Opinião

O impacto das mudanças climáticas nas políticas de saúde

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17 de dezembro de 2023, 7h13

No dia 28 de novembro de 2018, o jornal britânico The Guardian estampou nas suas manchetes: “Mudança climática já é uma emergência de saúde”. O tom alarmista tinha como fundamento os resultados apresentados na publicação do relatório The Lancet Countdown on Health and Climate Change, produzido por 150 especialistas de 27 universidades e instituições de diversos países, incluindo a Organização Mundial de Saúde e o Banco Mundial, pela referendada revista de saúde The Lancet, no qual foram avaliados os impactos das mudanças climáticas sobre o aumento dos riscos sanitários e a emergência de doenças.

No documento, que tinha por objetivo instruir as decisões a serem tomadas por governos e organismos internacionais na Conferência das Partes nº 24 (COP-24), realizada na cidade polonesa de Katowice, era indicado que as rápidas mudanças observadas na temperatura do planeta teriam resultados preocupantes em todos os aspectos da vida humana e da biodiversidade, alterando o padrão de disseminação de doenças infecciosas, colocando em risco a segurança alimentar e o acesso à água.

Johnson Barros/FAB

Da mesma forma, o avanço de doenças com histórico de agravamento epidemiológico e de novas patologias emergentes, como a Sars (2003) e a Mers (2013), já apontavam, também, como consequência da crise climática, para a possibilidade de pandemias.

Em face destes resultados, o citado estudo da The Lancet, apresentava grandes preocupações com a incapacidade de uma resposta consistente dos sistemas de saúde nacionais para os problemas derivados de eventos ambientais extremos ou de fenômenos a estes associados, dificuldade que foi observada durante a Covid-19 e é exatamente neste ponto que ingressa o presente trabalho. O argumento central aqui apresentado é o de que as mudanças climáticas e a degradação ambiental resultam em danos sistêmicos à saúde global dos seres humanos, dos animais e do meio ambiente, problema este que não pode ser solucionado com a simples ampliação de infraestruturas sanitárias, o que condiciona a necessidade de repensar processos produtivos e de interação entre os seres humanos e a natureza. Isso ocorre porque mais do que uma determinação biológica e social, as enfermidades e os problemas de saúde pública também são fortemente influenciados pelos agravos ambientais.

No primeiro tópico será realizada uma breve discussão sobre as razões do avanço das mudanças climáticas e os seus efeitos sobre a vida no planeta e sobre o avanço de problemas 58 de saúde pública. No segundo momento, será discutida a relação entre as mudanças climáticas e o ciclo de disseminação de doenças, abordando os riscos decorrentes deste processo, introduzindo a discussão sobre a “determinação social e ambiental da saúde e da doença”. Por fim, será apresentada uma breve discussão sobre a capacidade de resposta da sociedade às mudanças climáticas e as outras questões associadas a ela, apresentando uma rápida discussão sobre as bases teóricas das estratégias de adaptação.

Mudanças climáticas e antropoceno
Ao longo da sua história geológica, a Terra já passou por diversos ciclos distintos de resfriamento e aquecimento da sua temperatura. As mudanças constantes de temperatura, ao mesmo tempo que assentaram as estruturas geofísicas do planeta, também provocaram ondas de extinção em massa de espécies e, paradoxalmente, de emergência de novas espécies. É exatamente por isso que, como bem destaca o sociológico britânico Anthony Giddens (2010), ainda existe uma discussão dentro da comunidade científica entre aqueles que entendem que o mundo passa por processo de mudanças climáticas derivadas da ação humana e outros, ao contrário, que consideram tais mudanças como o resultado de um novo ciclo geológico natural.

Em ambos os casos, em maior ou menor grau, independente da motivação, existem preocupações com relação aos resultados dessas mudanças na perpetuação da vida dos seres humanos e das demais espécies, o que indica a necessidade de políticas públicas voltadas ao seu enfrentamento.

A compreensão de que o processo de transformações climáticas é resultado da ação humana é predominante, motivo pelo qual tem motivado inúmeras negociações pelos países e organismos internacionais para reduzir as emissões atmosféricas. Quanto aos céticos, mesmo que em menor número, acabam influenciando o crescimento de um terceiro grupo, organizando fora do mundo científico, que sustenta teorias conspiratórias de índole dogmática, religiosa ou especulativa, afirmando que não existem mudanças climáticas e que estas seriam um mecanismo de manipulação política para conter o avanço da atividade econômica capitalista. Esse grupo, extremamente inconsistente em relação aos seus argumentos, mas com força crescente poder em torno da nova extrema direita que se globaliza, forma a vertente dos “negacionistas do clima”, que dada a sua crescente inserção no mundo político, acaba prejudicando a implementação das medidas de redução das emissões e de adaptação.

Mas no que consistem as mudanças climáticas? De acordo com Manuel Arias Maldonado, este é um conceito multifacetado, que conjuga uma série de fatores que provocam uma profunda transformação na relação entre os seres humanos e a natureza. Esta afirmação tem procedência, na medida em que apesar de serem tratados muitas vezes como sinônimos, a expressão “mudanças climáticas” funciona muito mais como um guarda-chuva que abriga uma série de processos atmosféricos, biológicos e sociais que interferem no desenvolvimento da vida, como o efeito estufa, o aquecimento da temperatura na biosfera, a acidificação dos mares e a perda de biodiversidade.

Quando se discute o efeito estufa nas redes de comunicação, por exemplo, trata-se como se este fosse algo novo, ou seja, as próprias mudanças do clima, quando na verdade, como bem destaca Giddens (2010, p. 37), este é um fenômeno natural próprio dos sistemas atmosféricos, fundamental para a própria sobrevivência dos atuais habitantes do planeta.

No entanto, embora exista um processo natural de aquecimento e resfriamento da temperatura terrestre, as evidências produzidas por diversas áreas do conhecimento científico, expressas nos relatórios de instituições como o Painel Intergovernamental Sobre Mudanças Climáticas – IPCC (2013) e a Organização Meteorológica Mundial (OMM), ligada às Nações Unidas, indicam que, pelo menos desde a Revolução Industrial, o mundo tem enfrentado uma elevação de mais de 30% na concentração de carbono na atmosfera e, em consequência, um acelerado aumento da temperatura global.

Segundo José Antônio Marengo e Wagner Rodrigues Soares (2003, p. 210), a concentração de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera sofreu uma elevação de 1760 até 1960 de 40 partes por milhão (ppm), saindo de 277 ppm para 317 ppm. Ocorre que o aumento da atividade industrial, do consumo de combustíveis fósseis, do desflorestamento, do aumento das fronteiras agrícolas e agropecuárias com uso intensivo de agroquímicos, além do descarte de resíduos sólidos com base de carbono, nos anos subsequentes, resultaram numa elevação ainda mais drástica nas emissões de CO2 que saltaram para 371 ppm no Relatório do IPCC de 2001, ou seja, num período pouco superior a 40 anos.

Estima-se que este índice chegou a 409 ppm em 2013 (Artaxo, 2020), indicador que deve ser somado ao crescimento agudo de outros gases-estufa também com elevação de concentração, como metano (CH4), óxido nitroso (N2H) e ozônio (O3), todos com efeitos diretos ou indiretos sobre o clima e a qualidade da vida e da saúde de humanos e outras espécies.

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Conforme destaca Paulo Artaxo (2020, p. 55), professor da Universidade de São Paulo, “ao longo dos últimos 150 anos, nossa sociedade fez avanços impressionantes em muitos indicadores (e não tão bons em outros)”, o que inclui “alteração da composição da atmosfera”, razão pela qual “o ser humano passou a ser considerado como responsável pela criação de uma nova era geológica, o Antropoceno”.

Segundo Maldonado (2016, p. 795-797), o conceito de Antropoceno, era geológica criada pela interferência antropogênica nas condições climáticas do planeta, pode ser considerado como uma forma de colonização da natureza pelos seres humanos e reflete o impacto quantitativo da ação humana sobre o meio ambiente e os sistemas biofísicos globais, que provocam alterações qualitativas nas suas relações com as demais espécies, com o meio ambiente e dentro da própria sociedade. Esta influência não é necessariamente visível ou “ferozmente destrutiva” (Maldonado, 2016, p. 798), mas estão presentes, tendo em vista que todas as partes do planeta são influenciadas de alguma maneira pela ação humana.

Da mesma forma, embora seja evidente uma relação de causalidade entre uma economia baseada no uso de fontes fósseis de energia e as alterações do clima, também é relevante considerar que há diferentes níveis de intervenção nestas mudanças, cada uma mediada pelas tradições culturais presentes nos países e nas comunidades, com diferentes impactos e grau de responsabilidade. Isso não significa, contudo, como será demonstrado adiante, que os efeitos negativos das mudanças do clima atinjam a população de forma equilibrada ou com adequação da correspondência ao dano causado. Ao contrário, as crises climáticas extremas, embora dispersas e constantes em todo o globo, são muito mais rigorosas nas regiões onde as populações possuem menor acesso aos benefícios desta economia fóssil e mais dependentes dos processos naturais para a sua subsistência.

Ademais, como adverte Paulo Artaxo (2020, p. 53), diferente do cenário de enfrentamento da pandemia de Covid-19, não existe lockdown para combater os efeitos das alterações no clima.

Em termos de escala, as mudanças climáticas possuem dimensões globais, ultrapassam a fronteira das respostas isoladas dentro de um único país. Isso não impede a adoção de medidas localizadas, estas são necessárias para diminuir a pressão sobre a biosfera, mas ao mesmo tempo exigem um aparato de resposta internacional, uma articulação entre os países, organismos internacionais e agências globais públicas de fomento.

Contudo, o negacionismo, a desigualdade na distribuição econômica, os interesses dos grandes oligopólios de energia, os imperativos de produtividade do agronegócio, o crescimento do conservadorismo político expresso na nova direita e a ideologia neoliberal, são grandes barreiras para avanços efetivos.

Um ponto relevante para compreender a capilaridade dos efeitos negativos destas modificações na biosfera é analisar os impactos das transformações do clima no desenvolvimento de enfermidades e nas políticas de saúde, conforme será realçado no próximo tópico.

As relações entre clima, saúde e doença
Quando se discute o efeito das mudanças do clima sobre a saúde, a primeira imagem que vem à mente são ondas de calor severas, regiões áridas e secas, ou o derretimento das camadas polares do planeta e as grandes enchentes. De fato, os relatórios produzidos por agências internacionais como o IPCC e a Agência Climática das Nações Unidas indicam uma elevação de cerca de 46% no número de eventos climáticos extremos entre os anos de 2012 e 2013, incluindo, além das já citadas ondas de calor, inundações, incêndios florestais, tempestades tropicais e nevascas (WHO, 2018, p. 20) e, acompanhando estes eventos, são observados casos crescentes de doenças respiratórias, infecciosas de veiculação hídrica, dentre outras. Entretanto, o problema é bem mais complexo.

A OM classifica os efeitos das mudanças climáticas extremas em duas tipologias distintas, os “impactos diretos” e os “impactos indiretos” (WHO, 2018, p. 20). Dentro do que se classifica como impactos diretos, incluem-se os efeitos fisiológicos decorrentes da exposição do corpo humano a mudanças bruscas e agressivas de temperatura, o aumento no número de doenças não-transmissíveis degenerativas (como asma e hipertensão), alergias derivadas da modificação dos ciclos de umidade ou de circulação do pólen, doenças cardiovasculares e morte ou lesões devido a eventos climáticos extremos. Já os impactos indiretos são aqueles associados às mudanças das estruturas ecossistêmicas e ecológicas, como insegurança alimentar e hídrica, doenças infecciosas sensíveis ao clima (como patologias causadas por vetores, como dengue, zika, chikungunya e febre amarela), além das dificuldades de acesso aos sistemas de saúde, do deslocamento populacional forçado dos refugiados ambientais e, inclusive, doenças mentais.

Analisando efeitos sanitários no clima no desenvolvimento de iniquidades sociais e na saúde do Reino Unido, Jouni Paavola (2017) afirma que estes determinantes ambientais afetam de forma distinta cada indivíduo ou grupo de indivíduos. Segundo a pesquisadora britânica, existem fatores de risco que aumentam o nível de vulnerabilidade das populações, como velhice, privação social e condições médicas pré-existentes, tornando os impactos das mudanças climáticas ainda mais graves para a saúde destes grupos. Assim, o cenário das doenças decorrentes da crise climática não difere muito do observado durante a Covid-19, na qual os resultados foram mais graves àqueles que também se apresentavam mais
vulnerabilizados pela ordem social existente. Pois, “a natureza dos resultados de saúde que um indivíduo ou um grupo de indivíduos experimenta é determinado pela forma como sua exposição, sensibilidade e capacidade adaptativa constituem a sua vulnerabilidade: quando alinhados, a vulnerabilidade é agravada” (Paavola, 2017, p. 61, tradução livre).

Ocorre que existe um gravame de escala entre uma pandemia e os efeitos ambientais e sanitários das mudanças do clima, pois a primeira dura apenas dentro do seu tempo de disseminação e tratamento, já os efeitos climáticos podem durar séculos e, quando associados aos dados a biodiversidade, para sempre (Artaxo, 2020, p. 63).

Outro aspecto importante que pode ser apreendido do retrato de Paavola sobre as relações entre as mudanças climáticas e a emergência de doenças e enfermidades, é a sua aproximação ao clássico estudo de Asa Cristina Laurell (1982) sobre a influência dos processos sociais na constituição da saúde e da doença. Na época, a pesquisadora mexicana realizou um comparativo sobre a dominância de patologias em diferentes países e em épocas distintas, chegando à conclusão de que a produção das enfermidades e do próprio conceito de saúde somente podem ser compreendidos dentro de uma perspectiva de análise que ultrapasse a mera constituição biológica dos pacientes, portanto de uma lente analítica coletiva. No seu entendimento, as enfermidades possuem um duplo caráter, ao mesmo tempo biológico e social.

Assim, as doenças se diferenciam ao longo do tempo em consideração aos aspectos históricos, territoriais e econômicos, produzindo diferentes tipos de patologias em cada contexto, razão pela qual ela desenvolve o conceito determinação social da doença e da saúde (Laurell, 1982, p. 8).

Entretanto, ao aproximar os estudos de Laurell com os resultados apresentados por Paavola, em relação às mudanças climáticas, a determinação da doença ganha um novo relevo estruturante que vai além do biológico (corpo) e do social propriamente dito, incluindo elementos de que são adquiridos pelas transformações da própria estrutura ambiental. Mesmo que as alterações do clima sejam resultado da intervenção humana, as evidências apresentadas por Paavola indicam que a doença possui uma terceira determinante que não é social, nem biológica, mas ambiental em sentido lato, razão pela qual é possível aferir uma determinação social e ambiental da doença.

Um outro exemplo que indica esta tripla relação determinante sobre saúde e doença são as evidências que indicam a influência das mudanças climáticas no crescimento dos casos de dengue no Brasil desde a década de 1990, e a sua “marcha para o sul” (região que antes havia a predominância de temperaturas médias mais frias).

No início da década de 1990 não havia casos de dengue notificados na região Sul do país, o que somente foi ocorrer em 1995, mesmo assim com índices relativamente baixos em relação aos indicadores das outras regiões. Em 2007 observa-se uma virada estatística, com uma elevação acima da média no número de notificações. Embora tenha havido uma queda entre 2008 (7,45/100 mil) e 2009 (5,79/100 mil), o que indica que a elevação deve ser associada a um ciclo epidemiológico, a partir de 2010 a região tem apresentado uma média estável acima de 100 casos por 100 mil, acompanhando o crescimento dos indicadores no conjunto do país, mesmo com uma situação relativamente estável no conjunto do país. Também é possível notar uma constância na elevação nas taxas de infecção nos dados gerais do país e das outras regiões, especialmente no Centro-Oeste.

É evidente que existem diversos fatores que podem ter influenciado neste crescimento da dengue, notadamente ambientais, como o avanço da fronteira agrícola para áreas que antes eram florestadas, a urbanização e aumento da pressão por saneamento nas cidades, o desmatamento, a destruição de habitats e a consequente morte de predadores do mosquito culex etc. Os surtos com índices extremamente elevados no Centro-Oeste, região com o maior volume de desmatamento no cerrado para a produção de soja e de carne e com os maiores índices de crescimento populacional, também demonstram o peso de outros fatores ambientais nestes índices. Contudo, considerando que o clima ameno abaixo do Trópico de Capricórnio era uma barreira natural para a proliferação de mosquitos e de uma doença tipicamente tropical, é inegável que as mudanças no clima e a elevação geral das temperaturas, com a modificação dos ciclos sazonais de chuvas e de umidade, foram fatores determinantes no impulso da doença.

Observar que a dengue saltou de uma doença ausente nos indicadores epidemiológicos do Sul do país no início da década de 1990, para uma patologia frequente em cerca de 20 anos.

Além do mais, o quadro de crescimento da dengue no Brasil não é um fenômeno isolado no contexto mundial. Como advertem Barcelos, Monteiro, Corvalán, Gurgel, Carvalho, Artaxo, Hacon e Ragoni (2009. p. 294-295), em estudo multidisciplinar sobre a relação entre o clima e a prevalência de doenças, o “aquecimento global do planeta tem gerado ainda uma preocupação sobre a possível expansão da área atual de incidência de algumas doenças transmitidas por insetos”, “compondo um importante quadro epidemiológico e de morbidade”.

A dengue se apresenta como principal doença neste mapeamento, especialmente nos países tropicais e subtropicais, da mesma forma que malária, na África e algumas regiões da Ásia e das Américas, assim como a doença de Lyme, hospedada pelos carrapatos, a febre do Nilo e outras arboviroses.

Embora esta associação entre as mudanças no clima e a expansão de doenças não chegue a ser uma novidade em termos de história mundial, pois, como bem adverte Haraway (2016, p. 139), “arranjos de espécies orgânicas e de atores abióticos fazem história, tanto evolucionária como de outros tipos”, o agravo das doenças derivadas de problemas associados à degradação ambiental pela ação antropogênica, como mudanças no uso do solo, poluição destruição de habitats e transformações no clima, impõem um cenário preocupante para os próximos anos, o que resulta no imperativo de pensar em medidas de resiliência climática e adaptação ambiental. Somam-se a estes problemas, a perda sistemática de qualidade dos alimentos e a elevação dos seus custos de produção, o que coloca o problema das mudanças climáticas dentro de uma realidade bem mais próxima da vida cotidiana de cidadãos e cidadãs
do mundo.

Resiliência e adaptação
Ao discutir as políticas públicas voltadas ao problema das mudanças climáticas, Anthony Giddens afirma existir um paradoxo no qual ao mesmo tempo que os efeitos das transformações no clima não são imediatamente palpáveis para os cidadãos contemporâneos, na medida em que o agravamento deve se expressar ao longo do tempo, “esperar que eles se tornem visíveis e agudos para só então tomarmos medidas sérias será, por definição, tarde demais” (Giddens, 2010, p. 20).

O “paradoxo de Giddens” se funda em uma das características da sociedade de risco apresentada por Ulrich Beck (2010), que é a perda do controle imediato das suas consequências pelos seres humanos. Para Beck, se antes o risco estava ligado a uma relação de proximidade e imediata entre o elemento causador da ameaça e a vítima em potencial, com o avanço da modernidade, da ciência moderna e das modificações realizadas pelos seres humanos nos processos naturais, o conceito de risco tornou-se intangível, disseminado em diversas esferas distintas do cotidiano, não podendo ser restringidos em termo de escalas de interação ou esferas sociais.

Esta interferência humana, contudo, como já destacado anteriormente, não ocorreu uniformemente, assim como nem todas as sociedades contribuíram em igualdade de condições para as modificações do clima. Esta é uma consequência antropogênica produzida pela civilização industrial (Giddens, 2010, p. 276). Para exemplificar esta questão e melhor pensar em estratégias para enfrentar a crise climática, Manuel Arias Maldonado (2017) indica pelo menos três formas de interpretar a relação dos seres humanos com a natureza para determinar a emergência do Antropoceno que podem ser perfeitamente associadas aos problemas derivados das mudanças climáticas.

A primeira destas formas se sustenta na percepção da espécie e na “singularidade do ser humano diante da natureza” (Maldonado, 2017, p. 799-800). Esta noção toma como ponto de partida as teses do darwinismo e do evolucionismo e sustenta o dualismo homem/natureza, como se os seres humanos estivessem fora da segunda. Nesta perspectiva, a agência humana aparece como fonte causadora e de resolução do problema, dada a sua capacidade natural de produção de nichos. Assim, da mesma forma que os seres humanos promovem danos ao meio ambiente, eles podem buscar a sua solução.

A segunda forma considera a percepção da espécie e situa-se no debate entre o “universalismo versus o particularismo”. Esta hipótese sustenta que está em curso um processo de homogeneização das relações humanas e entre sociedade e natureza, no sentido de que as variações locais são menos relevantes que “o processo global de hibridação socionatural” (Maldonado, 2017, p. 801). Desta forma, embora estas interações sejam derivadas de distintas esferas, originalmente, se conformam ao contexto cultural, e em virtude da homogeneização acabam resultando em um processo uniforme de degradação.

Embora seja possível associar Antropoceno e Mudanças Climáticas ou até tratá-los como sinônimos, aqui serão considerados como conceitos distintos. O Antropoceno é um conceito filosófico, que sustenta a emergência de uma nova era geológica por influência humana. As mudanças climáticas, por conseguinte, são as consequências desta transformação.

O particularismo, como se observa no processo global das mudanças climáticas, acaba sendo incorporado pelo universalismo. A terceira perspectiva, também situada no campo da percepção da espécie, chamada de “grande hibridação”, considera que as intervenções sociais, conscientes ou não, são diferentes conforme o contexto sociocultural e se modificam em consonância com as respostas da própria natureza. A natureza, assim, emerge como uma entidade dinâmica, ganha uma agência metafórica, realizando trocas autonomamente e exercendo influências mútuas com os seres humanos em cada configuração específica (Maldonado, 2017, p. 804).

Como é possível notar, as três concepções possuem virtudes e limitações próprias, mas não são necessariamente excludentes. Embora a primeira seja talvez a mais limitada, não existe como enfrentar um rápido processo de degradação climático-ambiental sem a participação dos seres humanos, especialmente através de uma mudança das formas de interação com a natureza.

Ocorre que a simples intervenção mitigatória dos seres humanos no ambiente pode resultar em danos não intencionais que agravam a situação. Um exemplo é a produção de biocombustíveis para substituir as fontes fósseis. Ao mesmo tempo em que os referidos produtos podem reduzir emissões atmosféricas, especialmente de dióxido de carbono, a permanência de um regime de produção agroindustrial de monoculturas em escalas acaba redundando na concorrência territorial com a produção de alimentos, aumentando o seu custo e reduzindo o seu espaço.

Logo, o apelo ao uso de tecnologia para o aumento da produtividade, muitas vezes escorado em insumos químicos, acaba também resultando na produção de outros gases estufa.

Da mesma forma, a globalização do modo de produção capitalista de fato tem resultado na destruição de sistemas de produção tradicionais e naquilo que Boaventura de Sousa Santos (2006) chama de epistemicídio, ou seja, na perda de saberes e de conhecimento. Desta forma, se os impactos globais das transformações do clima exigem uma articulação internacional entre estados e organismos multilaterais, também são necessárias ações locais para preservar práticas ancestrais de produção menos danosas ao ambiente, anteriores à Revolução Industrial. Logo, é necessário combinar nas estratégias de resiliência tanto medidas universalistas, quanto particularistas.

Quanto à terceira estrutura de relações, que está presente no diagnóstico de autores que avançam além das teorias de modernização ecológica, é necessário pensar as políticas de adaptação às mudanças climáticas reconhecendo que a natureza não é uma entidade estática como se apresentava no marco filosófico da modernidade. Aliás, o que se convencionou chamar de natureza é um complexo vivo, biodiverso e multifacetado de organismos vivos, estruturas físicas e geológicas que possuem historicidade própria, incluindo a vida humana. Assim, toda ação humana resulta em respostas destes organismos, motivo pelo qual a simples inovação tecnológica não necessariamente representa uma medida adequada de adaptação. Daí um retorno ao parágrafo anterior, no que se refere a relevância de conservar, também, o conhecimento tradicional, ancestral, não o excluir dos marcos formais da ciência, mas compreendê-lo e dar liberdade ao seu desenvolvimento.

A Covid-19 deixou claro que de nada adianta ampliar estruturas físicas e tecnológicas de enfrentamento de crises, sem a adoção de medidas adequadas de adaptação. Assim, em regiões com baixa estrutura hospitalar, a organização coletiva da comunidade e o distanciamento social salvaram muito mais vidas do que em locais no qual a arrogância da crença exclusiva do respeito à tecnologia predominou e este é um aprendizado relevante para um futuro pautado por graves mudanças nas estruturas ambientais.

Considerações finais
Em artigo publicado no jornal francês Le Monde, Bruno Latour (2020) afirma que o mundo enfrentou com a Covid-19 uma situação na qual era possível considerar a intervenção do vírus como um ensaio geral para a próxima crise, um preparo geral para os efeitos das mudanças climáticas. No seu entendimento, “a pandemia não é um fenômeno mais “natural” do que as fomes do passado ou a atual crise climática. Já faz muito tempo que a sociedade não se enquadra mais nos estreitos limites do social” (Latour, 2020, tradução livre).

As preocupações de Latour, como demonstrado acima, possuem procedência, na medida em que o caminhar atual da sociedade, baseado na destruição das estruturas biofísicas da natureza, indica um risco sem precedentes de danos em todas as esferas de interação. Neste trabalho foi apresentado um breve relato do impacto das mudanças climáticas sobre a saúde e a influência deste fenômeno induzido pela ação antrópica sobre a saúde e a emergência e disseminação de doenças. Nenhum registro da literatura científica indica uma relação direta da Covid-19 com as alterações do clima, no entanto, a sua derivação da degradação ambiental, com a mudança do uso do solo, destruição de florestas e migração de espécies hospedeiras para o ambiente social é evidente. No passado, a mesma natureza que era temida pelos homens pré-modernos, também servia de barreira para doenças. Hoje, no entanto, não existem mais fronteiras entre o habitat humano e o das demais espécies, a interdependência é evidente e a elevação de riscos e incertezas uma realidade.

Desta forma, o presente artigo também busca servir de alerta para a necessidade de os seres humanos repensarem a sua forma de agir com o ambiente. A produção de uma era geológica humana, o Antropoceno, não é nenhum motivo de orgulho para a espécie, ao contrário. Na verdade, se antes havia um controle mínimo diante das incertezas, com o avanço da degradação do ambiente esta perspectiva desapareceu. Talvez seja a hora de diminuir a velocidade e de recompor as bases éticas das relações. A natureza não é uma figura estática como se apresenta em muitas obras da filosofia moderna, nem uma criação humana ou divina, é um conjunto de processos físicos e biológicos em constante adaptação. Ou o ser humano busca compreender esta relação e caminha em conjunto, ou no futuro o sofrimento poderá ser ainda maior.

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