Opinião

Nacionalismo jurídico e direito global: lições do caso inglês de Mariana

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5 de dezembro de 2023, 6h03

O século 21 trouxe consigo revelações importantes para as ciências sociais. Não é possível pensar em uma solução ambiental ou mesmo social estritamente local. A interdependência e os efeitos recíprocos de problemas ambientais, ondas migratórias, guerras geradas pela pobreza e opressão afetam todos.

É o direito que deve dar resposta a esses problemas. Se os problemas são globais, o direito deve também sê-lo. E é interessante que, em matéria social e econômica, os direitos que devem liderar essa onda são exatamente aqueles do sul global, onde esses problemas existem há mais tempo, já foram testados e a proteção de interesses sociais aplicada. Referimo-nos à construção, incipiente, de um “direito econômico global” ou “direito empresarial público global”.

Reprodução/GloboNews

Esse direito decorre de um paradoxo de fundo. O mesmo movimento que gerou a livre expansão de empresas transnacionais a partir de 1990 é capaz de fazer surgir seu antídoto, ou seja, crescente número de regras e decisões que criem esse “direito econômico global”. A globalização, fundada na liberalização do comércio e na desregulamentação dos mercados, encontra seus limites nos efeitos negativos desse mesmo processo — incluindo graves desastres ambientais e danos sociais, como trabalho escravo.

É possível então tentar responsabilizar grandes empresas transnacionais em suas sedes. Instrumentos jurídicos para a construção desse direito global já existem — sobretudo com rejeição por cortes europeias da aplicação da chamada exceção de forum non conveniens, nos últimos anos, com base em diferentes regulamentos da comunidade europeia. É o caso, por exemplo, da ação proposta na Corte Londrina por cerca de 700 mil pessoas (físicas e jurídicas) e 45 municípios contra a BHP Billiton como co-controladora da Samarco, pelos danos causados pelo desastre de Mariana (que agora envolve também a co-controladora Vale, chamada pela BHP a participar do processo).

A reação, portanto, é nada mais do que natural. Buscar responsabilizar as matrizes dos grandes monopólios transnacionais pelos prejuízos causados é medida restitutiva básica. Mais interessante ainda é que esse direito global causístico começa a surgir em um momento em que uma onda global conservadora afeta países desenvolvidos e em desenvolvimento — como uma salvaguarda para o interesse público enquanto governos se recolhem a particularismos e perigosas proteções de interesses locais.

O crescimento e afirmação desse “direito empresarial público global” ou “direito econômico global” é louvável. A ação de Mariana é brasileira, aplica e “exporta” o direito brasileiro. Tê-la discutida perante a corte londrina só expande a aplicação de princípios nacionais às vezes pouco conhecidos nessas jurisdições (como poluidor indireto). Amplia, portanto, sua eficácia e aplicação, assim como amplia o prestígio de nosso judiciário.

Nesse sentido a ação do caso Mariana na Inglaterra é, desde o seu início e continuará sendo, profundamente brasileira. A necessidade de encontrar uma solução multijurisdicional para indenizar as vítimas só aumenta sua proteção e assegura que as empresas entendam que esses problemas têm impacto global, inclusive em sus matrizes. É preciso que o direito dos países afetados, na sua maioria do sul global, seja difundido e encontre guarida nas jurisdições dos países do norte. A expansão desregulada dos monopólios do norte para o sul, para a qual o processo de globalização econômica foi essencial, só pode ser disciplinada pela mesma globalização, agora no sentido inverso.

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