Opinião

Extorsão cibernética, estupro virtual e sextorsão: a chantagem na era digital

Autor

  • Mauro da Fonseca Ellovitch

    é promotor de Justiça coordenador do Grupo de Atuação Especial de Combate aos Crimes Cibernéticos (Gaeciber) do Ministério Público do Estado de Minas Gerais graduado em Direito pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e especialista em Direito Digital pelo IDP.

16 de dezembro de 2023, 6h02

Ser coagido a fazer algo que não quer e não tem o dever de fazer é uma gravíssima violação à dignidade da pessoa humana. A liberdade individual é um dos maiores valores humanos, devendo ser mitigada apenas pelas normas legais e sociais que nos permitem viver em coletividade. Até mesmo quem acredita em mitigações por razões religiosas reconhece o “livre arbítrio como uma dádiva divina e um dos elementos definidores da humanidade”, seja para o catolicismo (COSTA, 2011), seja para o islamismo (AL-TAYYAR, 2017), seja para o judaísmo (TAUBER, 2013).

A chantagem para obter proveitos econômicos e/ou sexuais não é prática nova. Muitas vezes a grave ameaça para que a vítima faça ou deixe de fazer algo contra sua vontade não é exercida com o uso direto de um revólver, de uma faca ou sequer da força física. Basta que o criminoso possua uma informação muito relevante que seu alvo precise manter sigilosa e se disponha a usá-la como meio de coação, minando o livre arbítrio do ofendido.

Contudo, a internet e a nova realidade digital potencializaram tais práticas, facilitando sua disseminação, dificultando sua apuração e fornecendo novos meios para alavancar as ameaças.

123RF

Tradicionalmente, as chantagens eram exercidas pessoalmente ou, no máximo, por cartas e telefonemas. O chantagista precisava de alguma forma de contato direto com a vítima. Para coagir alguém a fazer algo que não queria, com finalidade econômica, como narra a conduta típica do artigo 158 do Código Penal, o criminoso precisava conhecer a vítima, ter uma informação confidencial e valiosa a respeito dela (geralmente comprovada por meio de fotos, documentos ou gravações de áudio ou vídeo) e encontrar um meio de se comunicar com ela para poder apresentar a chantagem e o modo de pagamento da vantagem ilícita. Não raro era exigido que o ofendido fizesse o pagamento em dinheiro em um local determinado, para evitar a identificação das contas dos extorsionistas. Eram condições fáticas mais “pessoais”, por assim dizer, que restringiam o alcance dos delitos e facilitavam a identificação do chantagista.

Essa “pessoalidade” era ainda mais presente no uso da chantagem para constranger alguém, mediante grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso, caracterizando o estupro na forma do artigo 213 do Código Penal. O contato do criminoso com a pessoa chantageada não se limitava à apresentação da ameaça constrangedora, mas também ocorria na própria consumação do estupro. O estuprador precisava estar fisicamente presente com a vítima para ter com ela a conjunção carnal ou praticar o ato libidinoso.

Na era digital, toda a preparação, execução e consumação desses crimes pode ser feita remotamente, pela internet.

A era da informação aumentou o alcance das extorsões. O chantagista não precisa mais conhecer antecipadamente nada sobre seu alvo para chantageá-lo. Basta usar malwares, engenharia social e/ou avatares. Na primeira hipótese, com técnicas de invasão por meio de programas maliciosos e ataques a vulnerabilidades de dispositivos informáticos, os cibercriminosos conseguem acesso a bancos de dados, fotos, vídeos e conversas sensíveis de pessoas selecionadas remotamente — aleatoriamente ou não — e usam tais dados para futuros golpes ou extorsões. Alessandro Gonçalves Barreto, Ricardo Magno Teixeira Fonseca e Vanessa Lee Araújo destacam que esse modo não consensual de obtenção de dados da vítima pode ocorrer por meio de invasão de dispositivo informático, de furto de aparelho telefônico ou de qualquer outro artefato tecnológico empregado para essa finalidade (BARRETO; FONSECA & ARAÚJO, 2021, p. 76).

Na maioria das vezes, os agentes optam pela engenharia social para obter tais informações, sem precisar sequer ter um conhecimento aprofundado de tecnologia. Vinícius Vieira define engenharia social como “atividade que visa a obter acesso a informações importantes ou confidenciais em organizações ou sistemas, enganando ou tirando proveito da confiança das pessoas (VIEIRA, 2022, p. 29). Os extorsionistas induzem pessoas desavisadas a erro com a criação de contas falsas em redes sociais, se fazendo passar por familiares, colegas de trabalho ou mesmo por pessoas sexualmente atrativas, para ganhar a confiança das vítimas e as induzirem a fornecer acesso a informações sensíveis ou a adotarem comportamentos que possam ser usados em seu desfavor. Não é preciso contato direto ou sequer saber previamente algo do chantageado que já não esteja exposto em fontes abertas. A própria vítima irá fornecer tudo o mais que os criminosos precisam.

Outro fator a ser levado em conta na chantagem cibernética é a desnecessidade de proximidade ou de meios facilmente rastreáveis para que a extorsão chegue a seu alvo. Na era digital, a chantagem é enviada por meio de contas de aplicativos de mensageria ou de e-mails, criados facilmente com dados cadastrais falsos. Esse novo dificultador para que a vítima e os órgãos de investigação identifiquem os autores dos crimes funciona como um claro fator de estímulo para os delinquentes. Segundo Grégore Moura, referindo-se à equação custo/benefício por parte dos cibercriminosos:

“a desterritorialidade, o anonimato, a mínima chance de cair nas malhas do controle formal, a falta de aparelhamento da polícia e os impedimentos tecnológicos aliados aos altíssimos lucros obtidos promove um crescimento exponencial deste tipo de criminalidade, fazendo valer o risco por parte do criminoso.”  (MOURA, 2021, p. 123)

A consumação da obtenção do proveito econômico ilícito nesse novo cenário também pode acontecer de modo a dificultar ainda mais a investigação, com o uso de criptomoedas ou de transferências digitais (especialmente por PIX) para contas criadas em nome de “laranjas” em bancos digitais. Não é mais necessário um local físico para que o criminoso obtenha o produto do crime sem precisar ter seu nome exposto como beneficiário.

Quando, ao invés de visar o auferimento de vantagem econômica, a grave ameaça é voltada à obtenção da prática de atos libidinosos através da internet; temos não a extorsão, mas sim o chamado “estupro virtual”. Utilizando-se dos supramencionados artifícios de malwares, engenharia social e/ou avatares, o chantagista consegue obter dados pessoais tão valiosos a ponto de conseguir coagir a vítima à humilhação de praticar atos de natureza sexual em meio cibernético. Apesar da semelhança com a extorsão no modus operandi, no “estupro virtual” o agente visa a satisfação da concupiscência própria ou de terceiros e a objetividade jurídica é a liberdade/dignidade sexual da vítima.

Mesmo a consumação do estupro em meio cibernético agora independe do encontro presencial entre o estuprador e o violado, podendo ser realizado o ato libidinoso completamente on-line. As vítimas são constrangidas a praticarem atos de natureza sexual, como se masturbarem, em frente a webcams e até mesmo a praticarem atos de sadomasoquismo transmitidos pela internet para a satisfação da libido do chantagista. Quanto mais o alvo cede à grave ameaça, mais o predador sexual obtém material para alavancar as chantagens e aumentar a gravidade do que passa a exigir da vítima.

Conforme explica Rogério Greco, para caracterizar o “estupro virtual”, não há necessidade de contato físico entre o agente e a vítima, “que poderá estar a milhares de quilômetros de distância do seu agressor” (GRECO, 2023, p.2033). Há evidente tendência jurisprudencial a respaldar esse entendimento da caracterização do “estupro virtual” sem contato físico direto, como no caso do brilhante voto do Ministro Rogério Schietti no HC 478.310 PA2018/0297641-8-PA:

HABEAS CORPUS. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. QUALQUER ATO DE LIBIDINAGEM. CONTATO FÍSICO DIRETO. PRESCINDIBILIDADE. CONTEMPLAÇÃO LASCIVA POR MEIO VIRTUAL. SUFICIÊNCIA. ORDEM DENEGADA.

  1. É pacífica a compreensão, portanto, de que o estupro de vulnerável se consuma com a prática de qualquer ato de libidinagem ofensivo à dignidade sexual da vítima, conforme já consolidado por esta Corte Nacional.
  2. Doutrina e jurisprudência sustentam a prescindibilidade do contato físico direto do réu com a vítima, a fim de priorizar o nexo causal entre o ato praticado pelo acusado, destinado à satisfação da sua lascívia, e o efetivo dano à dignidade sexual sofrido pela ofendida.
  3. No caso, ficou devidamente comprovado que o paciente agiu mediante nítido poder de controle psicológico sobre as outras duas agentes, dado o vínculo afetivo entre eles estabelecido. Assim, as incitou à prática dos atos de estupro contra as infantes (uma de 3 meses de idade e outra de 2 anos e 11 meses de idade), com o envio das respectivas imagens via aplicativo virtual, as quais permitiram a referida contemplação lasciva e a consequente adequação da conduta ao tipo do art. 217-A do Código Penal.
  4. Ordem denegada.

(STJ – HC 478.310 PA2018/0297641-8-PA – rel. Min. Rogério Schietti Cruz. DJe 18/02/2021)

Nesse contexto, a expressão “sextorsão” passou a ter uma incidência maior no meio jurídico brasileiro. Podemos conceituar “sextorsão” como a utilização de informações, fotos e vídeos de teor sexual para constranger a vítima a fazer algo mediante a ameaça de divulgação desse conteúdo. Pode ser cometido tanto por pessoas que mantém ou mantiveram relacionamento com a vítima; quanto por criminosos que utilizam perfis falsos em redes sociais e engenharia social para ludibriarem seus alvos e obterem o que precisam através do “relacionamento virtual” que desenvolvem cuidadosamente.

Há divergência na doutrina se o termo “sextorsão” se aplica somente à chantagem para a obtenção de vantagens sexuais (CASTRO; SYDOW, 2015) ou se pode ser associado à prática do constrangimento ilegal, da extorsão ou do estupro, dependendo do constrangimento exigido pelo criminoso (CUNHA, 2017). A segunda corrente parece mais adequada, não havendo razão para excluir do conceito a utilização de conteúdo sexual para a grave ameaça prevista nos demais tipos penais. De qualquer maneira, trata-se de prática delituosa grotesca, potencializada em meio cibernético e que precisa ser rechaçada por meio de severas sanções penais.

Como destacam Celso Antônio Pacheco Fiorillo e Christiany Pegorari Conte, o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana “impõe a defesa da integridade física e espiritual do homem como dimensão inalienável da sua individualidade autonomamente responsável” (FIORILLO; CONTE, p. 69). A explosão de ocorrências de extorsão cibernética, do “estupro virtual” e da “sextorsão”, violando a dignidade de milhares de vítimas, demanda órgãos de investigação e persecução penal cada vez mais capacitados e estruturados para garantirem a identificação, localização e efetiva responsabilização desses chantagistas virtuais. Também evidencia a necessidade urgente de educação digital para que as pessoas se previnam e minimizem o risco de se tornarem vítimas desses graves delitos.

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Referências
AL-TAYYAR, Sheikh Abdullah BinMuhammad. Os limites do livre arbítrio humano. The religion of Islam, 25 set. 2017. Disponível em: <https://www.islamreligion.com/pt/articles/10948/os-limites-do-livre-arbitrio-humano/>. Acesso em: 01 nov. 2023.

BARRETO, Alessandro Gonçalves; FONSECA, Ricardo Magno Teixeira & ARAÚJO, Vanessa Lee. Vingança Digital: Compartilhamento Não Autorizado de Conteúdo Íntimo na Internet, Procedimentos de Exclusão e Investigação Policial. 2ª edição. São Paulo: Editora Digitop, 2021.

CASTRO, Ana Lara Camargo de; SYDOW, Spencer Toth. Sextorsão. São Paulo: Revista dos Tribunais [recurso eletrônico], n. 959, set. 2015. Disponível aqui.

COSTA, IVANDRO. Fundamentos do Livre-Arbítrio para a Compreensão da Liberdade de Agostinho, Campina Grande, 2011. Disponível em: <https://dspace.bc.uepb.edu.br/jspui/bitstream/123456789/1967/1/PDF%20-%20Ivandro%20Costa.pdf >. Acesso em: 01 nov. 2023.

CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: Parte Especial. 9ª ed. Salvador: Juspodivm, 2017.

FIORILLO, Celso Antônio Pacheco; CONTE, Christiany Pegorari. Crimes no Meio Ambiente Digital e a Sociedade da Informação. 2ª. Edição. São Paulo: Saraiva, 2016. e-book Kindle.

GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 16ª ed. Barueri: Atlas, 2023. e-book Kindle.

MOURA, Grégore Moreira de. Curso de Direito Penal Informático. Belo Horizonte: D’Plácido, 2021.

TAUBER, Rav Yanki. O Livre Arbítrio e o Judaísmo. Rio de Janeiro, 2013. Disponível em:<https://sinagogashaarei.org/o-livre-arbitrio-e-o-judaismo/>. Acesso em: 01 nov. 2023.

VIEIRA, Vinícius. OPSEC. Inteligência Cibernética na Prática. 1ª edição. Joinville: Editora Clube de Autores, 2022. e-book Kindle.

Autores

  • é promotor de Justiça, coordenador do Grupo de Atuação Especial de Combate aos Crimes Cibernéticos (GAECIBER) do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, graduado em Direito pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), especialista em Direito Digital pelo IDP.

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