Opinião

Paridade de gênero no Judiciário

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20 de dezembro de 2023, 13h13

Em setembro último, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) aprovou a Resolução 525/23, que institui, nas promoções por merecimento para a segunda instância, a necessidade de alternância de lista, uma pelos critérios tradicionais, outra composta apenas por magistradas.

Essa resolução poderia — e deveria — ser lida apenas como instrumental à efetivação dos direitos garantidos pela Constituição (artigo 5º, I — homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição). Vale ressaltar que, para o constituinte, foi necessário enfatizar que não apenas todos são iguais, mas mulheres e homens são iguais. Há aqui um comando para que a igualdade seja garantida para além das restrições de gênero que a história criou.

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Aliás, o artigo 5º, que é o coração da carta de direitos, precede e condiciona os demais dispositivos, inclusive a Administração Pública, inclusive o Judiciário, inclusive os tribunais.

Por isso, nada mais justo e jurídico que se pensar que a Resolução é forma de efetivação de direitos.

Há, porém, dois entraves básicos para que se neguem à paridade e às ações afirmativas o status e a importância real que esses instrumentos têm na construção de uma sociedade mais justa e democrática.

O primeiro entrave é que ainda é latente na sociedade a depreciação do trabalho da mulher.

Isso significa que a magistratura não se descolou por completo do padrão social da avaliação da atividade feminina. A mulher ainda tem seu valor mensurado pela forma como se desempenha no cuidado da família e, por isso, é aceitável que suas promoções venham a ser postergadas em nome dos interesses de filhos, maridos, companheiros e família em geral.

A renúncia à progressão rápida na carreira vem a confirmar um outro viés negativo do trabalho feminino, que é o pré-conceito de que o trabalho externo nunca é prioritário para as mulheres. A prioridade é o lar.

Como corolário desse postulado surge a desconfiança de que magistradas possam não ser tão dedicadas quanto seus colegas homens.

Uma vez que as atividades de homens e mulheres passam a não ter o mesmo peso (por mais que os resultados práticos desmintam o desvio na avaliação inicial), garantir paridade é um conceito que não tem merecido o devido destaque como fundamental à democracia. Aliás, como elemento fundamental para se fazer justiça ao trabalho da mulher.

O segundo entrave é a falta de percepção do significado de direitos em uma democracia.

É sabido que há duas formas de promoção na carreira, merecimento e antiguidade.

No Tribunal de Justiça de São Paulo, os dois critérios acabam por se identificar, de maneira que as promoções por um ou por outro critério sempre mantiveram as posições da carreira.

Aqui é preciso lembrar que o ingresso das mulheres na magistratura paulista se fez de forma tardia, tanto quando comparado a outros tribunais, quando comparado a outras carreiras jurídicas. Com isso se quer dizer que a chegada de mulheres aos cargos de direção é ainda mais demorado, efeito de restrição histórica à admissão de mulheres.

Nessa perspectiva, a necessidade de se promover equidade, que passa a ser critério de merecimento, garante reparação social ao papel efetivo que as mulheres desempenham.

A reparação é ganho para todos. A reparação é a oportunidade de efetivar a igualdade prevista na Constituição.É ganho coletivo.

A questão da reparação é objeto de um segundo entrave. A oposição à equidade, agora já não travestida de desconfiança subliminar contra as mulheres, apresenta-se como defesa de direitos e expectativas individuais.

O argumento contra a equidade, na forma de defesa de indivíduos, camufla uma perigosa premissa, de que é democraticamente viável uma sociedade em que se admite o sacrifício de grupos, para garantia de indivíduos.

A mesma defesa de direitos individuais (a propriedade) e a mesma defesa da manutenção de expectativas foram fundamentos contra a abolição da escravidão.

Com o exemplo, não se pretende comparar situações históricas e sociais distintas, mas apenas mostrar como a alegada defesa de expectativas individuais é um fundamento fraco quando se pensa em democracia e quando se fala em ampliação de acesso a grupos subrepresentados.

Os interesses coletivos, se a intenção é realmente “instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”, como está no está no preâmbulo da Constituição, preponderam, necessariamente sobre expectativas individuais.

Não há nenhuma expectativa individual, nenhum direito individual almejado, que possa, por justiça (e apenas por retórica), se sobrepor a direitos coletivos.

Garantir o acesso de mais mulheres aos tribunais, à política, à Administração Pública, assegurando a paridade, assegurando nos poderes a mesma proporção em que o elemento feminino aparece na sociedade é democracia.

A democracia não tem rosto individualizado. A democracia é o instrumento para a construção da sociedade mais justa e inclusiva.

 

Coletivo Sankofa de Magistradas
Angélica de Maria Mello de Almeida (desembargadora aposentada);
Cynthia Torres Cristofaro (juíza da 23ª Vara Criminal de São Paulo);
Danielle Camara Takahashi Consentino Grandinetti (juíza da 2ª Vara de Peruíbe-SP);
Juliana Silva Freitas (juíza de Cordeirópolis-SP);
Lívia Antunes Caetano (juíza de Iacanga-SP);
Luciana Caprioli Paiotti (juíza da 1ª Vara da Família e Sucessões do FR da Vila Prudente-SP);
Rafaela Caldeira Gonçalves (juíza da Vara da Região Oeste de SP de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher);
Renata Bittencourt Couto da Costa (juíza da 4ª Vara Cível de Barueri-SP);
Teresa Cristina Cabral Santana (juíza da 2ª Vara Criminal de Santo André-SP).

 

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