Opinião

Conselho Nacional de Imigração e o imigrante MEI

Autor

  • Pedro Gallotti Kenicke

    é bacharel e mestre em Direito do Estado pela UFPR autor do livro “Comentários à Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017)” e sócio do Núcleo de Direito Administrativo da Dotti Advogados.

22 de novembro de 2023, 13h17

É crescente o número de imigrantes na condição de Microempreendedores Individuais (MEI) trabalhando no Brasil. Segundo o Observatório das Migrações Internacionais, a restrição na base na Relação Anual de Informações Sociais (Rais) em captar dados sobre imigrantes MEI “limita a obtenção dos dados laborais dos não nacionais que trabalham nessas posições de ocupação” [1]. Porém, segundo os dados do IBGE, em 2021, “0,6% dos MEIs não eram brasileiros. A maioria dos estrangeiros eram de países que fazem fronteira com o Brasil. Bolívia (11,7 mil), Venezuela (6,1 mil), Colômbia (5,5 mil) e Argentina (5,5 mil) lideraram esse ranking” [2]. Num universo de 13,2 milhões de MEIs no país, o número de imigrantes MEI chega a pouco mais de 70 mil pessoas.

Esse dado é confirmado por levantamento do Sebrae, feito a partir da base da Receita Federal, de que seriam 74 mil imigrantes MEIs em 2023, com amostra de crescimento desde 2019: “Número de MEIs estrangeiros cresceu 73% desde o período pré-pandemia. No Brasil, segundo o Sebrae, existiam 74,2 mil MEIs ativos de outras nacionalidades até maio deste ano. Em 2019, eram 42,9 mil. (…) Décio Lima, presidente do Sebrae, diz que o MEI viabiliza a inclusão dos imigrantes na economia brasileira de forma mais simples e rápida, o que explicaria o “boom” de registros verificado nos últimos anos” [3].

É tão progressivo o número de imigrantes nessa condição que, em dezembro de 2022, o então coordenador-geral de Imigração Laboral e secretário-executivo do Conselho Nacional de Imigração (CNIg), “sugeriu estudos com foco na inserção laboral por meio do empreendedorismo e o papel do microempreendedor individual (MEI). Com apoio das Câmaras Especializadas criadas pelo CNIg, o OBMigra pretende desenvolver estudos complementares dessa natureza”, como está disposto na Ata da V Reunião Ordinária do Conselho Nacional de Imigração/2022 [4].

Compreendendo a tendência, o Estado brasileiro tem realizado políticas públicas para facilitar e simplificar a inscrição de imigrantes como MEI, em atenção às diretrizes e objetivos da Lei de Migração. Pelas regras anteriores, o imigrante precisava apresentar o número do recibo da Declaração do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física ou o título de eleitor. Mas caso não possuísse título de eleitor, ficava sem poder emitir a declaração de renda por ter entrado no país no mesmo ano da emissão do Cadastro de Pessoa Física. A partir de 2019, o imigrante apenas precisa informar o seu país de origem e o número de um dos seguintes documentos de identificação: Carteira Nacional de Registro Migratório ou Documento Provisório de Registro Nacional Migratório ou mesmo o Protocolo de Solicitação de Refúgio [5].

Contudo, a contrariar a tendência da realidade brasileira, o CNIg vem recorrentemente indeferindo os pedidos de Autorização de Residência para imigrantes MEI.

Com efeito, a Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017), ao revogar o Estatuto do Estrangeiro, inovou na legislação brasileira ao alterar o paradigma da segurança nacional e da reserva de mercado brasileiro para proteger e garantir direitos ao imigrante no Brasil. Tratou-se de integrar/incluir essas pessoas à sociedade e na vida laboral regularizada e, por consequência, na cadeia de produção brasileira, com diretriz clara para regularizar sua documentação perante o Estado e reconhecer seu papel no mercado de trabalho. Com isso, pretendeu-se, por exemplo, evitar a propensão ao trabalho clandestino, e até mesmo escravo, nos grandes centros urbanos. Essas diretrizes e princípios de políticas públicas estão dispostas no art. 3º, V e X, da Lei nº 13.445/2017 [6].

Ademais, a Lei de Migração garantiu a não-discriminação “em razão dos critérios ou dos procedimentos pelos quais a pessoa foi admitida em território nacional” (artigo 3º, IV), o que impede qualquer tipo de avaliação de o imigrante que tenha ingressado no território nacional não ter, ainda, obtido sua autorização de residência de forma regular, embora seja formalizado MEI. Da mesma forma, a autorização de residência pode ser concedida “independentemente da situação migratória” (artigo 31, §5º). Desse modo, como se vê, não há impedimento na Lei de Migração para se reconhecer essa condição laboral.

A Lei de Migração entrou em vigência em novembro de 2017. A lei, por ser lei geral, não previu hipótese específica de residência calcada na condição laboral de MEI. Mas o Decreto regulamentador nº 9.199/2017 previu no seu art. 162 a possibilidade de o CNIg disciplinar casos especiais para a concessão de autorização de residência associada às questões laborais – justamente para abarcar hipóteses do mundo da vida que não necessitassem alteração legislativa.

Em dezembro de 2017, com fundamento no citado artigo 162 do Decreto, o CNIg editou a Resolução Normativa nº 23/2017 que “Disciplina os casos especiais para a concessão de autorização de residência associada às questões laborais”. Compreende-se que essa RN 23/2017 somente se aplica em duas condições não-cumulativas (art. 1º): “I – a casos especiais associados às questões laborais, nos termos do art.162 do Decreto nº 9.199, de 20 de novembro de 2017” e “II – a casos especiais não previstos expressamente no Decreto nº 9.199, de 2017” [7]. Isto é, serve tanto para casos sob o manto da discricionariedade do CNIg (casos especiais associados a questões laborais), quanto para casos especiais que não estejam previstos expressamente na legislação de regência — hipótese do imigrante MEI.

A primeira vez que o CNIg tratou de casos de autorização de residência de migrantes MEI com fundamento na RN 23/2017 foi publicada na Ata da X Reunião Ordinária em dezembro de 2018 [8], na qual se decidiu julgar esses casos de forma “ad referendum”. Durante o ano de 2019, o CNIg debateu sobre a possibilidade ou não de deferir esse tipo de pedido, como se lê na Ata da I Reunião Ordinária em março [9]. Depois, em dezembro daquele ano, já se indeferia, sem referendo do Colegiado, qualquer pedido baseado em MEI [10] e em julho de 2020 se estabeleceu formalmente que para pedidos de imigrantes MEI “já existia deliberação do Conselho para indeferir esses casos” [11]. Isto é, o CNIg informava ao público que havia formado uma prática reiterada pelo indeferimento dessas hipóteses. A Ata da I Reunião Ordinária de 2023 comprova que a prática se perpetua [12].

Os indeferimentos, é preciso dizer, revelam contradição com os princípios e diretrizes da Lei de Migração, especialmente os ditames de regularização da situação migratória dos imigrantes que estão trabalhando e tentando integrarem-se plenamente à sociedade no país. São pessoas que, por lacunas normativas ainda existentes, não conseguem autorização de residência por outras hipóteses e, em determinado momento específico e pelas mais diversas razões, optaram por se cadastrarem como Microempreendedores Individuais para poderem ter renda e manter suas famílias.

O CNIg, regulamentado pelo Decreto nº 9.873/2019, como formulador da política nacional de imigração (artigo 1º, I), coordenador e orientador das atividades de imigração laboral (artigo 1º, II), e órgão competente para dirimir e solucionar os casos especiais (artigo 1º, VI), para opinar sobre alteração da legislação relativa à migração laboral e sugerir outras hipóteses imigratórias (artigo 1º, VII, IX), não pode prescindir de albergar os casos de imigrantes que não se enquadram em nenhuma hipótese normativa e estão na condição de MEI, trabalhando regularmente no Brasil.

Com a mudança do governo federal, houve a retomada das discussões e da formulação da Política Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia (Pnamra) que, felizmente, ocorrem no país sob a batuta do competente Departamento de Migrações do Ministério da Justiça e Segurança Pública, e que, dentre vários temas, discutem as lacunas e as imperfeições que precisam ser sanadas no ordenamento jurídico vigente (Eixo 1). Aliada ao fato do crescente número de imigrantes MEI, trata-se, por conseguinte, de importante mudança de contexto social, político e jurídico.

Portanto, é chegado o momento de o Conselho Nacional de Imigração, como competente que é, julgar favoravelmente situações jurídicas residuais de imigrantes que são MEI, ou, ao menos, propor nova Resolução Normativa que abarque tais hipóteses.


[1] CAVALCANTI, L; OLIVEIRA, T.; SILVA, B. G. Relatório Anual 2021 – 2011-2020: Uma década de desafios para a imigração e o refúgio no Brasil. Série Migrações. Observatório das Migrações Internacionais; Ministério da Justiça e Segurança Pública/ Conselho Nacional

de Imigração e Coordenação Geral de Imigração Laboral. Brasília, DF: OBMigra, 2021. p. 40.

[2] Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/38044-em-2021-brasil-tinha-13-2-milhoes-de-microempreendedores-individuais-meis

[3] Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2023/06/20/brasil-tem-74-mil-estrangeiros-que-atuam-como-meis-veja-paises-de-origem.htm

[4] Disponível em: https://portaldeimigracao.mj.gov.br/images/atas_cnig/2022/1.1.2_-_Ata_V_Reuni%C3%A3o-CNIg.pdf

[5] Disponível em: https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/noticias/2019/10/governo-simplifica-registro-do-imigrante-como-microempreendedor-individual#:~:text=A%20partir%20desta%20ter%C3%A7a%2Dfeira,Nacional%20Migrat%C3%B3rio%20ou%20Protocolo%20de

[6] Art. 3º A política migratória brasileira rege-se pelos seguintes princípios e diretrizes: (…) V – promoção de entrada regular e de regularização documental; (…) X – inclusão social, laboral e produtiva do migrante por meio de políticas públicas;

[7] Art. 1º O Conselho Nacional de Imigração poderá conceder autorização de residência: I – a casos especiais associados às questões laborais, nos termos do art.162 do Decreto nº 9.199, de 20 de novembro de 2017; e II – a casos especiais não previstos expressamente no Decreto nº 9.199, de 2017. § 1º Serão consideradas como situações especiais laborais aquelas que, embora não estejam expressamente disciplinadas nas Resoluções do Conselho Nacional de Imigração, possuam elementos que permitam considerá-las passíveis de obtenção de autorização de residência.

[8] Disponível em: https://portaldeimigracao.mj.gov.br/images/atas_cnig/2018/X_Reuni%C3%A3o_Ordin%C3%A1ria_-_dezembro_-_2018.pdf

[9] Disponível em: https://portaldeimigracao.mj.gov.br/images/atas_cnig/2019/Ata_da_I_Reuni%C3%A3o_Ordin%C3%A1ria_do_CNIg_22_03.pdf

[10] Disponível em: https://portaldeimigracao.mj.gov.br/images/atas_cnig/2019/Ata_11_12_2019_da_IV_Reuni%C3%A3o_Ordin%C3%A1ria_do_CNIg.pdf

[11] Disponível em: https://portaldeimigracao.mj.gov.br/images/atas_cnig/2020/Ata_23_07_2020_I_Reuni%C3%A3o_Ordin%C3%A1ria_do_CNIg_2020.pdf

[12] Disponível em: https://portaldeimigracao.mj.gov.br/images/atas_cnig/2023/ATA_DA_I_REUNI%C3%83O_ORDIN%C3%81RIA_DO_CONSELHO_NACIONAL_DE_IMIGRA%C3%87%C3%83O.pdf

Autores

  • é mestre em Direito Constitucional pela UFPR (Universidade Federal do Paraná), relator da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB-PR, associado ao Instituto dos Advogados do Paraná e sócio do escritório Dotti Advogados.

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