Opinião

Quanto vale a honra? – As baixas indenizações que estimulam ofensores

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29 de dezembro de 2023, 9h15

“Ai dos que promovem leis injustas e redigem sentenças opressoras para negar justiça aos fracos e privar do direito os pobres de meu povo de modo a despojar as viúvas e roubar os órfãos!” (Is 10,1-2. BÍBLIA SAGRADA. Aparecida-SP, Ed. Santuário, 2018, 21. impres., p. 1093).

 

Há algo de muito errado nas indenizações por danos morais que estão sendo, em regra, arbitradas pelos diversos ramos do Poder Judiciário brasileiro. De tão baixas, não estão compensando a dor do ofendido e, pior, não estão cumprindo o papel de desestímulo ao ofensor. Ao contrário: alguns se deleitam ofendendo a honra alheia por saberem, de antemão, que vão pagar pouco por serem perversos.

Os sinais estão cada vez mais nítidos. Basta querer enxergá-los.

Numa sexta-feira 13, em outubro de 2023, câmeras de um posto de abastecimento de combustível de Curitiba, capital do Paraná, registraram cenas dantescas.

Identificando-se como “empresário” e dizendo que possuía “CNPJ”, o que, na sua tosca visão lhe conferia poder e supremacia sobre o mais vulnerável, um cliente atacou ferozmente um frentista, sem se intimidar quando descobriu que estava tudo sendo gravado em vídeo, como se a suposta condição econômica mais favorável lhe outorgasse licença para sobre a honra do trabalhador tripudiar.

As imagens são claras e o som (o que é raro) bem audível e, para infelicidade do agressor, viralizaram — para utilizar expressão em voga — na internet, especialmente em plataformas de compartilhamento de vídeos e nas redes sociais em geral, causando revolta e comoção nacional. Bem rápido os fatos se tornaram também notícia na imprensa e, se alguém ainda não leu ou assistiu, é fácil encontrar [1].

No que interessa ao propósito deste texto, os ataques assim se deram (grifos nossos, sendo que as poucas e tímidas reações da vítima não estão reproduzidas):

“[…] Sou empresário, maluco. Tenho CNPJ. Tenho empresa. […] Você ganha R$ 4 mil aqui nessa bosta aqui véio. Eu pago três vezes mais só pra tá aqui te xingando de neguinho, seu otário, nordestino dos infernos. […] Ah, tem áudio essa bosta aí? [apontou para a câmera] […] eu não vim do Nordeste, dando o c… lá para chegar aqui pra vir querer tirar alguém aqui dentro. Seu cuzão. […] Ó otário. Você acha que cê dá boca, neguinho? É neguinho, macaco. […] Chama a câmera. Filma essa bosta lá. […] Veio do Nordeste para querer ser gente aqui em Curitiba? Volta pro Nordeste. Volta a comer cacto lá, ô.”

Como é possível constatar, no caso noticiado, o agressor, por ser (ou se identificar como tal) “empresário” e ter “CNPJ”, sigla do Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica, se achou no “direito” de ser racista e xenófobo. Notícias [2] dão conta de que foi denunciado e irá responder pelos crimes de injúria racial e ameaça agravadas e pelo crime de vias de fato, com o que talvez não contasse.

Além da gravidade das agressões, porém, o que chamou também a atenção foi a precificação antecipada dos inequívocos danos morais causados: até R$ 12 mil, ou seja, o equivalente a três vezes o que considerou o agressor fosse o salário do trabalhador (R$ 4 mil). Estabeleceu ele, durante a prática da ação criminosa, o teto da indenização civil, dizendo-se disposto a pagá-lo.

Triste é que a vil estimativa não está fora da realidade. E os casos se repetem aos borbotões, praticados por bárbaros, detentores ou não de CNPJ.

Houve tempo em que se justificavam os valores reduzidos com o artificioso argumento de que não se deve estimular o ajuizamento de ações por danos morais, por alguns identificado como “indústria”. Ora, o que não pode ser estimulada, aí sim, é a prática do dano em si. A aferição de sua existência ou não dependerá da análise de cada caso concreto, não se podendo generalizar para banalizar.

Fato é que as indenizações por danos morais têm sido fixadas pelos tribunais brasileiros em valores realmente ínfimos. Diante da prova cabal oriunda da gravação em vídeo, da gravidade e repercussão do caso e, por fim, do presunçoso patamar previamente anunciado pelo ofensor, talvez isso não ocorra no episódio do frentista, caso ingresse (se ainda não o fez) com ação reparatória.

De tão irrisórios ordinariamente, porém, os valores das indenizações estão deixando à vontade os agressores da honra alheia, como o “empresário” de Curitiba-PR, fazendo com que se sintam autorizados a ofender os mais humildes ou hipossuficientes economicamente.

O rumoroso acontecimento de Curitiba, aliás, remete a Lucius Veratius, que na Roma antiga se deliciava a custa do sofrimento que infligia a quem encontrava na rua, esbofeteando as pessoas e pagando o valor prefixado de indenização.

Eis o relato de Valdir Florindo (Dano moral e o Direito do Trabalho. 3ª ed., São Paulo: Editora LTr, 1999, p 191, com destaques nossos):

“Curioso, é que estes ensinamentos vêm da antiga Roma, portanto há milênios, onde na Lei das XII Tábuas (452 ªC.), o § 9º da Tábua VII (de Delictis) dizia que ‘Aquele que causar dano leve indenizará 25 asses.” Ocorre que, por conta da ínfima importância estabelecida pelos romanos, “Conta-se que um certo Lucius Veratius se deliciava verberando (esbofeteando) com a sua mão o rosto dos cidadãos livres que encontrava na rua. Atrás de si vinha um seu escravo entregando 25 asses a todos em que dominus batia’.”

Excetuada a denominação da moeda (lá asses, aqui reais), da Roma antiga para o Brasil do século 21, pouca coisa mudou, pois em vez de provocar receio e arrefecer o ânimo dos praticantes de atrocidades contra a honra alheia, as indenizações de baixíssimo valor, ao contrário, estão servindo-lhes de estímulo.

É preciso atentar para isso, pois, mantendo-se valores irrisórios como prática corrente, as injustiças estarão seladas. Ser rico ou detentor de patrimônio material não pode se prestar a alvará e nem constituir salvo conduto para humilhar os mais pobres, atacando-lhes, criminosamente, a honra, reputação e dignidade.

Já advertíamos (OLIVA, José Roberto Dantas. Tutela da moral na esfera trabalhista: tendências e perspectivas. In: LEITE, Eduardo de Oliveira. Org. Grandes Temas da Atualidade — Dano Moral: Aspectos constitucionais, civis, penais e trabalhistas, 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, v. 1, p. 265-299) muitos anos atrás que, apesar de ser um problema aflitivo enfrentado pelos juízes, a fixação do quantum em relação à indenização dos prejuízos morais suportados deve ser confiada ao prudente arbítrio deles (magistrados). Necessária, porém, reflexão a respeito dos critérios que servirão de balizas para o arbitramento.

Alguns doutrinadores asseveram ser a condição social e econômica da própria vítima um dos elementos balizadores a serem considerados para a fixação da indenização, batendo-se, também, na tecla de não se propiciar enriquecimento sem causa. Admitir tal critério, porém, conforme salientamos na primeira decisão por nós proferida sobre a matéria [3] quando ainda em início de carreira na magistratura, seria o mesmo que dizer que o pobre não tem honra.

Prender-se à posição socioeconômica da vítima seria abrir-se aos poderosos, aos ricos, o direito de satisfazer-se à custa do sofrimento alheio, de tratar com escárnio e desprezo a honra de um desafeto de parco poder econômico, especialmente no caso dos trabalhadores como o frentista de Curitiba, em regra hipossuficientes por natureza, sabendo que o preço a ser pago em nada lhes afetaria o patrimônio.

Ademais, se houver melhora da condição econômica da vítima, de modo algum será sem causa, pois derivada dos danos morais experimentados.

Revisitando doutrina tradicional de induvidosa excelência, constata-se que, com sabedoria, a maior parte dos estudiosos da matéria preleciona, acerca da fixação do quantum, dever ter o juiz em mente a intensidade do dolo ou culpa, a dor suportada pelo lesado e o patrimônio do lesante, de forma a que, de um lado, fique aquele (não pago pela dor, pois isso é impossível) compensado, e de outro, este desestimulado a praticar futuras ações semelhantes.

O insigne jurista Carlos Alberto Bittar, um dos que mais se dedicou ao estudo do tema, em determinado trecho (item 5) de excelente artigo (BITTAR, Carlos Alberto. “Reparação Civil por danos morais”. Revista do Advogado. n. 44, São Paulo: AASP, outubro/94, p. 24-27), enfatizava a respeito da fixação do valor:

“Levam-se, em conta, basicamente, as circunstâncias do caso, a gravidade do dano, a situação do lesante, a condição do lesado, preponderando, a nível de orientação central, a ideia de sancionamento ao lesado (ou punitive damages, como no direito norte-americano).”

Discorrendo sobre a técnica do valor de desestímulo, realça Bittar que este, opera como fator de inibição a novas práticas lesivas. Acentua com propriedade, tratar-se (BITTAR, Carlos Alberto. Artigo e revista citados, p. 26, grifos nossos):

“[…] de valor que, sentido no patrimônio do lesante, o possa fazer conscientizar-se de que não deve persistir na conduta reprimida, ou então deve afastar-se da vereda indevida por ele assumida. De outra parte, deixa-se para a coletividade, exemplo expressivo da reação que a ordem jurídica reserva para infratores nesse campo, e em elemento que, em nosso tempo, se tem mostrado muito sensível para as pessoas, ou seja, o respectivo acervo patrimonial. Compensam-se, com essas verbas, as angústias, as dores, as aflições, os constrangimentos e, enfim, as situações vexatórias em geral a que o agente tenha exposto o lesado, com sua conduta indevida.”

 Repercussão na esfera do lesado, potencial econômico-social do lesante e circunstâncias do caso, devem, pois, segundo Bittar, influir na definição do valor da indenização, para alcançar-se resultados próprios: compensação a um (lesado) e sancionamento a outro (lesante).

Em livro no qual se aprofundou ainda mais, o mesmo autor sentencia (BITTAR, Carlos Alberto. Reparação Civil por danos morais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993, p. 220, com destaques nossos):

“Em consonância com essa diretriz, a indenização por danos morais deve traduzir-se em montante que represente advertência ao lesante e à sociedade de que não se aceita o comportamento assumido, ou o evento lesivo advindo. Consubstancia-se, portanto, em importância compatível com o vulto dos interesses em conflito, refletindo-se, de modo expressivo, no patrimônio do lesante, a fim de que sinta, efetivamente, a resposta da ordem jurídica aos efeitos do resultado lesivo produzido. Deve, pois, ser quantia economicamente significativa, em razão das potencialidades do patrimônio do lesante.”

Na esfera trabalhista, ofensas à esfera moral ou existencial do trabalhador mereceram, com a reforma trabalhista promovida pela Lei 13.467/2017, um novo Título (II-A) na CLT, que trata do dano extrapatrimonial.

Os artigos 223-B e 223-C da CLT são de clareza solar (destacou-se):

“Art. 223-B. Causa dano de natureza extrapatrimonial a ação ou omissão que ofenda a esfera moral ou existencial da pessoa física ou jurídica, as quais são as titulares exclusivas do direito à reparação.

Art. 223-C. A honra, a imagem, a intimidade, a liberdade de ação, a autoestima, a sexualidade, a saúde, o lazer e a integridade física são os bens juridicamente tutelados inerentes à pessoa física.”

Uma das bases para a fixação do dano moral pode, conforme tem se entendido, ser o próprio salário do empregado, lesado ou lesante.

De acordo com os critérios mencionados, poderia o juiz multiplicar o salário por tantas vezes quantas entendesse bastar para compensar a dor sofrida e, ao mesmo tempo, desencorajar a reiteração da prática.

No mesmo título acima mencionado, a CLT, com os acréscimos da reforma trabalhista, assim disciplina a questão (g.n.):

“Art. 223-G. Ao apreciar o pedido, o juízo considerará:

I – a natureza do bem jurídico tutelado;

II – a intensidade do sofrimento ou da humilhação;

III – a possibilidade de superação física ou psicológica;

IV – os reflexos pessoais e sociais da ação ou da omissão;

V – a extensão e a duração dos efeitos da ofensa;

VI – as condições em que ocorreu a ofensa ou o prejuízo moral;

VII – o grau de dolo ou culpa;

VIII – a ocorrência de retratação espontânea;

IX – o esforço efetivo para minimizar a ofensa;

X – o perdão, tácito ou expresso;

XI – a situação social e econômica das partes envolvidas;

XII – o grau de publicidade da ofensa.

§1º. Se julgar procedente o pedido, o juízo fixará a indenização a ser paga, a cada um dos ofendidos, em um dos seguintes parâmetros, vedada a acumulação:

I – ofensa de natureza leve, até três vezes o último salário contratual do ofendido;

II – ofensa de natureza média, até cinco vezes o último salário contratual do ofendido;

III – ofensa de natureza grave, até vinte vezes o último salário contratual do ofendido;

IV – ofensa de natureza gravíssima, até cinquenta vezes o último salário contratual do ofendido.

[…]”

Certo é que, quanto à tarifação do dano moral, a dignidade da pessoa humana que trabalha, como a de qualquer outra, não pode se extrair de tabela.

Nesta linha, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento das ADIs 6.050, 6.069 e 6.082, com voto condutor do ministro Gilmar Mendes, assentou que os parâmetros de quantificação acima transcritos (artigo 223-G da CLT) poderão servir de critérios orientativos de fundamentação, sendo, porém, constitucional o arbitramento em valores superiores aos limites previstos nos incisos I a IV.

Eis como, por maioria e com votos vencidos dos ministros Edson Fachin e Rosa Weber (então presidente), que julgavam procedente o pedido das ações, restou ementado o v. acórdão, transitado em julgado em 26/8/2023:

“Ações diretas de inconstitucionalidade. 2. Reforma Trabalhista. Artigos 223-A e 223-G, §§ 1º e 2º, da CLT, na redação dada pela Lei 13.467/2017. Parâmetros para a fixação do quantum indenizatório dos danos extrapatrimoniais. 3. Ações conhecidas e julgadas parcialmente procedentes para conferir interpretação conforme a Constituição, de modo a estabelecer que: 3.1. As redações conferidas aos art. 223-A e 223- B, da CLT, não excluem o direito à reparação por dano moral indireto ou dano em ricochete no âmbito das relações de trabalho, a ser apreciado nos termos da legislação civil; 3.2. Os critérios de quantificação de reparação por dano extrapatrimonial previstos no art. 223-G, caput e §1º, da CLT deverão ser observados pelo julgador como critérios orientativos de fundamentação da decisão judicial. É constitucional, porém, o arbitramento judicial do dano em valores superior aos limites máximos dispostos nos incisos I a IV do § 1º do art. 223-G, quando consideradas as circunstâncias do caso concreto e os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da igualdade.” (STF. ADI 6.050/DF. Rel.: min. Gilmar Mendes. v.m. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5612680>. Acesso em 26/12/2023. DJE de 17/8/2023).

Quando o salário do trabalhador é relativamente bom, afigura-se razoável adotar os parâmetros da CLT para estimar o quantum devido a título de indenização por danos morais. Quando é baixo, a tarifação em questão deve ser tida apenas como base, jamais como teto, consoante decidido pelo Supremo Tribunal Federal.

Razoabilidade e equidade (conforme autoriza o artigo 8º da CLT no caso das relações de trabalho), de qualquer modo, são fundamentais para que o próprio Judiciário não seja desprestigiado por decisões que, de tão ínfimas, sirvam de estímulo a ofensores, ou, de tão estratosféricas, se prestem mesmo a encorajar a decantada “indústria” de indenização por dano moral.

Não se pode permitir, porém, que sob o pretexto de não estimular a “indústria” da indenização, se incentive a “indústria” do próprio dano, em razão da sensação de impunidade ou de punibilidade irrisória que graça no imaginário cruel dos ofensores.

Fixando a indenização em patamares que desencorajem os ataques criminosos contra a honra e, em contrapartida, propiciem lenitivo às vítimas pelos danos sofridos, cumprirá o judiciário seu papel de agente pacificador de conflitos.


[1] Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2023/10/14/frentista-vitima-de-racismo-parana.htm>. Acesso em 26 Dez. 2023.

[2] Disponível em: <https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2023/10/20/homem-que-xingou-frentista-de-macaco-em-curitiba-e-denunciado-por-ameaca-e-injuria-racial-justica-negou-pedido-de-prisao.ghtml>. Acesso em 26 Dez. 2023.

[3] Sentença proferida na Vara (então Junta de Conciliação e Julgamento) de Presidente Prudente-SP, aos 22.04.96, no feito nº 246/96.

Autores

  • é advogado, juiz titular de Vara do Trabalho aposentado, mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP, autor de livros e textos jurídicos e não jurídicos, professor universitário, jornalista e radialista profissional e membro da Associação Venceslauense de Letras (AVL).

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