Opinião

Habeas Corpus nº 812.310 RJ/STJ e a legítima defesa probatória

Autores

  • José Gutembergue de Sousa Rodrigues Júnior

    é advogado associado do escritório Gonçalves Santos Advogados mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba especialista em Direito Público membro do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Interpretação e Decisão Judicial (Nupid).

  • João Victor Nascimento Lima

    é estagiário do escritório Gonçalves Santos Advogados e discente no curso de Direito da Universidade Federal do Ceará.

19 de dezembro de 2023, 10h22

Recentemente, o ministro Ribeiro Dantas, do Superior Tribunal de Justiça, no bojo do Habeas Corpus nº 812.310/RJ, que trata sobre o notório caso do “anestesista” que abusava/estuprava mulheres durante o parto, entendeu que, não obstante alguns posicionamentos contrários à utilização da gravação clandestina produzida pelas vítimas de crime como meio de prova, há situações em que é forçoso se concluir pela sua licitude, considerando, justamente, a necessidade de defesa dos direitos fundamentais da vítima.

Defendemos ideia semelhante em artigo aqui na ConJur [1]. Inicialmente, sabe-se que a Constituição de 1988, seguindo a tendência do direito comparado, trouxe em seu artigo 5º, LVI, expressa vedação ao uso da prova obtida de forma ilícita nos processos judiciais, sendo, conforme Gilmar Mendes[2], uma das ideias básicas que integram o amplo conceito do devido processo legal, seguindo a tendência de outros países europeus, bem como da jurisprudência norte-americana.

Aqui, cabe-nos realizar uma breve digressão. Para fins didáticos, Guilherme Madeira[3] faz uma singela divisão entre os sistemas pré e pós-reforma de 2008. A doutrina majoritária, entre eles Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho e Antonio Scarance Fernandes[4], antes da reforma de 2008, baseava-se nas lições do renomado jurista italiano Pietro Nuvolone, o qual fazia clássica distinção entre as provas ilícitas e as provas ilegítimas, ambas espécies do gênero denominado provas ilegais.

Assim, prova ilícita seria aquela obtida quando ocorre infringência ao direito material, sendo importante frisar que tal direito material deve ser direito fundamental constitucionalmente protegido. Sua finalidade, dessa forma, é criar um sistema de atividade processual que respeite minimamente os direitos elencados na Constituição tidos como essenciais para a convivência em sociedade. Um exemplo de prova ilícita, nesse raciocínio, seria a escuta telefônica clandestina ou a confissão obtida mediante tortura.

A prova ilegítima, por sua vez, diz respeito ao direito processual, ou seja, conceitua-se como prova ilegítima qualquer elemento trazido ao processo que contrarie determinada norma processual, como seria, na esfera cível, por exemplo, a produção de prova depois de preclusa a oportunidade para sua produção, ou ainda, se for lido em plenário do júri documento que não tenha sido juntado nos autos com três dias de antecedência, violando, assim, o artigo 479, do Código de Processo Penal.

Não obstante, ao comparar a redação do artigo 157 do Código de Processo Penal com os ensinamentos de Pietro Nuvolone, percebemos que tal dispositivo não traz qual qualquer menção a qual violação seria apta a gerar a prova ilícita, ou seja, se é a violação ao dispositivo material, ao dispositivo do direito processual, ou a ambos.

Diante dessa situação, surgiram desde logo duas correntes. A primeira corrente entende que o conceito de prova ilícita e prova ilegítima havia sido superado, devendo ser abandonado a clássica distinção que se fazia entre as duas, sendo agora um só tipo de prova. Nesse sentido, Gustavo Badaró (2015, p. 408) passou a definir prova ilícita como “as provas obtidas, admitidas ou produzidas com violação das garantias constitucionais, sejam as que asseguram as liberdades públicas, sejam as que estabelecem garantias processuais” [5].

A segunda corrente entende que o artigo 157 do Código de Processo Penal ainda deve ser lido à luz dos ensinamentos de Pietro Nuvolone, ou seja, permanece a distinção entre prova ilícita e prova ilegítima.

Em conformidade com a Constituição, o Código de Processo Penal, no artigo 157, diz que “são inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”. Contudo, embora seja a regra a inutilização da prova ilícita e consequentemente da prova ilícita derivada, em consonância com a primeira parte do artigo 157, §1º, do Código de Processo Penal, excepcionalmente, a doutrina, a jurisprudência e a legislação entendem ser possível a utilização da prova ilícita no processo penal, sendo sempre necessária a comprovação desta situação excepcional no caso concreto.

Prova disso é o artigo 157, parágrafos 1º (segunda parte) e 2º, do Código de Processo Penal, que trata de três hipóteses em que é mitigada a inutilização da prova derivada da ilícita. São as conhecidas teorias do nexo causal atenuado, da descoberta inevitável e das fontes independentes, construídas pela Suprema Corte norte-americana, fazendo-se claro ressaltar desde já a grande contribuição da doutrina americana nesse tema.

No mesmo sentido do que fora exposto, podemos mencionar o artigo 10-A, da Lei nº 9.296/96, incluído pela Lei n. 13.964/2019, que previu a figura típica da captação ambiental sem autorização judicial, mas ressalvou, em seu §1º, os casos em que esta é realizada por um dos interlocutores, situação que pode ser equiparada a atuação de terceiro quando o agente reduzir totalmente a possibilidade de agir da vítima.

Assim, ao permitir que uma prova ilícita faça parte do processo, automaticamente, o juiz está dizendo que um valor, ou um direito, deve preponderar sobre outro. O magistrado, em cada caso, deve se ater ao princípio da proporcionalidade e razoabilidade para decidir qual valor, naquele caso em concreto, deve prevalecer.

Deste modo, dentre as diversas teorias que admitem excepcionalmente o uso da prova ilícita, temos a chamada prova ilícita pro reo, chamada pelo ministro de legítima defesa probatória. Aceita pela doutrina e jurisprudência, essa teoria, de uma forma geral, diz que uma prova ilícita pode ser aceita pelo ordenamento jurídico, quando for a única capaz de provar a inocência do réu.

No presente caso, entendeu o ministro que, na colisão de interesses, o uso das captações clandestinas se justifica sempre que o direito a ser protegido tiver valor superior à privacidade e à imagem do autor do crime, utilizando-se da legítima defesa probatória, a fim de se garantir a licitude da prova.

No caso em alude, os funcionários da equipe de enfermagem de um hospital suspeitaram do comportamento incomum apresentado pelo denunciado no centro cirúrgico e registraram, em vídeo, a ação criminosa, considerando a vulnerabilidade da vítima que estava sedada, sem qualquer possibilidade de reação e/ou conhecimento dos fatos. Ao sopesar os interesses envolvidos na captação ambiental, entendeu-se que os direitos fundamentais da parturiente se sobrepõem às eventuais garantias fundamentais do ofensor.

Sobre o tema, inclusive, alguns professores já levantam interessantes ponderações, como Guilherme Madeira e Thiago André Pierobom, quais sejam: para provar sua inocência, pode então uma pessoa ter “carta branca” para cometer qualquer crime? Existe algum limite material a essa produção?

Desde o início, entendemos que sim, e o julgado paradigma também caminha neste sentido. Para nós, esse limite seria o valor do bem jurídico que se busca defender. Seguindo esta linha de raciocínio, Guilherme Madeira entende que a causa excludente da ilicitude, qualquer que seja, não admite o sacrifício do bem de maior valor em detrimento do bem de menor valor, uma vez que isto fere diretamente o princípio da proporcionalidade.

Seguindo o mesmo entendimento, não se pode admitir que um réu obtenha uma prova mediante tortura. Da mesma forma, não podem ser aceitas a narcoanálise ou hipnose, por se tratar de claros métodos de prova que ferem diretamente à dignidade da pessoa humana. Assim, conforme muito bem demonstrado no mencionado julgado, deve-se sopesar os interesses envolvidos à luz do princípio da proporcionalidade em suas três dimensões: idoneidade para produzir prova da prática do crime (adequação); inexistência de outro meio menos gravoso de obtenção da prova (necessidade); e que os bens jurídicos sejam de maior relevância (proporcionalidade em sentido estrito).

Pontua-se que, conforme o entendimento de Bernd Schünemann[6], o processo penal tem por finalidade principal garantir uma assertividade na busca da verdade material, ou seja, da segura determinação do ilícito supostamente praticado, o que se faz, sobretudo, garantindo o exercício da ampla defesa e do contraditório ao acusado.

Com base nesse escólio, pode-se dizer que o interesse público sobre o procedimento consiste na busca pela apuração fidedigna dos fatos escrutinados, assim, corroborando com a ideia de ser adequada a admissão de prova ilícita defensiva, haja vista que, além de ser favorável ao interesse do imputado de manter incólume a sua liberdade, contribui para a contemplação do interesse social quanto ao processo penal.

Todavia, como bem dispõe o entendimento de Humberto Ávila, do qual concordamos, ao outorgar ao Estado o dever de assegurar os direitos fundamentais privados, a Carta Magna forma uma espécie de “conexão estrutural”’ entre interesses públicos e particulares, de modo que a proteção do interesse público se legitima na medida em que são consideradas essas garantias individuais[7].

Desse modo, ao passo que há o interesse em esclarecer a verdade dos fatos, subsiste o interesse social de tutelar os direitos fundamentais assegurados na Constituição, reforçando a necessidade de proporcionalidade para que tais provas sejam admitidas. Portanto, não seria razoável, tampouco proporcional, admitir prova ilícita produzida em desabono à integridade física de determinado indivíduo, por exemplo, mormente quando houver meio alternativo para tal fim, considerando que, tal como a liberdade ambulatorial, a vida representa um direito fundamental a ser tutelado pelo Estado.

Nessa senda, permitir ofensa ao direito fundamental à vida para garantir o direito à liberdade ambulatorial de outrem evidentemente significaria ir de encontro ao interesse público, sobretudo considerando o grau de relevância dos bens jurídicos em cotejo, de forma que o sacrifício daquele primeiro não legitima a proteção deste último.

Para mais, Ada Pellegrini elucida que quando a prova, aparentemente ilícita, for colhida pelo próprio acusado, tem-se a elisão da ilicitude em razão de causas legais, como a legítima defesa, que exclui a antijuridicidade [8].

Partindo desse sopesar, insta rememorar que, nos termos artigo 25 do Código Penal, um dos requisitos para a caracterização da legitima defesa é o uso moderado dos meios necessários para repelir injusta agressão, ao passo que, em caso de excesso, este deverá ser punido, eis que não há defesa legítima se esta for desnecessária [9].

Dessarte, quanto à hipótese de produção probatória defensiva, chega-se à conclusão de que o juízo quanto à proporcionalidade é indispensável para a admissibilidade da prova, sob risco de legitimar a prática de violências e ilicitudes descomedidas, o que claramente não se coaduna com o que se espera de um estado democrático de direito.

Por outro lado, ao aplicar o pensamento ora desenvolvido ao caso do Habeas Corpus nº 812.310 RJ/STJ, percebe-se que ministro Ribeiro Dantas acertadamente reconheceu a licitude da filmagem realizada para fundamentar a denunciar, pois, com fulcro no escólio de Ada Pellegrini sobre o tema, pode-se dizer que a gravação se ampara na ideia de legitima defesa em favor terceiro, levando em conta a proporcionalidade da referida produção probatória ante as repugnantes peculiaridades do caso, como a situação de sedação das vítimas e a hediondez do delito imputado.

Ademais, considerando a discrepância de relevância dos bens jurídicos colididos na oportunidade, é patente que a defesa da dignidade das vítimas deve prevalecer sobre o direito de imagem e privacidade do ofensor, de forma que a gravação em comento, de fato, merece ter seu caráter de licitude reconhecido, ainda que seja para fomentar a persecução penal contra o acusado.

 


 

[1] https://www.conjur.com.br/2021-fev-06/opiniao-limites-admissibilidade-prova-ilicita-pro-reo/

[2] MENDES, Gilmar Ferreira et al. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2016

[3] EZEM, Guilherme Madeira. Curso de Processo Penal. 2. ed. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2016.

[4] GRINOVER, Ada Pelegrini et al. As nulidades no processo penal. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

[5]  BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo Penal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

[6] Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito / Bernd Schünemann; coordenação Luís Greco. — São Paulo: Marcial Pons, 2013, p. 244.

[7] ÁVILA, Humberto. Reperensando o “Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular”. In: Interesses Públicos versus Interesses Privados: Desconstruindo o Princípio de Supremacia do Interesse Público. SARMENTO, Daniel (org.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 190.

[8] GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As nulidades no processo penal. 2006. p.153.

[9] ANDRADE, Costa, O princípio constitucional ”nullum crimen sine lege” e a analogia no campo das causas de justificação, RLJ 134, 2001, p. 136.

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  • é advogado associado do escritório Gonçalves Santos Advogados, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande, especialista em Direito Público, membro do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Interpretação e Decisão Judicial (Nupid).

  • é estagiário do escritório Gonçalves Santos Advogados e discente no curso de Direito da Universidade Federal do Ceará.

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