Fábrica de Leis

Incentivos para o controle parlamentar das agências reguladoras

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19 de dezembro de 2023, 9h16

Em 2016, assistimos a um episódio de intensa mobilização do Congresso para reverter uma decisão regulatória. Quando a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) publicou a Resolução nº 400, permitindo que as companhias aéreas cobrassem pelo despacho de bagagem nos voos, os parlamentares iniciaram uma verdadeira investida contra a medida.

Logo após a edição da Resolução nº 400, em dezembro de 2016, sete membros da Câmara apresentaram projetos de decreto legislativo (PDLs) para sustar os seus efeitos. Pouco mais de um ano depois, a Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara encaminhou solicitação de fiscalização do processo de edição da norma pela Anac ao Tribunal de Contas da União (TCU). Já em 2019, no processo de aprovação da MP nº 863/2018 (que flexibilizava os requisitos para participação de empresas estrangeiras no setor de aviação brasileiro) na Câmara, foi proposta uma emenda que incluía na lei a regra de franquia mínima de despacho de bagagem.

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As investidas parlamentares não tiveram sucesso no final. Os PDLs propostos não foram aprovados. O TCU, no processo de fiscalização da Resolução nº 400, decidiu manter a norma expedida pela Anac. Por fim, a emenda à MP nº 863 foi vetada pelo então presidente Jair Bolsonaro, alegando a falta de pertinência ao objeto da proposta. O ex-presidente Bolsonaro ainda vetaria, em 2022, com argumentos essencialmente econômicos, o artigo 8º do Projeto de Lei de Conversão (PLV) nº 5/2022, oriundo da Medida Provisória nº 1.089/2021, também conhecida como “MP do Voo Simples”.

O dispositivo vetado, fruto de emenda parlamentar durante a tramitação do PLV, pretendia acrescentar um inciso ao artigo 39 da Lei 8.078/1990 — Código de Defesa do Consumidor (CDC) — para vedar, entre as demais práticas abusivas, a cobrança do primeiro volume de bagagem despachado. Esses vetos contribuíram para a permanência, até hoje, da vigência da Resolução nº 400/2016 da Anac.

O que explica essa mobilização intensa dos mecanismos de controle parlamentar das agências reguladoras em casos como o da franquia de bagagem? Quais interesses podem levar os congressistas a exercer o controle de agências, e quais condições elevam ou diminuem os incentivos para que eles se engajem nesse tipo de atividade?

Na dissertação que será em breve defendida no programa de mestrado em Direito da Regulação da FGV Direito Rio por Julia Martel de Almeida, orientada por Natasha Salinas — ambas autoras deste artigo — procurou-se contribuir para a resposta a essas perguntas. Nesse trabalho, intitulado “Controle de agências reguladoras pelo Poder Legislativo: um estudo dos incentivos para mobilização de instrumentos de controle da Anac pelos membros da Câmara dos Deputados”, foram analisadas empiricamente um conjunto de 797 proposições legislativas da Câmara dos Deputados relacionadas à Anac (entre requerimentos de audiência pública, requerimentos de informação, projetos de lei, projetos de decreto legislativo e propostas de fiscalização e controle) apresentadas entre 2006 e 2022, obtidas da base de Dados Abertos da Câmara dos Deputados. Antecipamos, aqui, alguns dos achados da pesquisa.

Quais temas mais suscitaram o controle parlamentar da Anac?
Os temas que mais mobilizaram iniciativas de controle da Anac foram a relação das companhias aéreas com os consumidores (25%) e as normas e a fiscalização aplicáveis a aeroportos e aeródromos (20%). Essas são as temáticas que atraem o interesse dos deputados para controlar as atividades da Anac de forma mais recorrente ao longo do tempo.

O fato de a relação das empresas com os consumidores ser um tema tão frequente no controle parlamentar pode indicar que o Congresso é uma via importante de proteção do consumidor na regulação do setor aéreo. Em pesquisa em andamento, Natasha Salinas e Caio Assumpção, pesquisadores do projeto Regulação em Números da FGV Direito Rio, identificaram que entidades consumeristas e organizações da sociedade civil recorrem muito pouco às agências reguladoras federais de transportes, Anac, ANTT e Antaq,  para participar de processos regulatórios. Essas entidades utilizam muito mais a via legislativa para impulsionar suas demandas.

O efeito do calendário eleitoral
Além dos eventos que criam incentivos conjunturais para o controle, a quantidade de proposições é impactada por um fator que tem caráter cíclico: o calendário eleitoral. Observou-se que a média do número de proposições apresentadas nos anos eleitorais (24,2%) é significativamente mais baixa nos anos eleitorais do que nos anos não-eleitorais (56,3%).

A literatura já afirmou que, com a proximidade das eleições, os parlamentares tendem a se dedicar às atividades que lhes dão retorno eleitoral mais alto e imediato. A quantidade mais baixa de proposições de controle nesses anos sugere, então, que o controle da Anac não está no topo da lista de prioridades nesse período.

A participação em partidos de oposição
O controle da Anac não é uma estratégia de exclusividade de parlamentares da oposição; essa atividade é bem disseminada, também, entre membros de partidos da base governista. Esse comportamento faz sentido porque os parlamentares podem ter interesses diversos em exercer controle sobre a agência, não necessariamente decorrentes da oposição partidária. Por exemplo, o controle pode ser exercido para defender as preferências da base eleitoral do congressista ou de grupos de interesse.

Apesar disso, foi possível observar um envolvimento 80% maior de parlamentares de oposição do que dos de governo. Isso sugere que, embora existam incentivos para o controle da Anac distribuídos entre membros e não-membros da coalizão, a oposição partidária ou ideológica ao governo gera incentivos adicionais para esse controle.

A defesa de interesses municipais ou estaduais
A maioria das proposições analisadas tem escopo nacional (77%), e esse padrão se mantém de forma bastante consistente ao longo dos anos. No entanto, isso pode se dever a uma dinâmica específica do setor aéreo, e não necessariamente reflete o que ocorre no controle de outras agências reguladoras. É que o setor regulado pela Anac é composto principalmente por empresas aéreas, que atuam em todo o território nacional, e uma parte relevante das normas e medidas adotadas pela Anac destinam-se a regular essas empresas.

Nesse contexto, é possível observar um engajamento maior dos parlamentares de estados ou municípios cujos eleitores são especialmente impactados pela regulação da agência. É o que se observa nos parlamentares dos estados da Região Norte: eles concentram 42% das proposições locais, embora ocupem somente 13% das cadeiras da Câmara.

Isso provavelmente se deve ao fato de que os estados da Região Norte, ao mesmo tempo, (a) recebem menor cobertura da rede nacional de tráfego aéreo, e (b) dependem significativamente do transporte aéreo para o deslocamento interno em parte de sua área (devido às dificuldades de locomoção no interior dos estados, particularmente na região amazônica). Isso faz com que a defesa de interesses locais perante a Anac faça mais sentido para parlamentares dessa região.

Seguindo essa lógica, as proposições locais normalmente questionam: as normas ou decisões da Anac sobre o fechamento ou a imposição de restrições ao funcionamento de aeroportos ou aeródromos específicos, a escassez de voos com partida ou destino a determinado local, ou os altos preços de passagens dos voos com partida ou destino a certas regiões.

A defesa das preferências de grupos de interesse
Conforme já explorado pela literatura norte-americana e brasileira, os legisladores podem ser levados a exercer pressão sobre agências para influenciar suas decisões em favor das preferências de grupos de interesse organizados. No contexto brasileiro, já se apontou que uma plataforma de conexão entre os membros do Congresso e os grupos de interesse são as frentes parlamentares suprapartidárias.

Os parlamentares que adotam a estratégia de defesa de interesses organizados tenderiam a se especializar na fiscalização da agência que regula o setor no qual esses grupos atuam. E, confirmando essa expectativa, foi possível observar que os parlamentares que concentram as maiores quantidades de proposições na base participam de pelo menos uma frente parlamentar relacionada ao setor de aviação ou de turismo.

Em um cenário no qual o Congresso tem se mostrado interessado, em diversos casos, em tentar atuar sobre o processo de produção da regulação pelas agências — como ilustra o caso da franquia de bagagem na Anac —, esses achados podem nos ajudar a entender que tipos de influências ele tenta introduzir nesse processo e em que contextos isso tenderá a ocorrer.

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