Opinião

Legítimo ingresso em domicílio e a Tese de Repercussão Geral nº 280 do STF

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20 de dezembro de 2023, 6h22

A inviolabilidade de domicílio está prevista no artigo 5º, XI, da Constituição, e deixa estatuído que a “casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”. Nessa esteira, tanto a doutrina [1] quanto a jurisprudência [2] brasileira sempre reconheceram que, havendo a ocorrência de flagrante delito, estariam presentes razões necessárias e suficientes para o ingresso em domicílio, com o fim de fazer cessar a lesão ao bem jurídico correspondente e efetuar a prisão em flagrante dos envolvidos, especialmente em hipóteses de crimes permanentes.

O que antes era compreendido como um entendimento pacífico e isento de quaisquer debates, pouco a pouco se tornou objeto de excessos — senão abusos — por parte, especialmente, dos agentes de segurança pública. Denúncias desprovidas de elementos mínimos e violações irascíveis de direitos mediante incursões domiciliares infrutíferas geraram a necessidade de um melhor regramento da matéria, a fim de se restabelecer a garantia estatuída pela Carta Constitucional.

Através do leading case RE 603.616/RO [3], a Suprema Corte instituiu a Tese de Repercussão Geral nº 280 [4], segundo a qual, nas hipóteses de crime permanente e em havendo elementos mínimos (fundadas razões) que sustentem a ocorrência de flagrante, é legítima a entrada forçada em domicílio para fazer cessar a lesão, ou ameaça de lesão, ao bem jurídico em perigo. É possível, desse modo, a busca e apreensão domiciliar sem mandado judicial, isto é, o ingresso forçado em residência, em caso de flagrante delito, especialmente em casos de crimes permanentes.

De outro lado, a entrada forçada em domicílio, sem uma justificativa prévia e conforme o Direito, é arbitrária. Devem os agentes estatais demonstrar circunstancialmente que havia elementos mínimos a caracterizar as fundadas razões (justa causa) para a medida de ingresso, sob pena de sua invalidação.

Presentes as fundadas razões, nos termos exigidos pela Suprema Corte, não há que se discutir acerca da (1) necessidade de mandado judicial; (2) autorização escrita do responsável pelo domicílio; ou (3) acompanhamento por vídeo para a concretização da atividade policial. Tanto o (1) mandado judicial quanto a (2) autorização escrita para ingresso em domicílio configuram situações de exceção à garantia constitucional de inviolabilidade de domicílio, logo, faz-se indispensável a autorização prévia do investigado (gravada ou por escrito) ou a concessão de ordem judicial permitindo a incursão com fim certo. Todavia, a ordem judicial ou o assentimento voluntário, em nada se confundem com aqueloutras hipóteses previstas expressamente no artigo 5º, XI, da CF [5], como situações de desastre ou em caso de flagrante delito.

Decisões conflitantes
É salutar observar que a existência de decisões intermitentes, senão inconstantes, do Superior Tribunal de Justiça — mais especificamente das 5ª e 6ª Turmas [6] — não devem ser consideradas de forma absoluta na condução dos processos criminais, especialmente quando fulminam ações policiais firmemente amparadas na Tese nº 280 da Suprema Corte. Inclusive, a própria 5ª Turma do STJ oscila em seus posicionamentos sobre o tema. Já decidiu que o estado flagrancial do delito de tráfico de drogas consubstancia uma das exceções à inviolabilidade de domicílio, prevista no inciso XI do artigo 5º da Constituição, não havendo se falar, pois, em eventual ilegalidade na entrada dos policiais na residência dos suspeitos, conforme é possível extrair do AgRg no HC nº 826.743/SP [7].

Seja como for, devem ser utilizadas como paradigma de interpretação do texto constitucional as decisões provenientes do legítimo hermeneuta e guardião da Constituição [8]. Pretender imiscuir na Tese nº 280 do Supremo Tribunal Federal elementos exógenos, como (1) termos de autorização, (2) filmagens em tempo real, (3) diligências investigatórias prévias, (4) dentre outros, é usurpar a atribuição confiada à Suprema Corte e investir contra as competências constitucionalmente estabelecidas na Carta Magna.

Não é por outra razão que, em decisões mais recentes, o STF tem reconhecido que o STJ vem extrapolando sua competência jurisdicional (e.g., RE 1.447.939/SP [9] e RE 1.447.374/MS [10]), ao restringir indevidamente as exceções constitucionais à inviolabilidade de domicílio e entabular exigências extraneus, a exemplo da “diligência investigatória prévia”, em clara afronta ao Tema nº 280:

“(…) a Constituição Federal estabelece específica e restritamente as hipóteses possíveis de violabilidade domiciliar, para que a “casa” não se transforme em garantia de impunidade de crimes, que em seu interior se pratiquem ou se pretendam ocultar. (…) Ocorre, entretanto, que o Superior Tribunal de Justiça, no caso concreto ora sob análise, após aplicar o Tema 280 de Repercussão Geral dessa SUPREMA CORTE, foi mais longe, alegando que não obstante os agentes de segurança pública tenham recebido denúncia anônima acerca do tráfico de drogas no local e o suspeito, conhecido como chefe do tráfico na região, tenha empreendido fuga para dentro do imóvel ao perceber a presença dos policiais, tais fatos não constituem fundamentos hábeis a permitir o ingresso na casa do acusado. Assim, entendeu que o ingresso dos policiais no imóvel somente poderia ocorrer após “prévias diligências”, desconsiderando as circunstâncias do caso concreto, quais sejam: denúncia anônima, suspeito conhecido como chefe do tráfico e fuga empreendida após a chegada dos policiais. 6. Nesse ponto, não agiu com o costumeiro acerto o Tribunal de origem, pois acrescentou requisitos inexistentes no inciso XI, do artigo 5º da Constituição Federal, desrespeitando, dessa maneira, os parâmetros definidos no Tema 280 de Repercussão Geral por essa SUPREMA CORTE (…)”

Com base no entendimento já fixado pela sistemática da repercussão geral, o Supremo Tribunal Federal tem encerrada como válidas as ações policiais em casos em que o ingresso em residência estava plenamente justificado pelas circunstâncias concretas do flagrante, o que tem garantido a validade das provas obtidas e afastado decisões desmedidas do Superior Tribunal de Justiça (e.g. Recursos Extraordinários 1.447.939/SP e 1.447.374/MS).

Não é legítimo que critérios não previstos em norma alguma sejam criados pelo Tribunal da Cidadania, em franco desrespeito àquilo entabulado em sede de repercussão geral pela Corte Suprema. Deve prevalecer, naturalmente, o entendimento da Suprema Corte, inobstante o expressivo volume de decisões do STJ em sentido oposto. É de incumbência do STF conferir a interpretação constitucional adequada, atribuição que tem sido, repetidas vezes, vilipendiada pelo STJ em casos deste jaez, ao cunhar exigências não previstas em norma alguma, em espúria “inventividade judicial”.

Os casos de tráfico de droga
Rememore-se que o crime de tráfico de substâncias entorpecentes possui natureza permanente, o que prolonga sua execução no tempo, já que é considerada contínua a prática da conduta ilícita, razão pela qual os mandados de busca e apreensão são dispensáveis, assim como não se exige autorização para entrada em domicílio, desde que demonstradas as razões que justifiquem a entrada forçada.

Em situações nas quais haja justa causa e suspeita fundada de que no local esteja ocorrendo um crime em latente estado de flagrante, ou permanente (continuidade do flagrante), como no caso do tráfico de drogas, os órgãos de segurança detém amparo constitucional para adentrar no recinto e fazer cessar a lesão ou ameaça de lesão, sem prévia autorização judicial ou consentimento do morador, com fundamento na Tese de Repercussão Geral nº 280 da Suprema Corte, e desde que existam elementos de informação acerca da prática de crime naquele ambiente. A obtenção do “Termo de Autorização de Entrada” não desconfigura a situação flagrancial, nem ilide a aplicação da Tese nº 280 do STF.

As decisões conflitantes da 5ª e 6ª Turmas do STJ, ora validando, ora considerando nulas situações variadas decorrentes de flagrantes de tráfico de drogas, merecem ser examinadas com cautela, sob pena de inviabilizar a atuação policial em solo brasileiro. Na prática, diante das decisões oscilantes, agentes policiais têm procurado atuar da forma excessivamente cautelosa, até mesmo em contrariedade à realidade da atividade de policiamento ostensivo. Tem-se exigido um excesso de zelo dos agentes castrenses que os afasta da sua legítima atuação, ainda quando presentes fundadas razões.

Conclusão
Em suas recentes decisões, a Corte Constitucional tem expurgado do ordenamento pátrio aquelas do Superior Tribunal de Justiça que vêm afrontando o Texto Magno e agregando condições desarrazoadas ao exercício das exceções constitucionais, como termos de autorização (por escrito) e filmagens em tempo real.

Impõe-se um adequado balizamento e compreensão por parte dos tribunais infraconstitucionais acerca do alcance da expressão “fundadas razões”, de modo a se permitir, de um lado, a apropriada repressão dos ilícitos em desenvolvimento no interior do asilo individual, e, de outro, o afastamento e correção dos excessos e abusos praticados pelos agentes públicos.

Cabe ao legítimo intérprete do Texto Constitucional cunhar os parâmetros por meio dos quais os demais integrantes do Poder Judiciário devem abalizar suas formulações judiciais, coibindo-se a atividade policial com exigências estranhadas, como termos de autorização, filmagens em tempo real ou diligências investigatórias prévias, em óbvia inventividade judicial, a inviabilizar o trabalho dos órgãos de segurança pública.

O exercício dos deveres e garantias previstas no artigo 5º, XI, da CF estão explicitamente dispostos no Texto Maior e delineados pela Tese de Repercussão Geral nº 280 da Suprema Corte, não sendo apropriado imiscuir em suas entrelinhas exigências exógenas que inviabilizem o seu pleno exercício, sob risco de inovar à revelia das exceções constitucionais e afrontar aquilo que foi validamente ditado e consolidado em nosso ordenamento pelo Guardião Constitucional.

 


[1] PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 17. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Atlas S.A., 2013, p. 370.

[2] STJ (Superior Tribunal de Justiça). Habeas Corpus nº 223.715/SP. Brasília, 2011. Disponível em https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&num_registro=201102622350. Acesso em: novembro de 2023.

[3] STF (Supremo Tribunal Federal). Recurso Extraordinário nº 603.616/RO. Brasília 2015. Disponível em https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=3774503. Acesso em: novembro de 2023.

[4] É o inteiro teor da Tese de Repercussão Geral nº 280, STF: “A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos praticados”.

[5] “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;”

[6] AgRg no REsp 1.865.363/SP; AgInt no HC 566.818/RJ; HC 611.918/SP; AgRg nos EDcl na RvCr 5869/SC; AgRg no RHC 183026/RS; e AgRg no HC 826743/SP.

[7] STJ (Superior Tribunal de Justiça). Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 826.743/SP. Brasília, 2023. Disponível.em.https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&num_registro=202301817933. Acesso em: novembro de 2023.

[8] Art. 102 da CF: “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição (…).”

[9] STF (Supremo Tribunal Federal). Recurso Extraordinário nº 1.447.939/SP. Brasília 2023. Disponível em https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15360262279&ext=.pdf. Acesso em: novembro de 2023.

[10] STF (Supremo Tribunal Federal). Recurso Extraordinário nº 1.447.374/MS. Brasília, 2023. Disponível em https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=771484106. Acesso em: novembro de 2023.

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