Ambiente jurídico

Direito climático e inteligência artificial

Autor

  • Gabriel Wedy

    é juiz federal professor nos programas de pós-graduação e na Escola de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) pós-doutor doutor e mestre em Direito Ambiental membro do Grupo de Trabalho "Observatório do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas" do Conselho Nacional de Justiça visiting scholar pela Columbia Law School (Sabin Center for Climate Change Law) e pela Universität Heidelberg (Institut für deutsches und europäisches Verwaltungsrecht) autor de diversos artigos na área do Direito Ambiental no Brasil e no exterior e dos livros O desenvolvimento sustentável na era das mudanças climáticas: um direito fundamental e Litígios Climáticos: de acordo com o Direito Brasileiro Norte-Americano e Alemão e ex-presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe).

2 de dezembro de 2023, 8h00

No século passado, nos anos 50, já havia uma geração de cientistas, matemáticos e filósofos que haviam começado a desenvolver um conceito ainda incipiente de inteligência artificial. No entanto, foi Alan Turing quem explorou pioneiramente a possibilidade matemática da inteligência artificial e sugeriu que as máquinas poderiam utilizar a informação disponível e tomar decisões, pelo simples motivo de que os homens, enquanto seres racionais, faziam o mesmo. Nesta época ele finalizou a hoje célebre  pesquisa Computing Machinery and Intelligence com o objetivo de elaborar procedimentos para a construção de máquinas inteligentes e de meios para avaliar a inteligência das mesmas [1].

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Na época, aqueles grandes e pesados computadores, que inspiraram inclusive filmes de ficção científica, não tinham a função de guardar comandos, mas podiam executá-los, ou seja, eles tinham a capacidade de receber informações sobre o que fazer, mas não possuíam memória sobre o que haviam feito. O aluguel de um computador era proibitivo pelo alto custo. Apenas as ricas universidades dos países desenvolvidos podiam alugar um computador a um custo de US$ 200 mil mensais, e mesmo assim as mesmas necessitavam de linhas de financiamentos estatais [2].

Posteriormente, Allen Newell, Cliff Shaw e Herbert Simon iniciaram o conhecido programa Teórico da Lógica  (Logic Theorist), consistente  na imitação das capacidades humanas para a resolução de problemas. Esse foi o primeiro programa de inteligência artificial, de fato, apresentado à comunidade científica no pioneiro Dartmouth Summer Research Project on Artificial Intelligence (DSRPAI), organizado por John McCarthy e Marvin Minsky em 1956. Foi nessa conferência que McCarthy cunhou o termo IA e, também, que restou demonstrado que esta poderia ser desenvolvida [3], não sem riscos, nos mais diversos campos do conhecimento.

Durante as décadas de 1990 e 2000, muitos dos objetivos fundamentais da inteligência artificial foram alcançados. Em 1997, o campeão mundial de xadrez Gary Kasparov foi derrotado em uma partida pelo Deep Blue da IBM. No mesmo ano, o software de reconhecimento da fala, desenvolvido pela Dragon Systems, foi implementado no Windows. Foi também criado, por Cynthia Breazeal, o Kismet, um robô supostamente apto a reconhecer e exibir emoções.

Passados alguns poucos anos, o que existe de fato hoje é a possibilidade de recolher com a IA quantidades de informações impossíveis de uma pessoa processar. A aplicação da inteligência artificial a esse respeito mostrou avanços em vários campos, tais como nas novas tecnologias, no sistema bancário, em estratégias de marketing, no entretenimento, na Medicina, na Engenharia e, também, embora jamais como uma solução, no Direito. Mesmo que os algoritmos não melhorem muito, os grandes dados e a computação maciça permitem inegavelmente que a inteligência artificial aprenda com a repetição [4].

Neste cenário, em que o mundo enfrenta uma tripla crise planetária que engloba o aquecimento global, a perda da biodiversidade e o aumento da poluição, a IA precisa ser avaliada dentro de uma perspectiva de um desenvolvimento ecologicamente sustentável.  

Há mais dados climáticos disponíveis do que nunca, mas as formas como esses dados são acessados, operados e interpretados, não são isentos de falhas e riscos. Um justo equilíbrio em uma ponderação de valores conflitantes é essencial para gerir essas crises [5]. Assim sistemas e máquinas que executam tarefas que tipicamente requerem inteligência humana, podem melhorar de modo iterativo pelo seu uso constante, mas obviamente não são infalíveis [6].

A adaptação climática em escala e a mitigação das emissões de gases de efeito estufa são essenciais para o enfrentamento desta Era do Antropoceno. A capacidade de adaptação aos eventos climáticos extremos, com a utilização de percepções climáticas acionáveis igualmente é relevante para bem informar as decisões dos players públicos e privados. O uso dessa inteligência para as suas capacidades de modelização climática precisa ser aprimorado e essa não é uma ação para amadores.

Pode-se observar, igualmente,  uma maior inovação em IA centrada na mitigação climática, tal como no emprego desta para medir e reduzir as emissões. Essa inovação tem de ser aproveitada e desenvolvida para acelerar esse tipo de inteligência na obtenção de maior conhecimento sobre o clima.

Isso significa que os governos e as empresas devem repensar a sua abordagem à adaptação ao clima. Em relação à resiliência climática, entre 3,3 e 3,6 bilhões de pessoas no globo vivem em zonas onde já ocorreram ou vão ocorrer um aumento significativo de catástrofes naturais, e é provável que esses eventos extremos aumentem à medida que a crise climática for exacerbada [7]. Os acontecimentos climáticos dos últimos anos, tais como as secas, os furacões, os incêndios e as inundações, deixam claro que a adaptação da sociedade aos riscos e perigos das mudanças climáticas é uma difícil tarefa que vai exigir expertise.

A IA, neste contexto, pode ser utilizada para previsão e a prevenção de incêndios florestais. Ela permite o mapeamento interativo de áreas de alto risco e pode auxiliar no acompanhamento do desenvolvimento de incêndios em tempo real com o uso de algoritmos de propagação de fogo, informando e sugerindo a melhor afetação de recursos e estratégias no longo prazo para a gestão sustentável das florestas. Como o custo global médio anual dos incêndios é de cerca de US$ 50 bilhões, a IA pode tornar o combate aos incêndios mais eficiente e econômico [8]. O Fórum Econômico Mundial, por exemplo, implantou o FireAid, que está construindo modelos reais de IA que já estão sendo aplicados em vários países a um custo acessível [9].

Essa evolução no aproveitamento da IA para a adaptação climática pode democratizar os conhecimentos sobre o clima para todos os interessados, em especial para as partes potencialmente mais atingidas que residem nos países pobres. Esse emprego apresenta maior relevância no Sul Global evidentemente. Esse hemisfério possui menos acesso à tecnologia, mais áreas de alto risco de desastres e maiores vulnerabilidades estruturais. Essa inteligência pode igualmente reduzir desequilíbrios e assimetrias entre as necessidades de adaptação e o acesso à tecnologia. Relevante, portanto, que seja reforçado o acesso equitativo e a participação, não discriminatória, no desenvolvimento da IA para a adaptação climática. Os mais pobres precisam ser beneficiados e não podem ser prejudicados por esta tecnologia que não deve ampliar o fosso digital já existente que isola cada vez mais os ricos em uma posição privilegiada.

Pode-se concluir, sem ser definitivo, que esse início de utilização da IA no combate às alterações climáticas começa a desvendar a necessária gestão de riscos, possibilitando a construção de sistemas estruturais resilientes e robustos ao ponto de serem capazes de resistir e de, ao mesmo tempo, promoverem a recuperação dos setores atingidos por catástrofes ambientais. Evidentemente que esse emprego deve estar associado a (a) uma consistente investigação climática, com base científica de vanguarda, (b) à elaboração de criteriosos modelos de transição econômica, tecnológica e social, e finalmente, (c) a um responsável e robusto financiamento climático. Neste cenário, são necessárias a fixação do preço do carbono, a implementação da educação ambiental e a mudança comportamental no sentido da adoção de ações sustentáveis na esfera pública e privada.

Governos e empresas que colocarem a IA na sua rotina de governança podem contribuir com políticas de criação de melhores condições para a resiliência, para a adaptação e para os esforços de gestão para mitigação climática. Aliás, várias soluções inovadoras de tecnologia climática estão promovendo avanços nos campos da adaptabilidade e da resiliência.

No entanto, a maioria das soluções climáticas relacionadas com a IA existentes estão dispersas, são de difícil acesso e carecem de recursos para serem desenvolvidas e melhor avaliadas. Neste ponto precisa haver por parte dos desenvolvedores desta tecnologia o fornecimento completo de informações sobre os seus  inevitáveis riscos a toda sociedade.

A IA pode desempenhar um relevante papel ao auxiliar o homem nos processos de tomada de decisões que viabilizem o cumprimento dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável previstos na Agenda 2030, notadamente, o ODS 13, que é referente a ação climática, e, igualmente, das demais metas estabelecidas no Acordo de Paris no ano de 2015.  


[1]TURING, Alan; COPELAND, Jack. The Essential Turing: Seminal Writings in Computing, Logic, Philosophy, Artificial Intelligence, and Artificial Life plus The Secrets of Enigma. Oxford: Clarendon Press, 2004. 

[2] SMITH, Chris; McGUIRE, Brian; HUANG, Ting; YANG, Gary. AI Winter and its lessons. Complete Historical Overview. University of Washington(2006). Disponível em:

http://courses.cs.washington.edu/courses/csep590/06au/projects/history-ai.pdf. Acesso em: 20.11.2023.

[3] SMITH, Chris; McGUIRE, Brian; HUANG, Ting; YANG, Gary. AI Winter and its lessons. Complete Historical Overview. University of Washington(2006). Disponível em:

http://courses.cs.washington.edu/courses/csep590/06au/projects/history-ai.pdf. Acesso em: 20.11.2023.

[4] WARWICK, Kevin. The Future of artificial intelligence and cybernetics. MIT Technology Review, 10.11.2016. Disponível em: https://www.technologyreview.com/s/602830/the-future-of-artificial-intelligence-and-cybernetics/. Acesso em: 20.11.2023.

[5] Sobre o tema inteligência artificial e direito, ver: FREITAS, Juarez; FREITAS, Thomas. Inteligência artificial e direito: em defesa do humano. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2020.

[6] BRYAN, Lufkin. Why the biggest challenge facing AI is an ethical one. BBC Future.Disponível em:

http://www.bbc.com/future/story/20170307-the-ethical-challenge-facing-artificial-intelligence. Acesso em: 20.11.2023.

[7] UNITED NATIONS ENVIRONMENT PROGRAMME. How artificial intelligence is helping tackle environmental challenges. Disponível em:  https://www.unep.org/news-and-stories/story/how-artificial-intelligence-helping-tackle-environmental-challenges. Acesso em: 20.11.2023.

[8] BERG, Tim van den Bergh. World Economic Forum. How artificial intelligence can help us prepare for climate adaptation, 08/11/22. Disponível em:

https://www.weforum.org/agenda/2022/11/how-artificial-intelligence-can-prepare-us-for-climate-adaptation/. Acesso em: 20.11.2023.

[9] MINEVICH, Mark. How To Fight Climate Change Using AI. Forbes. 08.07.2022. Disponível em:

https://www.forbes.com/sites/markminevich/2022/07/08/how-to-fight-climate-change-using-ai/?sh=31e7f79b2a83. Acesso em: 20.11.2023.

Autores

  • é juiz federal, membro do grupo de trabalho Observatório do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas, do CNJ, professor do PPG em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, pós-doutor, doutor e mestre em Direito, visiting scholar pela Columbia Law School e pela Universität Heidelberg, integrante da IUCN World Comission on Environmental Law (WCEL), vice-presidente do Instituto O Direito Por um Planeta Verde e ex-presidente da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil).

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