superiores ao limite estabelecido no tocante à proteção contratada pelo consumidor (REsp nº 2.049.516/MS). Quanto à competência da Justiça brasileira, a 3ª Turma decidiu que contrato de prestação de serviços hoteleiros firmado com sociedade empresária domiciliada em território estrangeiro por consumidores domiciliados no Brasil permite à autoridade judiciária brasileira processar e julgar a ação de rescisão contratual. (REsp nº 1.797.109/SP).

Ainda, ao julgar o REsp 1874811-SC foram aprovadas teses no Tema 1.112, em síntese, no sentido de que no contrato de seguro de vida coletivo, cabe exclusivamente ao estipulante, a obrigação de prestar informações prévias aos potenciais segurados a respeito das condições contratuais quando da formalização da adesão, incluídas as cláusulas limitativas e restritivas de direito previstas na apólice.

Vale mencionar, ainda, os resultados da ferramenta Procon em Números. De acordo com o ProconSP, em 2023 (até 21/12), 708.359 reclamações foram recebidas [5], tendo sido aplicadas 773 multas. De acordo com o órgão, os dispositivos do CDC supostamente mais violados foram os artigos 18, seguido dos artigos 31,39, 30, entre outros em menor percentual [6].

Conar e inteligência artificial
No Conar, um destaque foi o julgamento, em agosto deste ano, envolvendo a publicidade da Volkswagen do Brasil que utilizou recursos de inteligência artificial para recriar a figura da cantora Elis Regina com sua filha Maria Rita. O julgamento debruçou-se sobre dois temas: (1) se foi respeitoso e ético o uso no anúncio da cantora e (2) se era necessária informação explícita sobre o uso da inteligência artificial no anúncio.

No caso, o órgão entendeu que se tratava de anúncio ético, sendo, assim, improcedente o questionamento de desrespeito à figura da artista, em razão do consentimento dos herdeiros, bem como pelo fato de ela aparecer cantando, conforme foi conhecida em vida, ou seja, o anúncio não apresentou a personalidade da artista de forma desrespeitosa. Quanto ao dever de informar sobre o uso da inteligência artificial na publicidade, por maioria, decidiu-se pelo arquivamento, embora muitos conselheiros tenham entendido pela necessidade de recomendação de boas práticas existentes acerca da matéria.

Cenário para o próximo ano
Para 2024, os desafios continuam em relação ao superendividamento; à judicialização; à busca da melhoria nos serviços aéreos, a teor do Comitê criado pela Senacon e Abear; à revisão de procedimentos pela Senacon para melhorar a eficiência em processos administrativos sancionatórios; à regulação ou não (PL n. 2768/22), no Brasil, das plataformas digitais em razão da Lei de Mercados Digitais da União Europeia (Regulamento (UE) 2022/1925); à atualização do CDC no que se refere ao comércio eletrônico (PL nº 3.514/15); à proteção e ao bem-estar do consumidor em razão da plataformização das relações, padrões obscuros (dark patterns) e à vulnerabilidade digital, sustentabilidade e responsabilidade social nas relações de consumo.


[1] https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/seus-direitos/consumidor/notas-tecnicas/nota-tecnica-no-6-2023-cgemm-dpdc-senacon-mj.pdf

[2] https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/seus-direitos/consumidor/notas-tecnicas/nota-tecnica-no-11-2023-cgemm-dpdc-senacon-mj.pdf

[3] https://www.procon.sp.gov.br/procon-sp-realiza-nova-pesquisa-sobre-discriminacao-nas-relacoes-de-consumo/

[4] https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/08/justica-em-numeros-2023.pdf

[5] https://www.procon.sp.gov.br/procometro/

[6] https://www.procon.sp.gov.br/normas-mais-violadas/

[7] https://www.procon.sp.gov.br/procometro/

[8] https://www.procon.sp.gov.br/normas-mais-violadas/

Autores

  • é doutora em Direito das Relações de Consumo pela PUC-SP, VP de Relações Institucionais da Abarec, diretora do Comitê de Relações de Consumo do Ibrac e sócia do escritório Meira Breseghello Advogados.

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