Opinião

Métodos ocultos de investigação: o agente infiltrado virtual e o Whatsapp Web

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8 de novembro de 2023, 15h29

Nas últimas duas décadas, há crescente adoção de métodos ocultos de investigação em repressão ao crime organizado. A aplicação desses métodos de obtenção de prova no âmbito da investigação preliminar, aliados ao avanço da tecnologia, como a atuação de agentes infiltrados virtuais, encontram-se amparados em uma frágil legislação e relevam-se como instrumentos contundentes, gerando tensão entre direitos fundamentais e o controle da criminalidade. [1]

Recentemente, no âmbito do AResp 2.309.888/MG, sob a relatoria do ministro Reynaldo Soares da Fonseca, conforme destaque, considerou válida a utilização de “ações encobertas, controladas virtuais ou de agentes infiltrados no plano cibernético, inclusive via espelhamento do whatsapp web, desde que o uso da ação controlada na investigação criminal esteja amparada por autorização judicial”. [2]

​Em breve análise, a decisão reformou o acórdão proferido pelo TJ-MG (Tribunal de Justiça de Minas Gerais), que havia declarado a nulidade das provas obtidas por meio da “clonagem” do aplicativo Whatsspp em formato web. Conforme dispôs a decisão do TJ: “(…) no espelhamento do aplicativo (…), o investigador tem a concreta possibilidade de participar efetivamente das conversas, tanto daquelas a serem realizadas quanto dos diálogos anteriormente registrados no aparelho, podendo, inclusive, excluir mensagens, sem deixar vestígios (…)”.

Desse modo, a controvérsia analisada pela 5ª Turma levantou a necessidade de avaliar a viabilidade de empregar ações encobertas, operações virtuais controladas ou a infiltração de agentes no ambiente cibernético, especificamente via whatsspp web, sendo uma extensão da conta utilizada no celular. Em seu voto, o ministro relator entabulou pelo menos quatro premissas, conferindo legitimidade para a técnica de investigação:

(a) a ação controlada de agentes amparada por autorização judicial seria a chancela necessária para outorgar funcionalidade à persecução virtual, inclusive via pareamento do Whatsapp Web.

(b) a Lei n° 9.296/1996 (interceptações telefônicas) permitiria a quebra do sigilo no que concerne à comunicação de dados e, nessa esteira, a Lei de Organizações Criminosas seria a âncora para permitir a “interação, a interceptação e a infiltração do agente, inclusive por meio cibernético, consistente no espelhamento do Whatsapp Web“.

(c) em relação à possibilidade de infração a limites éticos, o ministro refere que “o crescimento e desenvolvimento de novas formas de atuação da criminalidade coloca o processo penal em xeque, na medida em que a persecução penal nos moldes tradicionais, com métodos de investigação já comumente conhecidos, tem se mostrado insuficiente no combate à delinquência organizada moderna”.

(d) no tocante à possibilidade de manipulação da prova por meio do Whatsapp Web e a invalidade da evidência obtida, “nenhum elemento veio aos autos a demonstrar que houve adulteração da prova, alteração na ordem cronológica dos diálogos ou mesmo interferência de quem quer que seja, a ponto de invalidar a prova (…)”.

Salienta-se que, em sentido contrário, em 2018, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) considerou ilegal a autorização judicial para espelhamento via whatsapp web ao considerar, em síntese, dois fatores: o primeiro, que ao contrário da interceptação telefônica, o investigador atua como mero observador, a partir do acesso via whatsapp web, o agente pode atuar como participante; em segundo, a ausência de previsão legal para um meio de obtenção de prova híbrido, pois o espelhamento via QR code permitiria o acesso amplo das comunicações, sendo uma ferramenta que “a um só tempo, em interceptação telefônica (quanto às conversas ex nunc) e em quebra de sigilo de e-mail (quanto às conversas ex tunc)”.[3]

Contudo, a introdução do artigo 10-A na Lei das Organizações Criminosas pela Lei 13.964/2019 (Lei Anticrime) revela um novo cenário para a infiltração virtual de agentes de polícia em tarefas de investigação. Em seus termos, conforme é possível observar na redação da norma, está a previsão da necessária descrição das atividades e alcance das tarefas dos policiais do prazo de seis meses da medida, sendo renovável e não podendo exceder 720 dias e, por fim, mas não somente, o necessário zelo à cadeia de custódia e o sigilo dos dados.

Contudo, é necessário frisar que a atuação de agentes infiltrados por meio do aplicativo Whatsapp Web não permite a observância desses fatores e, tão logo, não poderia ser legitimado como ação encoberta. Registra-se alguns dos problemas: (a) para que a ação encoberta seja iniciada, torna-se necessária a apreensão prévia do aparelho telefônico do investigado possibilitando o pareamento do smartphone via QR code; (b) o acesso do agente infiltrado ocorrerá de forma simultânea e em tempo real a partir da própria conta do usuário/investigado, gerando um duplo acesso, até que o usuário do smartphone cesse a funcionalidade; (c) o acesso simultâneo possibilitará que o agente possa enviar e/ou apagar mensagens na modalidade “somente para mim” sem deixar vestígios, pois a atuação encontra-se em um ambiente virtual criptografado peer-to-peer e não possui nenhum modo de armazenamento; (d) o acesso simultâneo permitirá que o investigador tenha acesso a mensagens enviadas no passado, desde o acionamento daquela conta pelo usuário/investigado, não existindo qualquer delimitação temporal que venha a limitar as ações e coletas de informações realizadas pelo agente infiltrado.

Diante disso, considerando a ausência de previsão legal sobre as formas ou modalidades de técnicas invasivas, ou ao menos de limites para tal atuação enquanto meios de obtenção de prova, a atuação de agentes infiltrados no ambiente virtual possui ampla liberdade e torna-se um instrumento com alto potencial para violação de direitos fundamentais, sendo temerário autorizá-lo em sua plenitude desde que a ação esteja sob salvaguarda de uma decisão judicial. Essa postura gera um papel relevante e desmedido para as decisões judiciais no ambiente da investigação e torna-se o cerne da determinação da admissibilidade de provas — em substituição a função originária da legislação — resultando em um desequilíbrio entre a forma e o conteúdo.[4]

Portanto, em atenção ao julgamento do AResp 2.309.888/MG, a ausência de previsão normativa suficiente e a falta de critérios e limites específicos para as ações encobertas por meio de agentes infiltrados levantam sérias preocupações. A introdução do artigo 10-A na Lei das Organizações Criminosas pela Lei Anticrime inaugurou as primeiras linhas sobre o tema no ambiente digital, porém a atuação de agentes por meio da utilização simultânea via Whatsapp Web em conjunto com usuários e investigados permanece problemática, elevando a tensão entre o combate à criminalidade e a violação de direitos fundamentais.

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[1] PRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova no processo penal. 1ª ed. São Paulo: Marcial Pons, 2019. p. 62.

[2] AREsp 2.309.888-MG, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma do STJ, julgado em 17/10/2023.

[3] RHC n° 99.735/SC. Rel. Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma do STJ, julgado em 27/11/2018.

[4] EBERHARDT, Marcos. “A (im)possibilidade do uso de malware como meio de obtençõa de prova em face da alteração na Lei 9.296/96 proposta pelo “Pacote Anticrime” e a necessidade de observância de balizas legislativas na legitimação de novos métodos investigativos” in Garantias Penais: estudos alusivos aos 20 anos de docência do Professor Alexandre Wunderlich. Porto Alegre, Boutique Jurídica, 2019. P. 427 e 429.

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