Garantias do Consumo

Pós-colonialismo digital e justiça descolonial: desidentidade, datificação e alienação

Autores

  • Fernando Rodrigues Martins

    é professor da graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia doutor e mestre em Direito pela PUC-SP membro do Ministério Público de Minas Gerais.

  • Guilherme Magalhães Martins

    é professor associado de Direito Civil da Faculdade Nacional de Direito/UFRJ professor permanente do programa de doutorado em Direito Instituições e Negócios da UFF pós-doutor em Direito da USP doutor e mestre em Direito Civil pela Uerj procurador de Justiça no MP-RJ segundo vice-presidente do Instituto Brasilcon e diretor do Iberc.

  • Marco Aurélio Nogueira

    é professor de Política na Unesp em Araraquara.

13 de dezembro de 2023, 10h20

Os “confins” [1] do poder tecnológico e a hiperutilização da economia da informação, quer seja através das plataformas online (bigs techs ou não) ou outros canais de “interação” cibernética, criados e radicados genuinamente em países líderes destas inovações, muito embora tenham significativa importância em diversos pontos (redução de custos, tempo e distâncias), operam, de outro lado, destrutivamente sobre culturas regionais, identidades coletivas e individuais e, muitas vezes (e o pior), em face dos costumes. O costume, hoje, é não ter costume.

Nessa medida vão impondo, em descontrolado ritmo, outro modelo de “pós-colonialismo” [2]: o digital (disruptivo, desconstrutivo-criativo, autotransformador).

As questões postas pelos fenômenos digitais afetam drasticamente a qualidade existencial do humano já que várias “arquiteturas” retiram a posição de decidibilidade da pessoa (ou do usuário), tornando-a meramente partícipe de conteúdos propostos pelas redes. Se antes os computadores serviam de “meio” no auxílio para diversas atividades comunicacionais, gráficas, matemáticas ou textuais, hoje os “devices” são “fim”, consolidando o conhecimento informático no domínio exclusivo de seus criadores, através de suas próprias regras (algoritmos).

Transparece ser época de múltiplos e incessantes (sub)paradigmas considerando as transformações ‘sem freios’ proporcionada pela “virada digital”. Numa primeira fase: a conectividade (rompendo limites, aproximando usuários e abrindo caminho para comunicação geral e imediata). Na segunda fase: a digitalização (consolidação do mundo virtual frente ao mundo real e físico, com multiplicidade de arranjos negociais e extensão da “Internet das coisas”). Na terceira fase, a plataformização e datificação (trata-se de capítulo à parte do capitalismo digital, já que se refere ao capitalismo de vigilância pelo mineração, coleta, armazenamento de dados e controle do comportamento humano). Claramente passamos da condição humana à condição informática.

O colonialismo, arraigado ao eurocentrismo, verticalizou sentidos e padrões a partir de “métodos” reservados aos colonizados conforme três domínios hegemônicos de sustentação: o poder (através da instituições); o conhecimento (mediante o domínio epistemológico e do saber); e o ser (pelo fatiamento das pessoas considerando raças, etnias, gêneros, sexualidade).

Junto aos domínios significativos acima descritos o “forjar” da subjetividade talvez seja a principal demonstração de êxito do colonialismo, porque aos poucos os colonizados passaram a absorver e internalizar as “atividades especializadas que hierarquizam valores e saberes”. [3]

Há maneiras de controlar o colonizado que se opõe à proeminência colonizadora? A indagação encontra resposta justamente nas superestruturas sociais criadas, com especial supremacia ao Direito legislado, nomeadamente através da criminalização de condutas próprias da cultura local substituída ou mesmo com a inclinação normativa em apagar a consciência dos colonizados, mediante institutos jurídicos, como a “capacidade civil”. Há um nome para isso: “a gestão dos indesejáveis”. [4]

Os adventos das independências das ex-colônias (sul-americanas, asiáticas e africanas) do domínio europeu possibilitaram o marco inicial do “pós-colonialismo”. Esta designação igualmente foi atribuída à criação de teoria crítica (escola de pensamento) centrada no discurso social, na observação do ‘lugar’ das narrativas, na compreensão da tensão entre sujeitos (colonizadores versus colonizados) e na reorientação da epistemologia.

Pós-colonialismo extremamente fragmentário do ponto de vista de continentes como pode ser visto nas pesquisas de Franz Fanon em 1961 abordando a violência colonial na África e as repressões criminológicas [5]; na escrita do autor palestino Edward Said, quando atribui ao intelectualismo ocidental a criação do ‘oriente’ (verdadeiro apartheid) [6]; assim como na memorável contribuição da filósofa indiana Gayatri Chakrabarty Spivak explorando o universo daqueles sem voz (subaltern studies).[7]

Contudo, mesmo com países já independentes, restaram marcas [8]: via de consequência, é correto separar a noção de colonialismo (histórico, expansionista e territorialista) de colonialidade (relacional, contínuo, contemporâneo, estrutural, excludente e neoliberal). A colonialidade do poder, tendo por estratégias a economia; a autoridade; a natureza dos recursos naturais; o direito legislado; os saberes e conhecimento; o gênero, a taxonomia por raças; a sexualidade; e, finalmente, a subjetividade.

Na América Latina a teoria “pós-colonial” ganhou intensa dedicação de pesquisadores, inclusive com a criação do programa de investigação “modernidade-colonialidade”, que aos poucos foi se desprendendo das influências de pensadores europeus em estudos correlatos (pós-modernidade, pós-estruturalismo, pós-marxismo) e distanciando-se de outra facetas pós-colonialistas (como as indianas e africanas) para alcançar autonomia, “conforme” as circunstâncias próprias da Sul América. No Brasil, proposta epistemológica assemelhada pode ser vista na “carnavalização do direito”. [9]

O escopo centra-se em promover o colonizado em face da colonialidade, buscando “filtragem” das superestruturas derivadas da colonialidade (epistemológicas, culturais, econômicas, políticas, sociais, jurídicas, raciais) e revelando os “saberes”. [10] Por isso, aqui se emenda outra conceituação e aplicação: a “descolonialidade” que, sobretudo, é transversal, transgressora e transmoderna.

E a partir daí permitir a “inclusão normativa” daqueles tantos ainda “sem-direitos” e invisíveis à luz da vida jurídica digna em diversas situações subjetivas: gênero (a questão dos trans, dos homossexuais, das tantas diversidades sociais frente ao clássico heteronormativismo); integridade corporal, psíquica e mental (o tormento das pessoas com deficiência frente às exigências capacitistas e com barreiras, a começar da própria justiça); raça e etnia (a enorme disparidade de acesso, de discurso, de oportunidades entre negros, pretos e pardos com brancos, o mesmo quanto aos índios); não-livres (o estado de coisas inconstitucionais que anulam totalmente os encarcerados no Brasil); sexualidade (os inúmeros desrespeitos à dignidade sexual).

A esfera digital hoje é produtora de larga distribuição de conteúdo, sem prejuízo da ampla capacidade de controle de comportamentos humanos por algoritmos e inteligência artificial, além de armazenadora de informações e dados pessoais (e sensíveis) de quase toda população. É justamente essa hegemonia global (verticalidade) que lhe garante a destruição ou opacidade da condição humana e dos valores coletivos.

Adotando a linha de pesquisa crítica da epistemologia do sul, torna-se essencial tecer análise, mesmo que mínima, frente aos três domínios pelos quais a colonialidade nos torna ainda “colonizados” e “colonizáveis” nesta perspectiva digital. Via de consequência, o cotejo dá-se sobre: o “ser”; o “poder”; e o “saber”.

(i) Quanto ao ser: a percepção nas plataformas é unificação de indivíduos em “bolhas seletivas”, presos numa só linguagem, acondicionados à produção de saberes externos e literalmente ‘estimulados’ a estereótipos de consumo, perdendo a cada instante a identidade pessoal e, sobretudo, o lugar-coletivo: assumindo o “eu digital”, residem num “mundo paralelo”.

Nesta situação há claro fenômeno que salta aos olhos: a “desidentificação” da pessoa, geralmente porque o “eu-digital” é um simulacro da “pessoa real”. É que o virtual não é falso, entretanto não é o atual, sempre demandando sincronização. A “desidentidade” ocorre não somente porque o corpo físico em muitas vezes não se faz condizente com o eu-digital (a imagem), mas também porque as narrativas em redes sociais não sejam atualizadas, com destaque à permanência do eu-digital após a morte do titular e a utilização de inteligência artificial para interação nas redes: a imortalidade digital.

Outra reflexão se faz necessária. Se com muito esforço, através dos direitos humanos (mobilização-resistência-emancipação), da legalidade constitucional e de estatutos identitários, possibilitamos a inclusão de crianças, adolescentes, mulheres, idosos, consumidores, raças, etnias e analfabetos perante políticas públicas, mercado, mediante deveres fundamentais de proteção, de outro lado, é fácil perceber que as plataformas não fazem o mesmo: tratam com homogeneização aqueles que compõem as “diversidades” e merecem reconhecimento diferenciado, permitindo a discriminação acintosa.

(ii) Quanto ao poder: há seleto grupo mundial que detém valores informáticos, políticos e, sobretudo, econômicos (muito acima de PIBs de inúmeros países), sendo que a respectiva atividade se desenvolve no maior ativo atual: a coleta, o armazenamento e tratamento de dados pessoais e dados sensíveis. Tais dados representam, na contemporaneidade, a base econômica do capitalismo de plataformas, porque através deles se criam mercados e o que é mais importante se controla comportamentos humanos, afora o excessivo alargamento das possibilidades de compartilhamento (inclusive para fins eleitorais).

Tanto a mineração de dados como a datificação são figuras de aprisionamento das pessoas para fins exclusivamente lucrativos, isto porque “nossa vida social tornou-se recurso que pode ser extraído e utilizado pelo capital como forma de acumulação de riquezas”.[11] A “mineração de dados” não significa apenas coleta de signos ou símbolos, mas a transformação de dados brutos, cuja informação quase nenhuma valia tem, lapidando-a a fim de torná-la economicamente interessante ao mercado. Tais dados permitirão aos “players”, não apenas o conhecimento sobre o usuário, mas a manipulação da “tomada de decisão”, através de algoritmos.

Em outras situações, a coleta é feita sob os auspícios da “irresistibilidade”, já que caso o titular não compartilhe seus dados e não terá acesso à plataforma. Se o colonialismo clássico era perfilhado pelo extrativismo de recursos naturais, agora se trata do ‘extrativismo digital’.

A datificação, ao seu turno, reúne amálgama que, em primeiro lugar, consubstancia a pessoa humana em dados numerados, mediante a utilização de diversos desenhos, arquiteturas, aplicativos, plataformas etc. e, em segundo lugar, destina a transformação realizada para diversas funcionalidades, com destaque ao controle público, aos interesses de mercado, às instituições financeiras, sem perder de vista a monetização. Por isso, que a colonialidade ressuscita superadas práticas, dentre elas a pulverização da dignidade humana para, num só “click”, promover a “escravidão digital”. [12]

(ii) Quanto ao saber: O domínio tecnológico dos “países” sede das plataformas digitais (com destaque ao Vale do Silício) estampam dois dogmas que representam obstáculos à nova e necessária independência dos “subalternos” desta colonialidade do poder. O primeiro: que não se vive mais sem as plataformas digitais e o mundo das redes. O segundo: apenas os estudiosos do ‘norte’ são capazes em produzir tecnologia.

Enquanto alguns defendem a preservação daqueles que por extrema vulnerabilidade ou objeção de consciência não fazem parte do mundo digital, outras opiniões, compreendem que a opção pela vida analógica, quer seja por critérios ideológicos, religiosos ou dificuldades cognitivas sobre o manuseio das plataformas, não pode ser obstáculo para acesso ao mundo digital.[13]

Por fim, significativamente exsurge ao lado das considerações analógicas, o tema da “alienação técnica”: pela crença, sem comprovação, de que os países colonizados não teriam condições de criar, explorar e desenvolver tecnologias, o que em consequência levaria à hipótese apenas de nações meramente consumidoras ou usuárias das inovações importadas.

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[1] RODOTÀ, Stefano. El derecho a tener derechos. Trad. José Manuel Revuelta López. Madrid: Editorial Trotta, 2014, p. 28.

[2] Couldry, Nick; Mejias, Ulises A. The costs of connection: how data is colonizing human life and appropriating it for capitalism. Stanford: Stanford University Press, 2019.

[3] FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio; BORGES, Guilherme Roman. A superação do direito como norma: uma revisão descolonial do direito brasileiro. São Paulo: Almedina Brasil, 2020, p. 31.

[4] CASARA, Rubens R. R. Estado pós-democrático: neo obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

[5] FANON, Franz. Os condenados da terra. Trad. Ligia Fonseca Ferreira e Regina Salgado Campos. São Paulo: Zahar, 2022.

[6] SAID, Edward. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

[7] SPIVAK, Gayatri Chakrabarty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG, 2018.

[8] QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, cultura e conhecimento na América Latina. In: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Edgardo Lander (org). Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autônoma de Buenos Aires, Argentina. setembro 2005..

WARAT, Luis Alberto. Manifesto do Surrealismo Jurídico. São Paulo: Editora Acadêmica, 1988.

[10] BALLESTRIN, Luciana. América latina e o giro decolonial. In: Revista Brasileira de ciência Política. v. 11. Brasília: maio-agosto de 2013, p. 89-117. O texto desenvolve o historicismo do giro ‘decolonial’, fazendo recortes desde a origem até a chegada na América Latina.

[11] CASSINO, João Francisco. O Sul global e os desafios pós-coloniais na era digital. In: Colonialismo de dados: como opera a trincheira algorítmica na guerra neoliberal. João Francisco Cassino, Joyce Souza; Sérgio Amadeu da Silveira (org.). São Paulo: Autonomia Literária, 2021, p. 22.

[12] FERREIRA, Keila Pacheco. Corpo eletrônico e escravidão digital: do conceito em construção à utilização indevida na esfera da proteção de dados pessoais. In: 5 anos de LGPD: estudos em homenagem a Danilo Doneda / coordenação Claudia Lima Marques… [et al.]. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023.

[13] RODRIGUES JÚNIOR., Otavio Luiz; TOLEDO, Claudia Mansani Queda de. Direito fundamental a uma vida analógica? Um debate entre o direito civil e o direito constitucional a partir da hipótese de Lorenz. R. bras. Est. const. – RBEC. Belo Horizonte, ano 16, n. 50, p. 213-236, jul./dez. 2022.

Autores

  • é professor da graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, doutor e mestre em Direito pela PUC-SP, membro do Ministério Público de Minas Gerais.

  • é pós-doutor em Direito pela USP. Professor associado de Direito Civil na Faculdade Nacional de Direito – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Segundo vice-presidente do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon). Procurador de Justiça no Estado do Rio de Janeiro.

  • é doutor e mestre em Direito das Relações Sociais. Professor de Direito Civil e de Direito Eleitoral da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia. Coordenador Direito/Imepac – Araguari/MG. Promotor de Justiça em Minas Gerais.

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