Opinião

Caso Ana Hickmann e a não implementação da competência híbrida na Lei Maria da Penha

Autores

  • Fabiana Severi

    é professora do Departamento de Direito Público da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP) e do programa de mestrado da mesma instituição livre docente em Direitos Humanos pela FDRP-USP e líder do Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos Democracia e Desigualdades da USP.

  • Maria Eduarda Porfírio

    é graduanda em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP-USP) e pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos Democracia e Desigualdades da USP.

  • Gabriela Cortez Campos

    é mestranda em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora da Clínica de Direitos Humanos da Universidade Federal do Paraná e do Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos Democracia e Desigualdades da USP.

4 de dezembro de 2023, 21h37

No dia 26 de novembro, a apresentadora Ana Hickmann deu entrevista ao programa Domingo Espetacular, da TV Record, na qual falou, pela primeira vez, a respeito da ação de violência doméstica movida contra seu marido. Quando questionada a respeito do divórcio, apontou que havia dado entrada no pedido pela Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06). Na ocasião, apontou também as vantagens de entrar com os pedidos de forma conjunta, tratando sobre a celeridade e sobre a não necessidade de provar que não é possível uma conciliação.

O julgamento de questões cíveis dentro de processos de violência doméstica é possibilidade prevista pela Lei Maria da Penha desde sua promulgação. De acordo com o artigo 14 da referida lei, deveriam ser implementadas instâncias judiciárias especializadas em violência doméstica que reunissem competência cível e criminal para processar, julgar e executar todas as demandas decorrentes de violência doméstica. Na ausência de um juizado ou uma vara especializada, a Lei Maria da Penha, em seu artigo 33, determina que as varas criminais cumulem essa competência híbrida. Esta determinação visa garantir uma resposta jurisdicional integral e atinente aos diversos reflexos gerados pela violência doméstica.

Reprodução

Nota-se que, pela redação original da lei, toda e qualquer demanda cível que tivesse como causa a violência doméstica e familiar deveria ser analisada nas instâncias judiciárias especializadas. Estaria englobado, então, desde o divórcio, até questões como guarda dos filhos, alimentos, indenizações, separação de bens, dentre outros.

As pesquisas que temos realizado [1], no entanto, apontam que a implementação dessa competência híbrida é uma exceção no país. De acordo com a Nota Técnica emitida pelo Consórcio Lei Maria da Penha em 2020 [2], apenas os Tribunais de Justiça do Pará, Paraná e Mato Grosso tiveram algum tipo de experiência com a implementação da competência híbrida. Em regra, porém, o que vemos na prática judiciária é uma insistência em manter a fragmentação da prestação jurisdicional.

Um dos estudos feitos, analisando diversos documentos com posicionamentos acerca da competência híbrida, observou uma grande resistência, principalmente por parte dos juízes, em aplicar a competência cumulativa integral. No caso da Ana Hickmann, segundo tem circulado na mídia, a juíza da 1° Vara de Violência Doméstica e Familiar de São Paulo teria negado o pedido de divórcio da apresentadora, encaminhando a demanda para a vara de família e sucessões. Esse é um posicionamento que não nos surpreende e que encontra eco nos nossos resultados.

O pedido teria sido negado sob o argumento de que o divórcio e seus desdobramentos ultrapassam os limites da competência criminal, não sendo atinente ao rito célere das causas envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher. Segundo tem sido divulgado, a juíza teria afirmado, ainda, que poderia influenciar outras questões, como o processo de guarda e visitas do filho menor, assuntos que a vara de violência doméstica e familiar não seria competente para apreciar.

Em 2019, a Lei Maria da Penha foi alterada pela Lei nº 13.894/19, que incluiu o artigo 14-A. Este dispositivo explicitou a competência dos juizados e das varas especializadas em processar e julgar as ações de divórcio ou de dissolução de união estável. Nota-se que o parágrafo primeiro deste artigo excluiu a competência da partilha de bens, no entanto, não alterou as demais competências. Assim, diferentemente da suposta alegação da juíza, a vara de violência doméstica seria sim competente para processar, julgar e executar o processo de guarda e visitas do filho menor.

É comum que os conflitos da Lei Maria da Penha tenham desdobramentos cíveis. Isso porque o direito penal, embora garanta a punição do agressor, não é suficiente para garantir a quebra do ciclo da violência. O que observamos é que muitas vezes as mulheres precisam das medidas cíveis, como o deferimento de alimentos, a definição de divórcio e a partilha de bens, para conseguirem efetivamente vencer aquela situação de violência.

Em nossas pesquisas, nos deparamos com várias vantagens que a competência híbrida forneceria. Citamos, por exemplo, que o conhecimento amplo de toda a situação fática por um mesmo magistrado possibilita uma tomada de decisão mais coerente acerca das questões que circunscrevem a violência doméstica e familiar [3], evitando a ocorrência de decisões conflitantes.

Outro ponto que observamos é que as varas cíveis e de família tendem a desconsiderar os reflexos da violência doméstica no julgamento dos processos, o que pode levar à prolação de decisões cíveis incompatíveis com as medidas criminais. Notamos, por exemplo, ser corriqueiro o juiz da vara especializada afastar o agressor do lar e impedir o seu contato com a vítima e seus familiares e/ou dependentes, enquanto o juiz da vara de família autoriza-o a visitar e manter contato com seu filho [4]. Outro exemplo disso é a adoção da guarda compartilhada como regra, desconsiderando-se a existência de uma decisão judicial criminal impedindo o contato direto entre os pais [5].

Nossos estudos têm apontado, ainda, que a ausência da competência híbrida, além de prejudicar a qualidade da resposta jurisdicional, impõe que a mulher procure diversos serviços judiciários para ter seu conflito solucionado. Ainda que o conflito tenha a mesma causa (a violência doméstica e familiar), ela passa a peregrinar entre diferentes juízos. O efeito disso é a repetição dos depoimentos perante várias autoridades, impondo que a mulher reviva aquela situação de violência inúmeras vezes. A fragmentação do atendimento também leva ao desamparo das mulheres. Para além de todo o desgaste emocional, acabam tendo que arcar com mais despesas decorrentes de múltiplos processos e com o deslocamento contínuo ao tribunal [6].

Em sua peregrinação, a mulher se vê obrigada a acessar as Varas de Família para tratar das questões que o juiz do caso de violência doméstica se negou a julgar. É, inclusive, medida que, em nova entrevista, a apresentadora Ana Hickmann afirmou que adotará. Para além da revitimização causada por essa múltipla entrada no judiciário, nas Varas de Família a mulher se depara com um ambiente despreparado para lidar com questões de violência doméstica e questões de gênero no geral, o que pode provocar nova revitimização dessas mulheres.

Outro estudo conduzido por uma das autoras buscou analisar processos tramitados nas varas de família nos quais as autoras possuíam medidas protetivas. O que se observou é que, na maioria dos casos analisados, a violência doméstica é apresentada na primeira manifestação da mulher, no entanto, em quase nenhum dos casos a questão é de fato discutida ou considerada nos trâmites do processo e no proferimento da sentença. A mulher se vê diante de um espaço que se omite em relação a violência sofrida e não lhe confere tratamento especializado na condução do processo.

Nossos resultados apontam que a separação dos juízos provoca também a necessidade de constantes atualizações nos autos das Varas de Família sobre os trâmites dos processos penais relacionados. As defesas das mulheres se veem obrigadas a apresentar mais de uma vez os fatos da violência sofrida e fatos novos conforme há o curso do processo penal — fatos esses que deveriam ser considerados de forma comum pelos juízos.

O que temos concluído é que a comunicabilidade das ações se mostra essencial na resolução da lide nas Varas de Família, pois o fato gerador das demandas é o mesmo. A separação das ações leva as mulheres a peregrinarem entre serviços e espaços, enfrentarem a revitimização e se depararem com varas omissas e despreparadas para lidar com conflitos decorrentes da violência doméstica.

Quando tratamos especificamente dos casos de divórcio, temos no direito brasileiro um reconhecimento pacificado, na doutrina e na jurisprudência, que se trata de direito potestativo de todo e qualquer indivíduo. Ou seja, o Judiciário não pode negar a separação, mas apenas conduzir seus trâmites, da mesma forma que a parte contrária não pode se opor e querer obrigar que a outra permaneça a ela vinculada. Apesar de nas Varas de Família o direito potestativo ser utilizado nas sentenças de divórcio ou separação, o reconhecimento do direito da mulher de se separar do seu agressor não é concedido sem antes haver proposição de audiência de conciliação. A audiência só não se realiza na hipótese de ambas as partes dispensá-la.

Ao se separar os julgamentos e as varas cíveis se omitirem da questão, as mulheres que precisam buscar esse segundo espaço do judiciário para terem resposta a sua demanda, são expostas a um trâmite processual que as colocam em um mesmo espaço que o seu agressor e as fazem reviver a violência sofrida em prol de provar que não há conciliação [7]. Pelo simples exemplo da designação da audiência de conciliação é possível observar o despreparo das Varas Cíveis em lidar com casos de divórcio que decorrem de um caso de violência doméstica.

A estrutura do judiciário que separa em “caixinhas” as matérias processuais, ignora que se trata de um único caso. O tratamento que se dá a um divórcio entre a mulher e seu agressor, não pode ser o mesmo que se dá ao divórcio entre um casal que não há violência doméstica [8], é preciso que o magistrado tenha capacitação e que a Vara tenha estrutura e integre uma rede de acolhimento para garantir a proteção integral da mulher, da mesma forma, é preciso que se conheça todo o histórico do caso para que não se tenha decisões contraditórias que imponham a mulher uma convivência com seu agressor.

As pesquisas realizadas junto ao Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos, Democracia e Desigualdades da USP demonstram que a cumulação de competências tem o potencial de potencializar o acesso à justiça das mulheres e garantir a dignidade da mulher. No entanto, observamos diversas resistências na sua implementação, razão pela qual não nos surpreende ter sido negada a tramitação do pedido de divórcio da apresentadora com base na Lei Maria da Penha.

O caso Ana Hickmann nos permite refletir sobre a importância da competência híbrida. No domingo, a apresentadora, em sua entrevista, apontou e destacou a importância e a relevância da inovação prevista na Lei Maria da Penha na proteção dos direitos das mulheres. Na quarta-feira, o judiciário brasileiro, mais uma vez, insistiu em não aplicar essa inovação, dando continuidade à prática de não implementação integral da legislação, que os estudos na área têm observado.


[1] Nesse sentido, menciona-se o trabalho de mestrado em andamento da pesquisa Gabriela Cortez Campos, cujo título é “A competência híbrida das varas de violência doméstica de Cuiabá: um estudo de caso” e a pesquisa de iniciação científica, financiada pela Fapesp, da pesquisadora Maria Eduarda Porfírio cujo título é “Quando a violência doméstica contra mulheres bate à porta das Varas Cíveis: uma análise de processos judiciais em Varas Cíveis em que as autoras têm medidas protetivas concedidas previstas na Lei Maria da Penha”. Parte do trabalho já realizado pode ser conferido em: CAMPOS, G. C.; PORFÍRIO, M. E. S.; SEVERI, F. C. A (in)viabilidade da competência híbrida: uma análise da argumentação do Conselho Nacional de Justiça à luz da literatura feminista. In: IOCOHAMA, C. H.; MARTINI, S. R. (Org.) Anais eletrônicos. Acesso à justiça: política judiciária, gestão e administração da justiça I. Florianópolis: CONPEDI, 2022. PORFÍRIO, M. E. S.; SEVERI, F. C. Quando a violência doméstica e familiar contra as mulheres bate à porta das varas cíveis: uma análise de processos judiciais em varas cíveis em que as autoras têm medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha. In: VIII Encontro Nacional de Antropologia do Direito (ENADIR). Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (DA-USP), São Paulo (remoto), 2023.

[2] Nota técnica do Consórcio Lei Maria da Penha- referente à competência plena dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar prevista na Lei Maria da Penha e às modificações introduzidas pela Lei Lei 13.894/ 2019.

[3] PARIZOTTO, Natalia Regina. Violência doméstica de gênero e mediação de conflitos: a reatualização do conservadorismo. Serviço Social & Sociedade, n. 132, p. 287–305, ago. 2018.

[4] FERREIRA, Versalhes Eros Nunes. A competência cumulativa cível e criminal das varas de violência de gênero: a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e a posição do Tribunal de Justiça do Estado do Pará. Revista Jurídica da OAPEC Ensino Superior, v. 6, n. 1, 1 jul. 2018.

[5] ALMEIDA, Dulcielly Nóbrega de. Defensoria Pública em defesa de mulheres em situação de violência. Seminário 12 anos da Lei Maria da Penha. Brasília: Comissão Permanente Mista de Combate à violência contra a mulher – CMCVM, 2019.; CASTILHO, Ela Wiecko V. de. Aplicabilidade da Competência Cível e Criminal da Lei Maria da Penha. Seminário 12 anos de Lei Maria da Penha. Brasília: Comissão Permanente Mista de Combate à violência contra a mulher – CMCVM, 2019.

[6] FACHIN, Melina Girardi; BARWINSKI, Sandra Lia Leda Bazzo. Mulheres agredidas e acesso à justiça: a competência híbrida dos juizados de violência doméstica e familiar. Em: SILVA, V. A. B. DA (Ed.). Acesso à Justiça nas Américas. 1. ed. Rio de Janeiro: Fórum Justiça, 2021. v. 1.

[7] OLIVEIRA, André Luiz Pereira de. “SE VOCÊ FICAR COM NOSSOS FILHOS, EU TE MATO!” Violência doméstica e familiar contra a mulher e as disputas de guarda de filhos/as em trâmite nas Varas de Família de Ceilândia/DF. Brasília, 2015.

[8] SPINELLI, Ana Carolina Longhini. Aspectos não penais da Lei Maria da Penha: a indenização das vítimas de violência doméstica no âmbito Cível. São Paulo, 2020.

Autores

  • é professora do Departamento de Direito Público da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP) e do programa de mestrado da mesma instituição, livre docente em Direitos Humanos pela FDRP-USP e líder do Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos, Democracia e Desigualdades da USP.

  • é graduanda em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP-USP) e pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos, Democracia e Desigualdades da USP.

  • é mestranda em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora da Clínica de Direitos Humanos da Universidade Federal do Paraná e do Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos, Democracia e Desigualdades da USP.

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