Retrospectiva 2023

O STF, as reclamações trabalhistas e as fraudes

Autor

  • é ministro do TST (Tribunal Superior do Trabalho) doutor em Direito pela Universidade Autônoma de Lisboa "Luís de Camões" mestre em Direito pela UFBA (Universidade Federal da Bahia) membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho (Cadeira nº 39) da Academia de Letras Jurídicas da Bahia (Cadeira nº 19) do Instituto Baiano de Direito do Trabalho e do Instituto Brasileiro de Direito Processual membro correspondente da Academia Paulista de Letras Jurídicas e investigador integrado do Ratio Legis — Centro de Investigação e Desenvolvimento em Ciências Jurídicas da Universidade Autônoma de Lisboa [Projeto: Cultura de Paz e Democracia].

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11 de dezembro de 2023, 15h15

Nos últimos meses, têm sido veiculadas notícias a respeito de possível “desobediência” de magistrados do trabalho e até do Tribunal Superior do Trabalho (ou de alguns de seus ministros) às decisões do Supremo Tribunal Federal que analisam o reconhecimento de relação de emprego em situações de terceirização ou de trabalho realizado por intermédio das denominadas “plataformas digitais”, o que provocaria — e até mesmo estimularia — a insegurança jurídica.

No sistema Judiciário brasileiro, cada órgão possui competência própria e atua nos estritos limites fixados na Constituição ou leis editadas pelo Poder Legislativo.

Assim, os tribunais de segundo grau, como os Tribunais Regionais do Trabalho, possuem competência recursal para definir os fatos da causa. Nesse mister, são soberanos!

Os tribunais superiores são competentes para definir a interpretação, em definitivo, da legislação infraconstitucional. No caso do TST, cabe-lhe dar a última palavra sobre a lei ordinária trabalhista. Nesse mister, é soberano!

Ao Supremo Tribunal Federal, por sua vez, incumbe a tarefa de interpretar a Constituição da República. Nesse mister, é soberano!

Portanto, na definição dos fatos, a última palavra cabe ao TRT, na interpretação da lei infraconstitucional trabalhista, ao TST, e, em matéria constitucional, ao STF.

Nas ações judiciais em que se postula o reconhecimento de vínculo empregatício, o autor afirma haver prestado serviço em prol de outra pessoa, natural ou jurídica, de forma pessoal, subordinada, não eventual e remunerada.

Esses fatos são suficientes para que se obtenha, de início, a resposta afirmativa quanto à competência material conferida pelo artigo 114, I, da Constituição, e nada há de diferente em função da atividade econômica (comércio, indústria, rural, serviços, etc.).

O que se tem no processo, até então, é a narrativa de fatos que vinculam dois sujeitos de direito aos quais se reconhece a possibilidade jurídica de demandar e serem demandados (Banco Xis, Padaria Y, Fulano, etc.) e definidora da competência, fixada em função dos “elementos da ação”. [1]

O mesmo acontece com determinadas empresas cujas atividades são marcadas pelo uso intensivo da tecnologia, popularmente conhecidas como “plataformas digitais”, pois ninguém há de imaginar que constituam abstrações ou existam apenas “nas nuvens”. Ao contrário, pertencem a pessoas (naturais ou jurídicas), realizam negócios, geram lucros, movimentam a economia e necessitam do esforço humano para que possam existir. Alguém imagina, por exemplo, que não dependam de pessoas ou de outras empresas? Como desempenhar o seu negócio sem energia, manutenção das máquinas e dos sítios da internet, ou sem os veículos que transportam pessoas ou mercadorias? Por isso, não são apartadas da realidade existencial.

A atividade empresarial, regular e legalmente desenvolvida, não as torna imunes à jurisdição trabalhista, no que toca aos conflitos resultantes das pessoas que se dizem trabalhadoras a seu serviço (ainda que não empregadas — artigo 114, I, CF), tal como ocorre com as consumidoras, também sujeitas à jurisdição própria.

Para solucionar a controvérsia estabelecida a partir da petição inicial e defesa, o magistrado avaliará o quanto se apurou na prova e verificará a correspondência com a legislação vigente, hígida e constitucionalmente íntegra. Se a correspondência existir com a condição de empregado (artigo 3º, CLT), reconhecerá os direitos previstos na legislação aplicável; se autônomo, outra lei incidirá; se ausente, rejeitará a pretensão.

O direito material não define a competência. Assim o disse o Pleno do STF, em antigo (mas sempre atual) acórdão (Conflito de Competência nº 6959, em 23/05/1990, rel. Min. Sepúlveda Pertence), baseado em dedução extremamente simples:

Para saber se a lide decorre da relação de trabalho não tenho como decisivo, data venia, que a sua composição judicial penda ou não de solução de temas jurídicos de direito comum, e não, especificamente, de direito do trabalho.
O fundamental é que a relação jurídica alegada como suporte do pedido esteja vinculada, como o efeito à sua causa à relação empregatícia ….

Em outro Conflito de Competência (nº 7950, rel. Min. Marco Aurélio, em 14/09/2016), reconheceu a definição da competência a partir da causa de pedir:

COMPETÊNCIA – CONFLITO. Envolvendo o conflito de competência o Tribunal Superior do Trabalho e Tribunal de Justiça, incumbe ao Supremo apreciá-lo. CONFLITO DE COMPETÊNCIA – JUSTIÇA COMUM VERSUS JUSTIÇA DO TRABALHO. A definição da competência decorre da ação ajuizada. Tendo como causa de pedir relação jurídica regida pela Consolidação das Leis do Trabalho e pleito de reconhecimento do direito a verbas nela previstas, cabe à Justiça do Trabalho julgá-la.

Por sua vez, a controvérsia que originou o Tema 725 de Repercussão Geral girou em torno da validade da terceirização de serviços, no contexto entre atividades fim e meio. O Supremo não legitimou a fraude. Ao contrário, afirmou que pode haver contratação de empresa para executar, interna ou externamente, etapas do processo produtivo, sem que isso constitua ilicitude:

É lícita a terceirização de toda e qualquer atividade, meio ou fim, não se configurando relação de emprego entre a contratante e o empregado da contratada. 2. Na terceirização, compete à contratante: i) verificar a idoneidade e a capacidade econômica da terceirizada; e ii) responder subsidiariamente pelo descumprimento das normas trabalhistas, bem como por obrigações previdenciárias, na forma do art. 31 da Lei 8.212/1993.

Não tratou de competência ou inconstitucionalidade dos artigos 3º e 9º da CLT. Entre outros, foram mencionados fundamentos relacionados aos princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência, às mudanças dos modelos econômicos, à 4ª Revolução Industrial, à subordinação estrutural e às modificações introduzidas na Lei nº 6.019/1974.

Lado outro, a possibilidade do descortino da realidade pelo magistrado do trabalho, em detrimento do arcabouço formal ou aparente, foi reconhecida diversas vezes pelo STF. Cito:

a) ADC 48, rel. Min. Luís Roberto Barroso, Pleno, em 15/04/2020: afirmada a constitucionalidade da Lei nº 11.442/2007 (transportador autônomo de cargas), mas sem afastar a condição de empregado, se presentes os requisitos legais:

Sendo assim, se estiverem presentes os elementos do vínculo trabalhista, não incide a Lei.

b) ARE 1397478, rel. Min. Gilmar Mendes, em 10/11/2022, em que se manteve decisão que reconheceu relação de emprego com base na prova:

No caso dos autos, o Tribunal a quo, com fundamento nas provas dos autos, se restringiu ao reconhecimento de vínculo empregatício direto entre o Banco recorrente e o recorrido, por entender presente o requisito da subordinação jurídica na relação jurídica estabelecida entre as partes (art. 3º da CLT). (…)
Como se pode observar, o acórdão recorrido não tratou especificamente da validade de eventual terceirização de mão de obra, mas, tão somente, da caracterização de vínculo trabalhista direto entre o recorrido e o Banco BMG.
Dessa forma, conclui-se inaplicável o precedente firmado no julgamento do Tema 725 da repercussão geral, de modo que divergir do entendimento firmado pelo Tribunal de origem demandaria o reexame do acervo fático-probatório, providência inviável no âmbito do recurso extraordinário.

Outros precedentes citados: ARE 1349118 AgR, Rel(a) Min(a): Rosa Weber, 1ª T., em 06/12/2021, e ARE 1280609 AgR, Rel. Min.: Edson Fachin, 2ª T., em 24/02/2021;

c) ADI 5625, Min. Edson Fachin, red. p/ac. Min. Nunes Marques, Pleno, em 28/10/2021: afirmou-se a constitucionalidade de dispositivos da Lei nº 13.352/2016 (lei do “salão-parceiro”) e ser possível reconhecer vínculo de emprego, se estiverem presentes os elementos do art. 3º da CLT:

A higidez do contrato é condicionada à conformidade com os fatos, de modo que é nulo instrumento com elementos caracterizadores de relação de emprego. 3. Estando presentes elementos que sinalizam vínculo empregatício, este deverá ser reconhecido pelo Poder Público, com todas as consequências legais decorrentes, previstas especialmente na Consolidação da Leis do Trabalho. 4. Pedido julgado improcedente.

O relator, ministro Edson Fachin, e a Min(a). Rosa Weber reconheciam a inconstitucionalidade da lei, mas prevaleceu o voto do Min. Nunes Marques em sentido oposto, sem afastar a possibilidade de fraude:

Mas não se pode negar a possibilidade de que, na prática, o contrato de parceria, objeto da lei atacada, venha a ser utilizado, vez por outra, como tentativa de dissimular um ajuste que verdadeiramente tenha natureza empregatícia. Essa inegável possibilidade, no entanto, não demanda a declaração de inconstitucionalidade, resolvendo-se pelo jogo comum das ações e recursos trabalhistas.
(…)
Contratos de parceria que em verdade dissimulem vínculos empregatícios serão nulos, à luz do princípio da primazia da realidade, consagrado no art. 9º da Consolidação das Leis do Trabalho. Nessas situações, o vínculo empregatício será reconhecido in concreto pelas autoridades públicas, com todas as consequências legais daí resultantes.

O fundamento da prevalência da realidade também está presente nos votos dos demais Ministros. Transcrevo alguns:

– Alexandre de Moraes:
Obviamente, também os novos arranjos de contrato devem submeter-se ao regime constitucional, em compatibilidade com as garantias sociais fundamentais, para que não sejam invocados formalmente com o objetivo de fraudar uma efetiva relação de emprego …
(…)
De toda forma, a Lei 13.352/2016 não exclui a possibilidade de reconhecimento da relação de emprego quanto à pessoa do profissional-parceiro, quando verificada a presença dos pressupostos que ensejam a sua caracterização, independentemente da sua configuração formal como contrato de parceria.

Além de a própria legislação impugnada prever a possibilidade de reconhecimento do vínculo empregatício entre a pessoa jurídica do salão-parceiro e o profissional-parceiro (…), prevalece em matéria trabalhista, independentemente de referidas previsões legais, o princípio da primazia da realidade, surgindo impositiva a constatação da existência de relação de emprego sempre que as circunstâncias fáticas evidenciarem a presença de subordinação, alteridade, pessoalidade, onerosidade e não eventualidade.

– Luís Roberto Barroso:
… – é que, evidentemente, o contrato de parceria tem que ser real. Se se chamar de contrato de parceria alguém que está numa relação de emprego, com subordinação, horário para cumprir e outras obrigações típicas do contrato trabalhista, aí é vínculo de trabalho e se estaria fraudando…
(…)
Eu não vejo problema nessa norma, evidentemente, desde que ela seja interpretada no sentido de que, se estiverem presentes os requisitos do contrato de trabalho típico, como horário de trabalho e outras obrigações, a parceria seria uma fraude e, evidentemente, nós não chancelaríamos uma fraude.
(…)
… estou aderindo à conclusão do eminente Ministro Nunes Marques, com a observação de que estou validando o contrato de parceria, se for parceria mesmo; se for um contrato de emprego disfarçado, deve-se reconhecer a relação de emprego.

– Cármen Lúcia:
… em caso de fraude ou de uma maquiagem de um contrato de trabalho no lugar de um contrato de parceria desse salão-parceiro, as portas do Poder Judiciário continuam abertas e, portanto, não prevalecerá qualquer fraude aos direitos trabalhistas…
(…)
A lei impugnada não impede, ainda, seja o contrato de trabalho reconhecido, se verificados os requisitos do art. 3º da Consolidação das Leis do Trabalho:
(…)
Assim, eventuais fraudes e simulações de contratos de parceria podem ser levadas ao Poder Judiciário.

– Ricardo Lewandowski:
Verifico, ademais, que a própria Lei 13.352/2016 abriga salvaguardas que buscam evitar o desvirtuamento do contrato de parceria, sem prejuízo, de resto, de submeter-se eventual relação de trabalho – que se caracteriza pela habitualidade, pessoalidade, subordinação e percepção de salário – às regras e, por consequência às sanções da Consolidação das Leis do Trabalho.

– Gilmar Mendes:
Registro, ainda, que o contrato de parceria não é excludente do vínculo de emprego, de modo que este poderá ser reconhecido, caso estejam presentes os seus requisitos legais, como alteridade, pessoalidade, habitualidade, subordinação e onerosidade, nos termos do art. 3° da Consolidação das Leis do Trabalho e do art. 1°-C da Lei no 12.592/2012, na redação conferida pela Lei 13.352/2016.

– Luiz Fux:
Quarto, o art. 1°-C, caput, da Lei impugnada, estabelece a salvaguarda do trabalhador nos casos de burla à legislação trabalhista (preocupação exarada pela requerente na petição inicial). Nesses casos, o vínculo empregatício será reconhecido.

(…) Ademais, o legislador ainda foi suficientemente cauteloso, porquanto apresentou de antemão – as garantias ao trabalhador já elencadas, tais como: (i) a previsão de vínculo empregatício em caso de burla à legislação trabalhista aplicável (art. 1°-C).

De forma unânime, admitiu-se a possibilidade de reconhecimento do vínculo empregatício, a partir da análise dos fatos ocorridos no caso concreto;

d) ADI 5322, Min. Alexandre de Moraes, Pleno, em 03/07/2023: apreciada a constitucionalidade de dispositivos da Lei nº 13.103/2015, entre eles os §§ 3º e 4º (permitem a existência de relação de trabalho autônoma do motorista):

Entendo, nesse sentido, que as normas impugnadas apenas previram a figura de um trabalho autônomo …
(…)
Portanto, não há inconstitucionalidade na norma que prevê, de modo geral e abstrato, a ausência da relação de emprego de determinada atividade econômica. O princípio da primazia da realidade, usado como argumento para fundamentar o pedido da inicial, poderia ser utilizado em hipótese no caso concreto, para caracterizar uma situação diversa da prevista em lei.

O princípio da Primazia da Realidade foi igualmente citado pelo ministro Nunes Marques:

Com efeito, a relação de emprego decorre da presença de seus elementos caracterizadores. Antes de tudo, deriva dos fatos, à luz do princípio da primazia da realidade.

O STF reconheceu a possibilidade de o legislador prever, de modo geral e abstrato, a ausência da relação de emprego em determinada relação jurídica, mas sem impedir o juiz de afirmá-la presente, quando a realidade demonstrar a presença dos elementos do art. 3º da CLT (técnica de distinção).

Esses precedentes vinculam os magistrados de todas as instâncias, inclusive o STF (efeitos vertical e horizontal). Portanto, decisões que reconhecem relação de emprego com base no que a prova indicou haver ocorrido, inclusive fraude na contratação, encontram respaldo na jurisprudência uniforme, íntegra, estável e coerente do STF (artigo 926, CPC).

E assim caminha a realidade!

 

[1]  CINTRA, Antônio Carlos Araújo de; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 21ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 241.

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