Opinião

Competência privativa da União para legislar sobre nacionalidade

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23 de dezembro de 2023, 6h28

Quando se trata de legislar sobre nacionalidade, cidadania e naturalização, emigração e imigração, entrada, extradição e expulsão de estrangeiros, é competência exclusiva da União criar normas que regulamentem esses assuntos relacionados a matéria internacional, conforme estabelecido pelo dispositivo constitucional: artigo 22, incisos XIII e XV.

O Estatuto do Estrangeiro era uma lei que foi constituída em 1980, ou seja, oito anos anterior à promulgação da Constituição de 1988, que marcou o fim de um longo período de regime militar. Isso evidencia que o Estatuto do Estrangeiro não estava em conformidade com a Carta Magna de 1988, que assegura diversos direitos e garantias fundamentais, inclusive para os “estrangeiros residentes no País”, conforme estabelecido no caput do artigo 5 da nossa Constituição cidadã de 1988. Mesmo assim, levou quase três décadas, para o estatuto ser revogado por uma lei mais alinhada com os princípios constitucionais. Contudo, o Estatuto do Estrangeiro vigorou por aproximadamente 37 anos em nosso ordenamento jurídico.

Antônio Cruz/Agência Brasil

Além disso, segundo a Convenção Americana sobre Direitos Humanos de São José, da Costa Rica, em seu artigo 20, assegura-se que “toda pessoa tem direito a uma nacionalidade”. O Brasil ratificou esta convenção em 1992, incorporando-a por meio do Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992.

Nesse tocante, nas palavras do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal [1]:

A prerrogativa de adotar legislação sobre nacionalidade pertence ao direito interno. Todavia, a importância desse tema e a preocupação de que se evite a existência de apátridas, isto é, pessoas sem vínculo com nenhum Estado, são expressas em diversos instrumentos internacionais. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU – 1948) consagra que o Estado não pode arbitrariamente privar o indivíduo de sua nacionalidade nem do direito de mudar de nacionalidade (art. 15).

Em 2017, ocorreu a revogação do Estatuto do Estrangeiro pela nova Lei de Migração nº 13.445/2017. Essa lei introduziu novos conceitos sobre migração, incluindo a definição de apátrida no seu artigo 1º, § 1º, inc. VI, como a “pessoa que não é considerada nacional por nenhum Estado, de acordo com sua legislação, conforme a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954, promulgada pelo Decreto nº 4.246, de 22 de maio de 2002, ou reconhecida como tal pelo Estado brasileiro”.[2]

Segundo o Acnur [3], em 2023, ocorreram avanços significativos em todo o mundo para combater a condição de apatridia, fazer-se necessário mencionar que a República do Quirguistão e a República da Moldávia implementaram medidas legislativas para prevenir a apatridia ao nascer. Portugal estabeleceu uma estrutura legal abordando o status de apátrida, incluindo um procedimento de determinação. A Macedônia do Norte modificou suas leis para facilitar a obtenção de nacionalidade por apátridas e garantir o registro de nascimento para todas as crianças, independentemente da situação dos pais. A República do Congo recentemente aderiu às convenções sobre apatridia.

Atualmente, existe um total de 97 países que fazem parte da Convenção de 1954 sobre o Estatuto dos Apátridas e 79 países que fazem parte da Convenção de 1961 sobre a redução dos casos de apatridia. Além disso, outras dezenas de países também introduziram diretrizes em suas leis para evitar a apatridia ou decretaram sistemas para proteger pessoas em situação de apatridia. [4]

Acnur [5] afirma que “pelo menos 4,4 milhões de pessoas em 95 países são consideradas apátridas ou de nacionalidade indeterminada. O número global é amplamente reconhecido como sendo significativamente maior, dada a relativa invisibilidade dos apátridas nas estatísticas nacionais”.

Nesse sentido, é de suma importância que a União assegure leis que viabilizem esses direitos aos imigrantes, apátridas, visitantes, entre outros. Isso implica garantir os princípios e direitos fundamentais previstos na Constituição de 1988, como direito à educação, alimentação, segurança, trabalho, moradia e saúde. Com as alterações, foi incorporado um processo de naturalização mais simplificado na Lei de Migração de 2017, garantindo o direito à nacionalidade e, consequentemente, assegurando os demais direitos contemplados na Constituição de 1988.

A Lei de Migração introduziu parâmetros simplificados que asseguram a proteção e o direito à naturalização para apátridas. Antes da nova lei, o sistema de naturalização para apátridas no Brasil carecia de tratamento adequado. A Lei de Migração não apenas garantiu um tratamento apropriado, mas também o alinhou aos tratados de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário.

O Acnur [6] reconhece a importância de conferir uma nacionalidade aos apátridas, afirmando que “garantir o direito à nacionalidade e erradicar a apatridia é alcançável e mais urgente do que nunca”, acrescenta ainda, que “ser apátrida pode significar não ter acesso à educação, assistência médica ou emprego legal”.

Este enfrentamento da situação de apatridia não é enfrentado apenas pelo Brasil, mas sim em nível global. Ao longo dos anos, muitos indivíduos têm sofrido com essa condição, arriscando-se a entrar em outros países em busca de melhores condições de vida. A falta de nacionalidade não apenas exclui essa população de direitos fundamentais, mas também a coloca em risco de tráfico humano, escravidão e outros crimes.

Na perspectiva da jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 3ª Região [7], veja-se:

PROCESSO CIVIL. REMESSA OFICIAL. CARTEIRA DE IDENTIDADE DE ESTRANGEIRO. SITUAÇÃO DE APÁTRIDA RECONHECIDA. REMESSA OFICIAL DESPROVIDA. 1. A autora entrou legalmente no Brasil em 1973, casou-se com brasileiro em 1972 e teve seis filhos. Nunca deixou o Brasil nestes 30 anos e não consta que tenha transgredido as leis penais e fiscais brasileiras. É viúva e possui bens a partilhar. Deseja apenas regulamentar sua situação. Preenche requisitos até para se naturalizar, pois está no Brasil há mais de 15 anos, e não possui condenação criminal (art. 12, inc. II, alínea b da Constituição Federal). 2. O Líbano se nega a fornecer o documento de nacionalidade. Não forneceu à época que imigrou para o Brasil, tendo que se utilizar de passaporte brasileiro, fornecido pela Embaixada. Também é difícil conseguir da Turquia a declaração de nacionalidade para ela identificar-se, a contento. A autora diz pertencer a uma minoria étnica, que não são amparados pelas legislações destes países. 3. Devido o reconhecimento da autora como apátrida, pois nenhum país quer fornecer documento hábil para comprovar sua nacionalidade. 4. Remessa oficial desprovida. (TRF-3 – ReeNec: 00065953820004036000 MS, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL MAURICIO KATO, Data de Julgamento: 13/11/2017, QUINTA TURMA, Data de Publicação: e-DJF3 Judicial 1 DATA:23/11/2017)

De fato, a situação de apatridia impacta diretamente na vida do indivíduo, não apenas devido a uma “simples” formalidade de nacionalidade, mas pelo contexto completo que se desdobra ao não possuir uma nacionalidade comprovada. Documentos dessa natureza garantem diversos direitos, incluindo o exercício da cidadania, o acesso à educação, a possibilidade de trabalhar de maneira digna e lícita, o direito à moradia, benefícios e assistência governamentais, entre outros. Vai além; é o direito de o indivíduo conduzir sua vida da forma que deseja.

Portanto, destaca-se a importância da competência privativa da União em legislar sobre essa matéria, pois garantir o direito à nacionalidade também é assegurar outros direitos aos apátridas.

Por fim, as divisões de competências asseguram equilíbrio e estabilidade, permitindo que cada ente trate de determinado assunto com segurança, sempre visando o bem-estar comum.

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Referências
ACNUR. A Convenção de 1961 sobre Apatridia: 60 anos promovendo e protegendo o direito à nacionalidade. 2021. Disponível em: <https://www.acnur.org/portugues/2021/08/30/a-convencao-de-1961-sobre-apatridia-60-anos-promovendo-e-protegendo-o-direito-a-nacionalidade/>. Acesso em: 15 dez. 2023.

ACNUR. ACNUR relata progresso pelo fim da apatridia. Disponível em: <https://www.acnur.org/portugues/2023/11/06/acnur-relata-progresso-no-combate-a-apatridia/>. Acesso em: 15 dez. 2023.

BRASIL. Decreto n.º 9.199, de 20 de novembro de 2017. Regulamenta a Lei n.º 13.445, de 24 de maio de 2017, que institui a Lei de Migração. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.htm>. Acesso em: 15 dez. 2023.

JUSBRASIL. Tribunal Regional Federal da 3ª Região TRF-3 – REMESSA NECESSÁRIA CÍVEL: ReeNec 0006595-38.2000.4.03.6000 MS. Órgão Julgador: 5ª Turma. Julgamento: 13 de novembro de 2017. Relator: Desembargador Federal Mauricio Kato. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/trf-3/523833848>. Acesso em: 16 dez. 2023.

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de DIREITO Constitucional. Saraiva Educação, 16ª ed. São Paulo, 2020.

[1] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de DIREITO Constitucional. Saraiva Educação, 16ª ed. São Paulo, 2020, p. 1034.

[2] BRASIL. Decreto n.º 9.199, de 20 de novembro de 2017. Regulamenta a Lei n.º 13.445, de 24 de maio de 2017, que institui a Lei de Migração. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.htm>. Acesso em: 15 dez. 2023.

[3] ACNUR. ACNUR relata progresso pelo fim da apatridia. Disponível em: <https://www.acnur.org/portugues/2023/11/06/acnur-relata-progresso-no-combate-a-apatridia/>. Acesso em: 15 dez. 2023.

[4] Ibidem.

[5] Ibidem.

[6] ACNUR. A Convenção de 1961 sobre Apatridia: 60 anos promovendo e protegendo o direito à nacionalidade. 2021. Disponível em: <https://www.acnur.org/portugues/2021/08/30/a-convencao-de-1961-sobre-apatridia-60-anos-promovendo-e-protegendo-o-direito-a-nacionalidade/>. Acesso em: 15 dez. 2023.

[7] JUSBRASIL. Tribunal Regional Federal da 3ª Região TRF-3 – REMESSA NECESSÁRIA CÍVEL: ReeNec 0006595-38.2000.4.03.6000 MS. Órgão Julgador: 5ª Turma. Julgamento: 13 de novembro de 2017. Relator: Desembargador Federal Mauricio Kato. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/trf-3/523833848>. Acesso em: 16 dez. 2023.

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