Hipertrofia jurídica

Interpretação do artigo 319 do CPP testa limites do Judiciário sobre a política

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28 de agosto de 2023, 8h48

O artigo 319 do Código de Processo Penal está no cerne do debate sobre supostas intromissões do Poder Judiciário em outros poderes nos últimos anos. O dispositivo estabelece medidas cautelares alternativas à prisão de servidores públicos e fundamentou o afastamento de seus cargos de políticos como Eduardo Cunha (PTB), Aécio Neves (PSDB) e, mais recentemente, o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB).

Entre as nove medidas alternativas apresentadas pelo artigo 319, está a "suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais".

O mesmo artigo permite aos magistrados determinarem desde a obrigação de comparecimento periódico em juízo até o uso de tornozeleira eletrônica. 

O dispositivo pode ser aplicado para fundamentar o afastamento da função pública daqueles acusados de cometerem qualquer crime que tenha pena restritiva de liberdade, desde que o caso atenda também os requisitos do artigo 282, que disciplina a decretação da prisão preventiva. 

A principal controvérsia em torno da interpretação do artigo 319 é se o termo "exercício de função pública" pode abarcar o exercício de mandato conferido por voto popular.

O jurista Lenio Streck acredita que o mandato popular não pode ser equiparado as outras funções públicas, mas com algumas ressalvas: "A suspensão do exercício da função pública não poderia ser entendida como suspensão de mandato. Isso seria fazer uma interpretação extensiva. Mas admito que a questão é complexa, porque é melhor ser suspenso do mandato parlamentar do que ser preso, uma vez que o artigo 319 é uma forma de substituir a prisão. Isso só mostra a complexidade do Direito. Fosse simples não teria graça!"

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O governador do DF, Ibaneis Rocha foi afastado por três meses no bojo da intentona golpista do último dia 8 de janeiro
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A criminalista Luiza Oliver, sócia do escritório Toron Advogados, explica que o artigo 319 cumpre um papel importante ao oferecer alternativas menos gravosas do que a prisão. Contudo, ela acredita que o fato de o dispositivo não fazer qualquer distinção entre servidores que ocupam cargos alcançados via voto popular e os concursados e comissionados abre brechas para interpretações problemáticas. 

"É preciso ver com muita cautela tudo o que envolve afastamento de pessoas que ocupam cargos concedidos via voto popular. Estamos falando da soberania popular de um lado e do Poder Judiciário de outro", pondera a advogada. 

Ela sustenta que a Constituição já estabelece garantias como imunidade parlamentar e necessidade de convalidação da prisão — mesmo em flagrante — de parlamentares pelas casas legislativas. "Existem instrumentos presentes na própria Constituição e nas leis que buscam garantir que não exista nenhum superpoder."

Sistema bipolar
A redação do artigo 319 do CPP foi alterada pela Lei 12.403, de 2011. Antes disso vigorava no processo penal brasileiro um sistema bipolar, isto é, ou se soltava ou se decretava a prisão do investigado. 

O advogado e professor de processo penal do IDP Luís Henrique Machado explica que o artigo foi alterado justamente para dar mais racionalidade ao nosso sistema e coibir a decretação de prisões provisórias excessivas. 

"Importante salientar que, nos casos de afastamento de políticos do cargo, o STF e o STJ têm tomado o cuidado do órgão colegiado sempre referendar a decisão do ministro relator que determinou o afastamento por meio de liminar. Acredito que os dois tribunais, de um modo geral, têm conferido interpretação adequada ao artigo 319 do CPP", afirma. 

Machado acredita que, se existe uma causa provável, porém não cabal, de que o agente público, investido no mandato, está a reiterar as ações delitivas, o Direito deve responder a essa questão de alguma maneira. "Nesse ponto, a meu ver, tanto o STF como o STJ têm acertado na maioria das vezes", sustenta. 

Devagar com o andor
O advogado e doutor em Direito Penal Conrado Gontijo, por sua vez, acredita que o afastamento de um político eleito só pode ser justificado pela comprovação cabal de que o detentor do cargo eletivo se vale dele para praticar crimes. "Somente, mesmo, em casos excepcionais, em que a existência de elementos da prática delitiva e do uso do cargo indevidamente estejam comprovados."

Gontijo acredita que esse tipo de afastamento deve ser absolutamente excepcional. "De toda forma, o critério a ser adotado é: a manutenção desse sujeito no cargo (eletivo ou não) representa um risco real e grave para a ordem pública, para a produção de provas, para o regular desfecho do processo? Essa é a pergunta", argumenta. 

O criminalista Átila Machado defende uma interpretação ainda mais restrita do artigo 319 no que diz respeito a detentores de cargos eletivos. "Valendo-se de um (super) poder geral de cautela, o Poder Judiciário vem praticando excessos na imposição de medidas cautelares, notadamente no que diz respeito à suspensão cautelar do exercício da função pública de políticos democraticamente eleitos".

Ele defende que o rol previsto no artigo 319 do CPP é inegavelmente taxativo e não admite uma leitura elástica em desfavor do cidadão. "A lei não se vale de palavras inúteis. O Código de Processo Penal faz expressa menção à função pública, no inciso VI, do art. 319, do CPP, havendo evidente diferenciação doutrinária entre função pública e cargos não eletivos. Inclusive, o próprio legislador faz essa distinção por diversas vezes no ordenamento jurídico", explica citando o artigo 92, I, do Código Penal. 

Movimento pendular
Os casos em que o artigo 319 foi usado para fundamentar afastamentos de políticos não são nada parecidos, o que torna a questão ainda mais complexa. "No caso do afastamento do Eduardo Cunha já havia denúncia recebida, além de ter sido uma decisão dos 11 ministros do Supremo. Essa decisão ainda foi submetida à própria chancela da Câmara dos Deputados. É diferente de um caso em que o afastamento se dá no início de uma investigação", explica. 

Luis Macedo / Câmara dos Deputados
 Cunha foi o primeiro membro da elite política a ser afastado na história recente
Luis Macedo / Câmara dos Deputados

Como citado por Luiza, no caso do ex-presidente da Câmara, o ministro Teori Zavascki (1948 e 2017) concedeu liminar confirmada pelo Plenário por unanimidade. Nas 73 páginas da decisão referendada, Teori usa a palavra "excepcional" oito vezes. Também recorreu à "extraordinário" e "inusitado" para descrever o caso e classificou a situação como "pontual" e "individualizada". 

Ao analisar o pedido feito pelo Ministério Público — com base no artigo 319 — , o ministro reconheceu que a forma preferencial do afastamento de Cunha deveria ser pelas mãos dos próprios parlamentares, mas reiterou que existiam indícios concretos de quebra da respeitabilidade das instituições se ele seguisse no cargo e afirmou que é papel do Supremo garantir que tenhamos uma República sem intocáveis. 

"Poderes, prerrogativas e competências são lemes a serviço do destino coletivo da nação. São foros que convidam os consensos à razão, e não cavidades afáveis aos desaforos. O seu manejo – mesmo na escuridão da mais desoladora das tormentas – jamais poderá entregar-se a empatias com o ilícito", registrou. 

Eduardo Cunha foi o pioneiro da elite política na história recente a ser afastado pelo Judiciário quando ocupava a presidência da Câmara em 2016. Em dezembro do mesmo ano, o ministro Marco Aurélio Mello determinou o afastamento do então presidente do Senado, Renan Calheiros (MDB).

A decisão atendeu pedido da Rede Sustentabilidade, que fundamentou sua demanda a partir do entendimento firmado pelo ministro Teori Zavascki  na ação cautelar 4.070, que afastou Cunha. O desfecho, entretanto, foi bem diferente. 

Na ocasião, Marco Aurélio entendeu que, como o senador havia se tornado réu em uma ação penal, não poderia ocupar um cargo que o deixasse na linha sucessória da Presidência da República.

A decisão foi alvo de uma série de críticas da comunidade jurídica. Lenio Streck escreveu em artigo na ConJur que decretar o afastamento de Renan era um perigoso equívoco. "Não há previsão constitucional para esse afastamento. Estamos indo longe demais. O Supremo Tribunal Federal não é o superego da nação, para usar uma frase da jurista Ingeborg Maus, ao criticar o ativismo praticado pelo Tribunal Constitucional da Alemanha", defendeu. A maioria dos ministros teve entendimento parecido e a decisão foi anulada pelo Plenário. 

Já Aécio Neves foi afastado em 2017 por decisão da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal. Por 3 votos contra 2, os ministros determinaram as medidas cautelares pedidas pela Procuradoria-Geral da República.

Votaram pelo afastamento os ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Luiz Fux. Ficaram vencidos os ministros Alexandre de Moraes e Marco Aurélio.

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Afastamento de Aécio Neves acabou sendo derrubado pelo Senado Federal em  2017

Ao votar, Fux afirmou que a atitude mais elogiosa a ser tomada por Aécio seria se licenciar do mandato para provar sua inocência. "Já que ele não teve esse gesto de grandeza, nós vamos auxiliá-lo a pedir uma licença para sair do Senado Federal, para que ele possa comprovar à sociedade a sua ausência de culpa", disse. 

O caso de Aécio, entretanto, foi diretamente afetado pelo julgamento da ADI 5.526, em que os ministros do STF definiram que medidas cautelares impostas pela Justiça a parlamentares, caso impeçam direta ou indiretamente o exercício do mandato, devem ser submetidas em até 24 horas à Casa Legislativa. No Senado, Aécio conseguiu reverter a decisão e permanecer exercendo seu mandato. 

Em 2020, o então governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC) foi afastado por decisão monocrática do ministro Benedito Gonçalves, do Superior Tribunal de Justiça, fundamentada pelo artigo 319 do CPP. 

Benedito Gonçalves afirmou que a medida era necessária para impedir que o então governador usasse a máquina estatal para seguir praticando crimes e dilapidando os cofres públicos. Witzel acabou sofrendo processo de impeachment em 2021 e foi afastado definitivamente. 

O último afastamento polêmico foi do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, que ocorreu a reboque da intentona golpista do último dia 8 de janeiro. O ministro Alexandre de Moraes afastou o mandatário do comando do governo distrital por 90 dias.

Ao determinar o afastamento, o ministro disse que houve "omissão" e "conivência" de diversas autoridades da área de segurança e inteligência, incluindo do governador. Policiais militares do DF, subordinados a Ibaneis, não barraram os manifestantes e não fecharam a Esplanada dos Ministérios, a despeito de pedidos feitos por Flávio Dino, ministro da Justiça.

Ao revogar a decisão em março, Alexandre apontou que não havia evidências de que Ibaneis estivesse tentando atrapalhar as investigações sobre os atos bolsonaristas ou destruir provas.

Para Luiza Oliver, os excessos fundamentados pelo artigo 319 podem ser entendidos como um movimento pendular. "Vivemos um momento muito crítico e perigoso da democracia brasileira. E o Judiciário conseguiu responder a isso. Eu vejo isso muito como um movimento pendular e a tendência é retornarmos a normalidade. Vivemos tempos muito estranhos, como costumava dizer o ministro Marco Aurélio."

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