Opinião

Terrenos de marinha: funções em um país desigual e sujeito a catástrofes ambientais

Autor

  • Leandro Mitidieri Figueiredo

    é procurador da República coordenador do Grupo de Trabalho de Unidades de Conservação integrante do Grupo de Trabalho Quilombos e Titular do Ofício Extraordinário para Crise Yanomami no MPF.  Doutorando em sociologia e direito e mestre em Direito Constitucional pela UFF (Universidade Federal Fluminense) especialista em Direito Constitucional pela Universidade de Pisa especialista em Direito Público pela UnB (Universidade de Brasília).  Ex-professor da UFF e da PUC-SP.

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29 de maio de 2024, 6h33

A Proposta de Emenda Constitucional 3/2022 prevê a alteração do inciso VII do artigo 20 da Constituição e o § 3º do artigo 49 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para a transferência dos terrenos de marinha e seus acrescidos: aos estados e municípios, se afetadas ao serviço público ou para expansão do perímetro urbano; aos foreiros e ocupantes regularmente inscritos na SPU até a publicação da EC;  aos ocupantes não inscritos, se a ocupação data de cinco anos antes da publicação da EC;  aos cessionários. O objetivo da proposta é acabar com o instituto da enfiteuse.

A Câmara dos Deputados aprovou, em fevereiro de 2022, em dois turnos, a proposta, que se encontra agora no Senado, contando já com parecer favorável do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), relator da matéria.

A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado fez anteontem, dia 27, audiência pública interativa para discutir a referida PEC.  Na oportunidade, a representante do Ministério do Meio Ambiente informou que outros países adotam área de segurança ainda maior na costa marítima: 50 metros em Portugal, 100 a 300 metros na Suécia, 150 a 250 metros no Uruguai e 150 metros na Argentina.

A representante da Secretaria de Gestão do Patrimônio da União alertou para um risco de caos administrativo, ressaltando que há países readquirindo áreas de praia anteriormente privatizadas.  O representante do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República ressaltou que a PEC afeta a soberania nacional.

O Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais, a Associação dos Terminais Portuários Privados e o Instituto de Terras do Estado do Amapá também se manifestaram contra a proposta.  Já os prefeitos presentes se manifestaram favoravelmente.

Nos termos do Decreto-lei 9.760/1946, que dispõe sobre os bens imóveis da União:

Art. 2º São terrenos de marinha, em uma profundidade de 33 (trinta e três) metros, medidos horizontalmente, para a parte da terra, da posição da linha do preamar-médio de 1831:

  1. a) os situados no continente, na costa marítima e nas margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés;
  2. b) os que contornam as ilhas situadas em zona onde se faça sentir a influência das marés.

Parágrafo único. Para os efeitos dêste artigo a influência das marés é caracterizada pela oscilação periódica de 5 (cinco) centímetros pelo menos, do nível das águas, que ocorra em qualquer época do ano.”

O artigo 20, inciso VII, da Constituição, prevê como bens da União os terrenos de marinha e seus acrescidos, assim como o artigo 49, § 3º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, estabelece que “a enfiteuse continuará sendo aplicada aos terrenos de marinha e seus acrescidos, situados na faixa de segurança, a partir da orla marítima”.

Regime de enfiteuse

Os terrenos de marinha são uma faixa de terra na costa marítima, ou seja, na região ocupada primeiro e historicamente mais densa do país. Em razão disso, grande parte dos terrenos de marinha foram ocupados por particulares, estando muitas das áreas mais nobres das cidades sobre essas faixas, sob o regime de enfiteuse, em que deve ser pago um foro anual e o laudêmio no caso de venda (Decreto-lei 2.398/1987).

Agência Senado

Nesses termos é que o instituto cumpre uma função fiscal e sua extinção pode impactar as receitas da União, o que fundamentou o requerimento do senador Rogério Carvalho (PT-SE) de realização de audiência pública (REQ 24/2023-CCJ). Sua arrecadação acaba incidindo sobre os mais ricos, não só por abarcarem os prédios “de frente para a praia”, mas também pela isenção do artigo 1º do Decreto-Lei 1.876/81 às “pessoas consideradas carentes ou de baixa renda cuja situação econômica não lhes permita pagar esses encargos sem prejuízo do sustento próprio ou de sua família” (redação dada pela Lei 11.481/2007). Por isso, não procedem os argumentos veiculados de que a PEC estaria preocupada com famílias pobres habitando essas áreas.

Mais importantes, contudo, são as outras funções que o instituto assumiu.  Originalmente se tratando de uma medida de segurança, em que a medida de 15 braças, equivalente a 33 metros, era considerada a largura suficiente para permitir o livre deslocamento de um pelotão militar na orla, pelo menos a partir do Decreto-lei 2.398/87, os aforamentos ou as autorizações de construções em terrenos de marinha passaram a ter que considerar o aspecto ambiental (artigo 5º, parágrafo único). Se no passado pressões econômicas e urbanas orientaram a ocupação desses espaços na costa, o instituto hoje vem representando um outro instrumento de proteção ambiental.

Em verdade, desde suas origens remotas, o terreno de marinha exerce função ambiental no tocante ao acesso às praias e ao mar.  Ainda no regime colonial português, a praia já era bem de uso comum do povo pertencente à Coroa. Não só a praia como o “salgado” ou “terras salgadas” (zona de influência da praia) destinavam-se ao “uso e servidão do povo”. Até a linha da preamar (maré alta) foi tomada como referência seguindo a tradição do Direito Romano que estabelecia o limite da praia como a linha de alcance das maiores ondas do mar.

A Lei 7.661/88, todavia, além de assegurar o livre e franco acesso às praias e ao mar, em qualquer direção e sentido, não permitindo a urbanização ou qualquer forma de utilização do solo na Zona Costeira que impeça ou dificulte esse acesso, também define praia como a área coberta e descoberta periodicamente pelas águas, acrescida da faixa subsequente de material detrítico, tal como areias, cascalhos, seixos e pedregulhos, até o limite onde se inicie a vegetação natural, ou, em sua ausência, onde comece um outro ecossistema (artigo 10).

Assim, em verdade, terrenos de marinha, em muitos casos, são nada mais do que a própria praia ou então restinga.  Não se deve esquecer que constitui área de preservação permanente a área situada nas restingas em faixa mínima de 300 metros, medidos a partir da linha de preamar máxima, nos termos da Resolução 303/2002 do Conama (cuja revogação pela Resolução nº 500, no governo passado, foi julgada inconstitucional pelo STF na ADPF 747 e 749).

Os terrenos de marinha, quando ainda não ocupados por empreendimentos imobiliários ou econômicos, abrigam, em inúmeros casos espalhados pelo país, comunidades tradicionais, principalmente pescadores artesanais, cujos direitos territoriais são protegidos por tratado internacional do qual o Brasil é signatário (artigo 13 e ss. da Convenção 169/89 da Organização Internacional do Trabalho — OIT, promulgada pelo Decreto 5.051/04).  Isso não deixa de dialogar com a função ambiental de preservação e acesso à praia e ao mar.

A PEC, então, na prática, é um grande golpe nas funções que o instituto representa, facilitando o já existente movimento de privatização de praias, que não encontra muita resistência de prefeituras e governos estaduais, que passariam a titularizar essas áreas. Essa afirmação pode ser confirmada de forma objetiva por simples consulta às inúmeras ações civis públicas ajuizadas em face de municípios e estados por autorizarem e licenciarem condomínios, resorts e construções em terrenos de marinha, sem ouvir a SPU, ocupando faixas de areia, destruindo restingas e interrompendo o acesso de frequentadores e pescadores à praia e ao mar.

Por fim, o avanço da proposta parece até um escárnio com as atuais catástrofes ambientais do país.  Terrenos de marinha têm também função de segurança e de barreira ao avanço do nível do mar, reduzindo a vulnerabilidade da zona costeira a eventos climáticos extremos, podendo e devendo, nos termos expressos do artigo 5º, parágrafo único, do Decreto 2.398/1987, ser utilizados para a instalação de equipamentos públicos voltados a conter ou amenizar enchentes como a ocorrida no Rio Grande do Sul.

Autores

  • é procurador da República, coordenador do Grupo de Trabalho de Unidades de Conservação, integrante do Grupo de Trabalho Quilombos e Titular do Ofício Extraordinário para Crise Yanomami no MPF.  Doutorando em sociologia e direito e mestre em Direito Constitucional pela UFF (Universidade Federal Fluminense), especialista em Direito Constitucional pela Universidade de Pisa, especialista em Direito Público pela UnB (Universidade de Brasília).  Ex-professor da UFF e da PUC-SP.

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