Opinião

Direito migratório na Convenção Europeia de Direitos Humanos

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30 de julho de 2023, 9h22

A proposta de elaboração do presente texto, concernente, em primeira linha, ao atual problema da migração no velho continente, radica na problematização e na busca teórica e empírica de soluções à premente crise migratória na ambiência jurídica e política europeia, trazendo a lume o ponto crucial de inflexão para a própria sobrevivência da democracia e do Estado de Direito na Europa, sem olvidar, contudo, dos aportes teóricos que podem mutatis mutandis auxiliar as autoridades brasileiras a solver a crise de refugiados venezuelanos no norte do país.

O estudo lastreado no direito europeu, designadamente no âmbito da Convenção Europeia de Direito Humanos, justifica-se a fortiori na medida em que o sistema jurídico europeu protetivo dos direitos humanos está mais avançado em termos estruturais [1], fundado no seu percurso histórico já sedimentado, comparativamente aos sistemas interamericano e africano.

sxc.hu
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Aos 4 de novembro de 1950, era assinado no Palácio Barberini, em Roma, a Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais. A Convenção, que originalmente foi criada como forma de atribuir concreção fática à Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (1948), entrou efetivamente em vigor aos 03 de setembro de 1953, por intermédio dos estados pertencentes ao Conselho da Europa [2], à época com 14 estados membros fundantes.

Defronte às atrocidades levadas a cabo pelo regime nacional-socialista, ceifando por volta de 50 milhões de vidas humanas, dentre as quais seis milhões de judeus que foram tiranizados, acossados e, ao fim, exterminados no âmbito do assim cognominado terceiro Reich, foi decidido, como conditio sine qua non para o evitamento e elisão de novas violações a direitos fundamentais, a institucionalização de um tribunal com jurisdição em toda a Europa, prolator de decisões vinculativas a todos os estados signatários, e que atuasse, de forma inaudita, na proteção e promoção dos direitos humanos no velho continente.

Até 1.11.1998, ocasião na qual entrou em vigor o protocolo nº 11 à Convenção europeia, atuava, concomitantemente à judicatura do Tribunal, a Comissão Europeia de Direitos Humanos, instituída no ano de 1954, competindo-lhe o exercício de filtragem, no que toca à admissibilidade formal e de mérito, às demandas dirigidas à Corte.

Tal protocolo, sem embargo, extinguiu a outrora Comissão de Direitos Humanos, e sedimentou o caráter jurisdicional permanente e de acesso direto individualizado aos 800 milhões de europeus [3]. Os processos, destarte, se tornaram mais céleres. Uma espécie de capitis diminutio jurisdicional, que ainda remanesce no sistema interamericano de direitos humanos. Impende, de igual modo, destacar o protocolo nº 6 à Convenção europeia, que, em termos categoriais, proibiu a pena de morte no território europeu, à exceção dos casos previamente previstos em tempo de guerra ou de perigo iminente de guerra.

O termo "refugiado" ganhou contornos políticos de larga expressão nos últimos anos, vinculado indissociavelmente ao atual processo massivo migratório no cenário europeu e americano. O termo, malgrado o uso técnico-dogmático do Direito internacional público, desde sempre se impregnou de uma conotação crassamente depreciativa; tanto é assim, que um dos primeiros textos escritos em língua inglesa pela filósofa alemã Hannah Arendt "We Refugees" [4] propõe a descaracterização dos judeus da década de 1940 da condição de refugiados para o status de imigrantes comuns. Por certo, Hannah Arendt já havia antevisto a significativa dificuldade de inserção e discriminação dos "refugiados" na condição de pessoas "inferiores" ou de "segunda classe" num novo país.      

Malgrado a inexistência normativa do tema migrações na Convenção Europeia de Direitos Humanos, pelo menos não expressamente em um dispositivo específico, muitos casos envolvendo migrantes chegam às barras da justiça europeia. Com efeito, os juízes da mais alta corte de justiça sobre direitos humanos na Europa engendraram uma forma interpretativa sui generis para lidar com questões atinentes ao Direito migratório, em especial a partir da conjugação hermenêutica dos artigos 2º e 3º [5] da Convenção, renunciando a uma visão fragmentária e espasmódica do texto normativo europeu, e na exata linha de uma interpretação sistemática [6] do direito internacional migratório.         

Direito migratório na Jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos
Na esteira das lições do filósofo alemão, Ernst Tugendhat, recentemente falecido em Freiburg, um direito humano especialmente controverso é, sem dúvida, hoje, o direito à livre circulação. Este direito, que é um direito negativo, é atualmente reconhecido em geral nas ordens jurídicas internas, bem como o direito a emigrar, porém não o direito à imigração. A pergunta fulcral é se estamos falando de direitos humanos universais, dentro de um contexto de interdependência econômica, os Estados teriam o direito de se "encapsularem" [7].   

O processo de internacionalização dos Direitos humanos, ou mesmo de humanização do Direito internacional [8], contribuiu para um entendimento transnacional da questão migratória, em especial nas últimas décadas. O influxo da "viragem conceitual" da concepção do Direito e do Estado depreende-se da intensificação jamais vista dos descolamentos em massa de migrantes, em especial nos continentes europeu e americano. Defronte aos mais de 280 milhões de migrantes existentes atualmente no mundo [9], dentre os quais 26 milhões de refugiados [10], consoante dados extraídos do Relatório da Organização Internacional para Migração da ONU [11], uma solução monolítica e individualizada dos Estados nacionais é simplesmente impraticável e contraproducente.

Assim como preceitua Jürgen Habermas em alusão a uma democracia transnacional cosmopolita para tentar "controlar" politicamente os mercados internacionais [12], torna-se necessário, e urgente, uma reconfiguração jurídico-normativa em nível internacional para enfrentar adequadamente a situação, na maioria das vezes vulnerável, dos migrantes, e dos estados de destino em face da acolhida abrupta de um contingente cada vez maior de refugiados.     

Um número significativo de ordens jurídicas nacionais europeias já positivou em seus textos constitucionais a aplicabilidade imediata, e vinculação cogente, da Convenção Europeia de Direitos Humanos. Um caso particular, por exemplo, é a Alemanha, que no artigo 59, §2º da Lei Fundamental, prevê a Convenção Europeia de Direitos Humanos como direito federal válido a todos os poderes constituídos, da União e dos Estados federados, para além, inclusive, do poder legislativo [13].

A contrario sensu, no Brasil, desde a decisão emblemática do STF no RE 466.343, j. 03.12.2008, os Tratados internacionais sobre direitos humanos ingressam no sistema jurídico nacional com status supralegal, conquanto submetido ao controle jurisdicional de constitucionalidade.

No contexto político e jurídico europeu, um avanço significativo foi dado pela assinatura do Tratado de Lisboa aos 13 de dezembro de 2007, uma tentativa exitosa de consolidação da União Europeia para além de uma união monetária [14]. Não há dúvida de que o principal problema jurídico e político hodierno no contexto europeu é designadamente o processo massivo de imigração proveniente, em grande medida, da Síria e da rota do mediterrâneo, entre a Líbia e a ilha de Lampedusa, causando impacto ingente na política eleitoral interna dos países [15].

No cenário judicial internacional europeu, já há alguns anos, a jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos tem se perfilhado no sentido da concessão de refúgio, por violação aos artigos 2º e 3º da Convenção [16], nos casos em que o retorno do refugiado ao seu país de origem possa causar-lhe violação à sua integridade física (chacal vs. The United Kingdom, 1996).            

No caso Hirsi Jamaa e outros vs. Itália [17], julgado aos 23 de fevereiro de 2012, a Corte Europeia de Direitos Humanos, sediada em Estrasburgo, proferiu a emblemática decisão e, desde então, landmark case acerca da condição do refugiado em trânsito para os países de destino. Com efeito, o caso envolveu 11 imigrantes nacionais da Somália e 13 da Eritreia, que foram interceptados em alto mar pela guarda costeira italiana e conduzidos compulsoriamente à Trípoli, em 06 de maio de 2009.

O governo italiano argumentou, embasado em um Tratado bilateral com a Líbia que entrara em vigor no mesmo ano, que o mesmo concedia a possibilidade de interceptação e envio automático de imigrantes em rota para a Itália, em especial para ilha de Lampedusa. Malgrado a existência do referido Tratado bilateral, a Corte decidiu que tal política de interceptação e devolução forçada viola a Convenção Europeia de Direitos Humanos, designadamente pelo não acesso às instâncias administrativas e judiciais do país de destino para a formalização do pedido de refúgio, pela violação ao artigo 3º que proscreve quaisquer atos de tortura e lesão à integridade física, pela não aplicação do princípio do non-refoulement, bem como pela proibição de expulsões coletivas (não-individualizadas), esta última, inclusive, já acolhida na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Personas Dominicanas y Haitianas Expulsadas vs. República Dominicana, j. 28.08.2014).                 

Análise conclusiva
Desde o epítome jurisprudencial e analítico supra delineados, e após completarmos duas décadas no século 21, a questão migratória, imersa num contexto político de recrudescimento dos discursos nacionalistas e xenófobos, exsurge como tema prioritário na pauta das democracias mais sedimentadas do mundo.

Já constitui objeto primacial no debate político contemporâneo e nos sucessivos pleitos eleitorais mundo afora, bem como desponta nos trabalhos acadêmicos de pesquisa científica em escala global e nos mais distintos níveis da pós-graduação.

O processo hodierno migratório na Europa está na iminência de entrar em colapso, sobretudo pelos índices crescentes de deslocamento involuntário ocasionado pelos conflitos no oriente médio, na África e, mais especialmente, no nupérrimo conflito bélico engendrado pela Rússia (24/2/2022).

A Convenção Europeia de Direitos Humanos não prevê, em termos normativos, uma alternativa exclusivamente jurisdicional que resolva, em definitivo, a problemática dos migrantes no continente europeu. Para tanto, torna-se imperiosamente necessária uma atuação política conjunta dos estados europeus, ancorada no chamado princípio da solidariedade internacional, numa dupla perspectiva; seja entre os estados, de modo que o problema não poderá ser solucionado apenas por um Estado nacional, de forma isolada e monolítica, seja na relação Estado de destino e estrangeiro migrante, a partir do reconhecimento político e jurídico da vulnerabilidade [18] enquanto autêntico conceito jurídico-dogmático na órbita do Direito internacional.  

Ad conclusum, e desde a doutrina do notável internacionalista de Oxford, Ian Brownlie, existe, enquanto um princípio de direito internacional público, um "critério moral mínimo para os Estados civilizados", que proscreve in totum qualquer ato estatal que corresponda a um ultraje, ao não cumprimento voluntário de um dever ou a uma ação governamental insuficiente em relação aos estrangeiros, inclusive em relação ao refugiado, o qual qualquer homem razoável e imparcial reconheceria prontamente como inadequado e insuficiente [19].

 

 

Bibliografia
ARENDT, Hannah. We Refugees. The Jewish Writings. Schocken Books: New York, 1943.

BROWNLIE, Ian. Princípios de Direito Internacional Público. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 1997.

CANOTILHO, Mariana. A Vulnerabilidade como Conceito Constitucional: Um Elemento para a Construção de um Constitucionalismo do Comum, in: OÑATI SOCIO-LEGAL SERIES, Volume 12, ISSUE 1 (2022).

CLARO, Carolina de Abreu Batista. O Caso Hirsi Jamaa e outros vs. Itália e a responsabilidade estatal no tratamento de estrangeiros, in: Revista de Estudos Internacionais (REI), vol. 1 (2), 2010.

FREITAS, Juarez. A Interpretação Sistemática do Direito. 5ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2010.

HABERMAS, Jürgen. Zur Verfassung Europas: Ein Essay. Frankfurt a.M: Suhrkamp Verlag, 2011.   

MICHAEL, Lothar. Grundrechte. Baden-Baden: Nomos Verlag, 2008.

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça internacional. Um Estudo Comparativo dos Sistemas Regionais Europeu, Interamericano e Africano. 9ª ed., São Paulo: Saraiva, 2019.  

TUGENDHAT, Ernst. Die Kontroverse um die Menschenrechte, in: GOSEPATH, Stefan; LOHMANN, Georg (Org.). Philosophie der Menschenrechte. STW: Frankfurt am Main, 1998.

 


[1] PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. Um Estudo Comparativo dos Sistemas Regionais Europeu, Interamericano e Africano. 9ª ed., São Paulo: Saraiva, 2019. p. 127.    

[2] O Conselho da Europa, fundado aos 05 de maio de 1949, é o órgão político mais representativo do continente europeu, composto hodiernamente por 46 Estados membros.    

[3] Após a exclusão da Rússia do Conselho da Europa, este número diminui significativamente.

[4] ARENDT, Hannah. We Refugees. The Jewish Writings. Schocken Books: New York, 1943. p.264.   

[5] Respectivamente, "O direito de qualquer pessoa à vida é protegido pela lei", e "Ninguém pode ser submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes".

[6] Por interpretação sistemática, entende-se uma visão integradora e inclusiva da exegese jurídica, resultando numa hierarquização axiológica, que tem como função atribuir a melhor significação, dentre várias possíveis, aos princípios, às normas e aos valores jurídicos, hierarquizando-os num todo aberto, fixando-lhes o alcance e superando antinomias, a partir da conformação teleológica, tendo em vista solucionar casos concretos. Cf., FREITAS, Juarez. A Interpretação Sistemática do Direito. 5ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2010. p. 54 e ss.       

[7] Cf., TUGENDHAT, Ernst. Die Kontroverse um die Menschenrechte, in: GOSEPATH, Stefan; LOHMANN, Georg (Org.). Philosophie der Menschenrechte. STW: Frankfurt am Main, 1998. p. 60; 

[8] Cf., PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça internacional. Um Estudo Comparativo dos Sistemas Regionais Europeu, Interamericano e Africano. 9ª ed., São Paulo: Saraiva, 2019. p. 55 e ss.     

[9] Com a irrupção dos conflitos na Síria, em 15 de março de 2011, a crise envolvendo os refugiados se tornou alarmante, de modo que, atualmente, de cada três refugiados no mundo, um é sírio.  Hannoversche Allgemein, http: / /www.haz.de/Nachrichten/Politik/Deutschland-Welt/In-welchen-Laendern-Fluechtlinge-Zuflucht-suchen.  Acesso em 15.07.2023.

[10] Consoante a Organização Internacional para Migração da ONU, são 20,4 milhões de refugiados sob o mandato do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, e 5,5 milhões de refugiados sob o mandato da Agência das Nações Unidas para os Refugiados da Palestina.

[11] Cf., MCAULIFFE, M., A. TRIANDAFYLLIDOU (eds.). World Migration Report 2022. International Organization for Migration (IOM), Geneva, 2021. p. 3-4.  

[12] HABERMAS, Jürgen. Zur Verfassung Europas: Ein Essay. Frankfurt a.M: Suhrkamp Verlag, 2011.   

[13] Cf., MICHAEL, Lothar. Grundrechte. Baden-Baden: Nomos Verlag, 2008. p. 70.

[14] Em 30 de junho de 2009, o segundo senado do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha decidiu, por maioria de votos, a favor da constitucionalidade do Tratado de Lisboa, porém impôs fortes limites constitucionais à transferência de soberania nacional à União Europeia, bem como ampliou o seu direito de controlar a constitucionalidade do direito comunitário europeu, fortalecendo as competências parlamentares da Alemanha face aos assuntos ligados ao direito internacional.  

[15] Na Alemanha, o partido popular de direita (Alternativa para a Alemanha – AfD) está ascendendo abruptamente, e já é considerada a terceira força política do país, com 13% do apoio eleitoral. https://www.dw.com/pt-br/pesquisa-confirma-ascens%C3%A3o-da-afd/a-40650350.  Acesso em 20.06.2023.

[16] Consoante predispõe o artigo 3º da Convenção Europeia sobre a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, "ninguém pode ser submetido à tortura ou a tratamento desumano ou degradante".  

[17] Para um estudo minudente sobre o caso, em língua portuguesa, ver CLARO, Carolina de Abreu Batista. O Caso Hirsi Jamaa e outros vs. Itália e a responsabilidade estatal no tratamento de estrangeiros, in: Revista de Estudos Internacionais (REI), vol. 1 (2), 2010.     

[18] CANOTILHO, Mariana. A Vulnerabilidade como Conceito Constitucional: Um Elemento para a Construção de um Constitucionalismo do Comum, in: OÑATI SOCIO-LEGAL SERIES, Volume 12, ISSUE 1 (2022). p. 141. 

[19] BROWNLIE, Ian. Princípios de Direito Internacional Público. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 1997. p. 550.   

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