Operação renascimento

'O maior problema do licenciamento é o desmonte dos órgãos ambientais'

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26 de dezembro de 2023, 8h52

Nomeado presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em fevereiro deste ano, o advogado, ambientalista e ex-deputado federal Rodrigo Agostinho teve de lidar com uma herança inusitada da gestão anterior: uma política que visava a anistiar bilhões de reais em multas que são devidas ao órgão.

O presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho

A prática foi adotada por Jair Bolsonaro (PL), notório inimigo das pautas ambientais e ele próprio autuado em flagrante por pesca ilegal em Angra dos Reis (RJ), em 2012. O Ibama, por meio de seu ex-presidente Eduardo Bim, abdicou de mais de R$ 29 bilhões em multas por entender que os processos administrativos em que os infratores foram citados por edital estavam prescritos.

No final de novembro, após mudança na postura do órgão ambiental, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que as multas eram válidas. Mesmo nesse contexto, porém, Agostinho entende que a aplicação das infrações continua sendo o principal gargalo do órgão. Neste ano, o Ibama aplicou mais de 16 mil multas, sendo mais de seis mil delas apenas na Amazônia.

“As penas aplicadas são muito baixas e, no Brasil, só se pode responsabilizar (o infrator) administrativamente, que é o caso da multa. Existe a responsabilidade criminal, que é muito difícil, e a responsabilidade cível, que é algo novo. O dano ambiental não prescreve, e a responsabilização cível para nós é algo que é muito importante”, disse Agostinho em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, citando ainda o instituto do dano climático, que vem sendo estudado pelo órgão como parte da responsabilização cível por danos ambientais.

Outro ponto mencionado pelo advogado foi a difusão de competências provocada pela Lei Complementar 140, de 2011. O Ibama acabou perdendo algumas de suas funções, como os licenciamentos para mineração, e as secretarias ambientais dos estados tiveram seus atributos definidos de forma mais detalhada.

A eficácia das leis e a qualidade dos licenciamentos, que envolvem estudos profundos, decaíram muito com o sucateamento das gestões estaduais, segundo Agostinho. E, no âmbito federal, há escassez de servidores — hoje, mais de três mil licenciamentos estão sendo analisados por cerca de 200 funcionários do Ibama.

“O maior problema que a gente tem no licenciamento ambiental é o desmonte dos próprios órgãos ambientais. Se você não tem estrutura, não tem como analisar com a celeridade que os empreendedores, tanto públicos quanto privados, querem. A maior parte dos órgãos ambientais do país está desmontada e, em muitas situações, a gente tem uma qualidade muito ruim dos projetos e de estudos ambientais.”

Leia a seguir a entrevista na íntegra:

ConJur – Do ponto de vista jurídico, quais foram os principais desafios nos seus primeiros meses de gestão?
Rodrigo Agostinho – O Ibama acabou sendo uma vítima preferencial no governo passado, uma instituição que sofreu muito, muitos servidores com problemas relacionados a assédio. Só para você ter uma ideia, o Ibama chegou a ter 6,2 mil servidores, e tem hoje pouco mais de 2,5 mil. Nós não tivemos nenhuma mudança substancial na legislação, mas a gestão passada tinha alguns entendimentos, por exemplo, relacionado às multas. Estavam colocando quase R$ 29 bilhões, aplicados nos últimos 20 anos, em uma situação de prescrição. Nós fizemos a revisão desse entendimento, e nós conseguimos confirmar no STJ neste ano. Nós também tivemos uma série de situações relacionadas à interpretação de legislação de fauna e legislação de reparação de danos e, em alguns casos, a gente ainda está analisando e revendo os entendimentos. É o caso, por exemplo, da aplicação da Lei da Mata Atlântica.

ConJur – A aplicação das multas lavradas pelo Ibama é o principal gargalo do órgão?
Rodrigo Agostinho – É um dos grandes problemas que a gente tem e, notoriamente, as pessoas continuam insistindo em práticas que sabem que são ilegais. As penas aplicadas são muito baixas e, no Brasil, só se pode responsabilizar (o infrator) administrativamente, que é o caso da multa. Existe a responsabilidade criminal, que é muito difícil, e a responsabilidade cível, que é algo novo. Estamos trabalhando com muita força para poder reparar o dano. O dano ambiental não prescreve, e a responsabilização cível para nós é algo que é muito importante.

ConJur – Quando o senhor fala em responsabilização, é no sentido de dano material, moral ou coletivo?
Rodrigo Agostinho – O Ibama trabalha mais na reparação do dano ambiental em si, ou seja, foi destruída uma reserva legal, o proprietário é obrigado a recuperar aquela área. Em alguns casos, a AGU tem avançado na ideia de que os danos coletivos e o dano moral sejam também reparados. Mais recentemente, a gente conseguiu avançar junto com a AGU em relação aos danos climáticos, uma modernização sobre a legislação ambiental brasileira.

ConJur – Como está hoje a relação com as secretarias estaduais, levando em conta que parte do arcabouço legal ambiental brasileiro é de responsabilidade dos estados?
Rodrigo Agostinho – A relação melhorou muito, a gente tem dialogado muito com os secretários estaduais, para nós foi uma vitória importante a retomada do trabalho do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente, órgão que foi desestruturado no governo de Jair Bolsonaro). A Lei Complementar 140/2011 trouxe a divisão de competências de maneira muito clara e, em alguns casos, tirou as responsabilidades que eram do Ibama, notadamente no caso da mineração. Acontece que a gente tem problemas sérios na Amazônia, por exemplo, do ponto de vista fundiário. Muitas das terras na Amazônia são terras federais, são florestas públicas. E isso, no entendimento do Judiciário, tem trazido a competência para o âmbito do Ibama. A gente tem essa mesma situação quando envolve terras indígenas não demarcadas, rios que são de domínio da União.

ConJur – Sobre a mineração, o senhor acha que a retirada da competência do Ibama incentivou práticas nocivas nesse setor? De 2015 para cá, o país registrou os dois maiores crimes ambientais de sua história, em Mariana (MG) e Brumadinho (MG).
Rodrigo Agostinho – Acho que não. Quando você fala em mineração, você pode estar falando de uma pequena mina, às vezes um poço de exploração de água mineral, mas também pode estar falando de uma grande exploração de minério de ferro. A palavra mineração envolve muita coisa dentro dela. A Lei Complementar 140 não foi tão feliz na hora de definir quando, de fato, a mineração é competência do Ibama, e isso está se demonstrando em casos concretos, como no Pará, no Amazonas, na mineração de Santa Quitéria, no Ceará. São casos emblemáticos em que o Ministério Público tem levantado a necessidade de que esses enfrentamentos sejam feitos pelo Ibama, e não pelos estados.

ConJur – Em relação ao ouro e à sua cadeia de produção, que envolve muita “lavagem” do metal, como o Ibama tem atuado para romper com as ilegalidades?
Rodrigo Agostinho – O Ibama está desde o começo do ano sendo muito duro com o garimpo, nós já destruímos 339 acampamentos, quase 30 aeronaves, 75 embarcações, um número assustador de retroescavadeiras, e apreendemos 700 quilos de mercúrio. A gente começou em fevereiro na terra indígena ianomâmi, acabamos com quase todo o garimpo, estamos lá novamente agora porque alguns garimpeiros resolveram retomar a área. Nós trabalhamos, neste ano, em 109 terras indígenas que estavam sendo destruídas pelo garimpo ilegal. A gente vê também uma série de outras práticas criminosas acontecendo (em conjunto o garimpo), lavagem de dinheiro, formação de quadrilha, organização criminosa, exploração de mão de obra, mão de obra análoga à escravidão, exploração sexual de menor, tem de tudo acontecendo nessas áreas de garimpo. Além da própria destruição do meio ambiente, e da contaminação dos rios do Amazonas, tendo em vista que a população da região se alimenta de pescados.

ConJur – Qual é a posição do senhor sobre a ideia de a Petrobras buscar petróleo na Foz do Rio Amazonas?
Rodrigo Agostinho – O Ibama, de forma antecipada, não é nem a favor e nem contra. O Ibama analisa projeto por projeto. Hoje a gente tem, na região chamada Foz do Amazonas, cerca de 20 pedidos de licenciamento ambiental para atividades exploratórias, de produção de óleo e gás, por exemplo, e vamos analisando projeto por projeto. Quando não demonstrada a viabilidade ambiental da atividade, o Ibama não autoriza. O Ibama não faz política energética, não é o órgão que define as regiões de exploração, que define quando o Brasil vai parar de explorar petróleo ou não. O que o Ibama faz é olhar e questionar: o plano de risco está condizente com a situação daquela área? A biodiversidade pode ou não ser afetada com aquela atividade? No caso específico do licenciamento do Lote 059, localizado na Foz do Amazonas, houve o pedido da Petrobras de exploração de petróleo e o Ibama entendeu que não tinha viabilidade ambiental. Negamos a licença e a Petrobras pediu reconsideração, apresentou uma série nova de estudos, e agora o Ibama está analisando isso. Em algum momento vamos tomar uma decisão em relação a esses novos estudos.

ConJur – Qual é o maior problema que o senhor identifica quando se fala em licenciamento ambiental?
Rodrigo Agostinho – O maior problema que a gente tem no licenciamento ambiental é o desmonte dos próprios órgãos ambientais. Se você não tem estrutura, não tem como analisar com a celeridade que os empreendedores, tanto públicos quanto privados, querem. A maior parte dos órgãos ambientais do país está desmontada. Outro ponto é que, em muitas situações, a gente tem uma qualidade muito ruim dos projetos e de estudos ambientais. Quando um processo de licenciamento é apresentado com baixa qualidade técnica, isso influencia a análise. Muitas vezes o órgão ambiental fica pedindo complementação de informações que deveriam ter vindo e não vieram.

ConJur – No momento, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei 2.159, que muda substancialmente o licenciamento ambiental no país. Como o senhor vê esse PL?
Rodrigo Agostinho – Isso é um erro, é uma visão equivocada que está consubstanciada no PL 2.159. Com o enfraquecimento da legislação, caso o projeto seja aprovado com a redação que a gente tem hoje, eu não tenho dúvidas de que a gente vai ter excesso de judicialização. Licenciamento ambiental não se confunde com cadastro, e o que se está colocando no projeto é aumentar de maneira significativa a licença por adesão e compromisso, que na verdade é um autolicenciamento, sem vistoria, sem análise técnica. Isso se assemelha a um cadastro de atividade, e não a um licenciamento. Nós precisamos de um licenciamento ambiental sério, que possa ser feito com maior eficiência. O Ibama hoje tem 3,4 mil processos de licenciamento em andamento e menos de 200 servidores para cuidar de tudo, há uma escassez de mão de obra.

ConJur – E sobre o PL que oferece maior liberdade ao uso de agrotóxicos, chamado de “PL do veneno”, qual a posição do Ibama? Foi requisitado um veto ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT)?
Rodrigo Agostinho – Nós tivemos algumas melhoras significativas no texto, realizadas por um esforço pessoal do relator, o senador Fabiano Contarato (PT). Acontece que ainda permaneceram no texto situações em que o Ibama está indicando ao governo a necessidade de um possível veto, notadamente o enfraquecimento do papel do órgão e da Anvisa na análise dos agrotóxicos. O Ibama está analisando hoje cerca de 2,2 mil produtos, sendo 300 produtos de controle biológico de pragas. Estamos fazendo a análise desses agrotóxicos de uma forma até que relativamente célere, a gente vem trabalhando regras para garantir agilidade maior para a análise desses produtos e, ao mesmo tempo, garantir a segurança da população. O texto final do PL enfraquece esse ponto, deixando claro que qualquer reavaliação de produto vai ser feita exclusivamente pelo Ministério da Agricultura.

ConJur – Como o Ibama tem atuado frente ao cumprimento do Código Florestal? Há muitas críticas de que o Código é bem escrito, mas não tem eficácia…
Rodrigo Agostinho – Há coisas que são atribuições dos estados, há coisas que são atribuições do Ibama, e há situações que são atribuições de outros órgãos. Os estados têm a responsabilidade de validação dos cadastros ambientais rurais e de análise dos planos de regularização ambiental, os chamados PRAs. O Ibama fiscaliza o desmatamento. A gente aplicou quase 16 mil multas neste ano, sendo que 6,7 mil foram na Amazônia, por desmatamento ilegal. Agora, a validação dos cadastros, a análise sobre o cumprimento do Código Florestal, acaba se dando notadamente pelos estados, com os órgãos responsáveis por essa aferição. O Ibama faz o auto de infração, embarga a área que foi desmatada, a área desmatada ilegalmente fica proibida de ser utilizada. Na verdade, o que a gente entende é que muita gente não quer ter de cumprir o Código Florestal, demorou muito tempo para fazer o seu cadastro e até agora não entregou o seu programa de recuperação ambiental.

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