Opinião

Como enfrentar a balbúrdia no controle de constitucionalidade?

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25 de agosto de 2023, 6h32

O presidente da Câmara Municipal de Belo Horizonte, vereador Gabriel Azevedo (sem partido), promulgou a Lei 11.581, de 18 de agosto de 2023. O ato normativo, oriundo do Projeto de Lei 54/2021, de autoria do então vereador Nikolas Ferreira, estabelece a garantia aos estudantes, da rede pública e privada de ensino da capital mineira, ao aprendizado da Língua Portuguesa e a proibição da utilização ou ensino da linguagem neutra ou não-binária na educação básica. Em poucos artigos, a lei disciplina seu objeto:

"Art. 1º – Fica garantido aos estudantes do Município o direito ao aprendizado da Língua Portuguesa de acordo com as normas legais de ensino estabelecidas com base nas orientações nacionais de Educação, do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa Volp e da gramática elaborada nos termos da reforma ortográfica ratificada pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP.
§ 1º – Fica proibida a utilização e o ensino da linguagem neutra ou não binária na Educação básica, pública e privada, no âmbito do Município.
§ 2º – Para efeito desta lei, entende-se por linguagem neutra ou não binária aquela que descaracteriza, por meio da alteração morfológica das palavras na comunicação oral e escrita, o uso da norma culta da Língua Portuguesa e seu conjunto de padrões linguísticos, tendo por finalidade a não identificação ou a não definição de gênero masculino ou feminino."
"Art. 2º – A violação do disposto nesta lei acarretará sanções administrativas às instituições de ensino público e privado a serem definidas por meio de decreto do Poder Executivo."
"Art. 3° – Esta lei entra em vigor na data de sua publicação."

A promulgação veio após a derrubada da negativa de sanção aposta pelo prefeito Fuad Noman por inconstitucionalidade. Nas razões do veto, o prefeito municipal negou sanção, nos termos do 92, inciso II da Lei Orgânica de Belo Horizonte, integralmente, por inconstitucionalidade formal do tipo orgânica. No veto, acertadamente, o prefeito municipal lembra que a proposição transgride a competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional, conforme o artigo 22, inciso XXIV da CF/88. Ainda, o alcaide bem recorda que o tema já foi objeto de decisão pelo STF, na ADI 7.019/DF, relator ministro Edson Fachin, j. 13/2/2023.

O veto ao artigo 1º foi rejeitado por 30 votos contra 10 contrários. De alguma forma, a proibição de linguagem neutra e não-binária é apropriada como mecanismo de setores conservadores que encontram, nos espaços políticos-locais, a possibilidade de fazerem aquilo que, em esfera nacional, não conseguem. Trata-se de uma bandeira política que tem os mesmos princípios e finalidades do movimento chamado "Escola Sem Partido". Em síntese, é um desdobramento e continuação desse movimento. Tal movimento surgiu em 2004 tendo como principal bandeira o combate ao "uso das escolas e universidades para fins de propaganda ideológica, política e partidária" [1]. Por meio de termo genéricos e vagos como "doutrinação política, ideológica e partidária", esse movimento pretende restringir o conteúdo da liberdade de cátedra, assim como do pluralismo e das concepções pedagógicas.

No caso da chamada "Escola Sem Partido", a primeira ação que aportou ao Supremo Tribunal foi quanto à Lei 7.800, de 5 de maio de 2016, do estado de Alagoas, cuja redação legal dispunha que eram "vedadas, em sala de aula, no âmbito do ensino regular no Estado de Alagoas, a prática de doutrinação política e ideológica, bem como quaisquer outras condutas por parte do corpo docente ou da administração escolar que imponham ou induzam aos alunos opiniões político-partidárias, religiosa ou filosófica". Na decisão da ADI 5.537/AL (relator: ministro Roberto Barroso, j. 24/8/2020) o STF reconheceu diversas inconstitucionalidades do então chamado "Programa Escola Livre".

Quanto aos vícios formais, reconheceu a inconstitucionalidade por violação da competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação. Fazendo um spoiler epistemológico: só esse aspecto da inconstitucionalidade formal já deveria estancar qualquer outra tentativa no sistema nacional se não fosse por nada, para dar eficiência ao direito.

Seguimos. No fundamento, legislar sobre "diretrizes e bases" da educação significa dispor sobre a orientação, as finalidades e os alicerces da educação. Nessa medida, o STF compreende que a liberdade de ensinar e o pluralismo de ideias constituem as diretrizes para a organização da educação imposta pela própria Constituição. Somente a União poderia legislar sobre a liberdade de ensino.

Edilson Rodrigues/Agência Senado
Edilson Rodrigues/Agência Senado

No caso, a Lei 9.394/1996, (Lei de Diretrizes e Bases da Educação LDB) previu que a educação deve se assentar sobre as liberdades de aprender e ensinar, assim como ao pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, como formas de proteger o pluralismo de ideias, exatamente algo atacado pela lei julgada inconstitucional. É que o princípio da neutralidade política e ideológica indicada na lei reveste-se de um mecanismo escamoteador que implica intolerância às diferentes visões de mundo e censura prévia ambas condenadas pela Constituição (artigo 5º, IX e artigo 206, II e III).

No âmbito da inconstitucionalidade material, a corte reconheceu que a lei atenta contra a perspectiva do direito à educação adotado pela Constituição. A partir da interpretação dos artigos 205, 206 e 214, inciso V da CF/88, o direito à educação assume uma função emancipadora para habilitar os indivíduos aos mais diversos âmbitos da vida do ser humano. Como forma de alcançar tal finalidade, as diretrizes constitucionalmente estabelecidas para tal ensino determinam a liberdade de aprender e o pluralismo de ideias e concepções pedagógicas (artigo 206, inciso II e III da CF/88). A liberdade acadêmica ou de cátedra é o núcleo a partir do qual se define o direito à educação dos alunos que, expostos a maiores cosmovisões e conteúdos distintos, possibilitam o desenvolvimento de um pensamento crítico e emancipado.

Dessa forma, o STF bem compreendeu que um ensino emancipador e plural é condição para a instituição de um Estado democrático de Direito. A lei do município de Belo Horizonte pretende esconder seu próprio caráter ideológico-conservador e agressor do ensino plural e da liberdade de cátedra ao anunciar que constitui "direito dos estudantes o aprendizado da língua portuguesa com base na orientação nacional e no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa". Busca escamotear uma ofensa à Constituição com o anúncio de um "pseudo" direito dos estudantes.

Apenas a título exemplificativo, imagine se tal direito de fato existisse. Certamente, se teria o absurdo de que uma das maiores obras da literatura nacional como Grande Sertão, Vereda , de Guimarães Rosa, jamais poderia ser ensinada por professores de língua portuguesa. É que, como um inventor de palavras, muitas delas não contam ou contavam em qualquer vocabulário. Ora, na verdade, sob um argumento de um "pseudo" direito a determinada forma de ensino e aprendizado da língua portuguesa, o que esses setores pretendem é impedir o livre desenvolvimento dessa rica e complexa língua.

Vale anotar que não há, em nenhum projeto pedagógico pelo país, a proposição da substituição do padrão binário pelo não-binário ou do padrão culto pelo vernáculo "vulgar". De outro lado, no entanto, é preciso ter em mente que a língua é viva e vivida de formas que, normalmente, não se cingem às regras. O que docentes de língua portuguesa fazem e precisam fazer é discutir em sala de aula estes outros usos – como as corruptelas surgidas na linguagem da internet, em que "você" é "vc" e tantas outras que fazem parte do "horizonte hermenêutico" de novas gerações que foram criadas na realidade das redes sociais virtuais. Ora, se a escola não discutir isso ela não alcançará estes jovens e ficará cada vez mais obsoleta. A linguagem neutra é só mais um destes usos informais que existem e não é a proibição da lei que fará com que desapareça.

Ainda, será mesmo que este pseudoproblema é realmente a prioridade quando se pensa no dever do Estado com a qualidade da educação? Será que as escolas públicas de Belo Horizonte apresentam um tal padrão de excelência que se possa gastar tempo e dinheiro dos contribuintes para que a Câmara de Vereadores discuta isso?

A proibição da utilização de linguagem neutra ou não-binária revela, para além de uma proteção a determinada forma da língua portuguesa, uma violação à diversidade e à pluralidade linguística inerente à comunicação e à vida e, ainda mais específico, à diversidade de gênero e de orientação sexual. Mais do que a tentativa definir um modo para o ensino da língua portuguesa, no fundo a real pretensão é o apagamento da existência da pluralidade de gênero ou orientação sexual. Assim, o que se tem é uma violação frontal à igualdade e à isonomia das minorias sexuais.

Mesmo antes do caso da "Escola Sem Partido", o Supremo Tribunal teve a oportunidade de julgar inconstitucional dispositivo da lei orgânica do município de Foz do Iguaçu acrescido por emenda que proibia a aplicação da chamada "ideologia de gênero, do termo gênero ou orientação sexual" nas instituições da rede municipal de ensino. A decisão da ADPF 526/PR entendeu que houve invasão da competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional, assim como afrontou o princípio da isonomia, o direito fundamental à liberdade de cátedra e à garantia do pluralismo de ideias.

De igual forma, com os mesmos fundamentos, mas salientando normas internacionais que proíbem qualquer discriminação, a ADPF 467 julgou inconstitucionais artigos de lei municipal de Ipatinga (MG) que excluíam da política municipal de ensino qualquer referência à diversidade de gênero ou orientação sexual.

As diversões decisões acima mencionadas nos permitem ver a dimensão ou interpretação que o STF confere à distribuição de competências normativas sobre educação, ao próprio conteúdo plural do direito à educação e à liberdade de ensino e aprendizado. A vigência de leis estaduais ou municipais que contrariam o entendimento do STF é uma forma de afronta à autoridade da corte e um mecanismo que se aproveita de uma balbúrdia do sistema de controle de constitucionalidade. Sobre a proibição de linguagem neutra, a Suprema Corte julgou inconstitucional, em data recente, lei de Rondônia que, da mesma forma que a lei municipal de BH, garantia aos estudantes da rede estadual o direito ao aprendizado de acordo com as normas cultas e orientações legais nacionais da educação, pelo Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, proibindo a utilização da linguagem neutra na grade curricular e no material didático das instituições de ensino privado e público do Estado (artigos 1º e 3º da Lei º 5.123, de 19 de outubro de 2021). Disse o acórdão: "Norma estadual que, a pretexto de proteger os estudantes, proíbe modalidade de uso da língua portuguesa viola a competência legislativa da União".

Não obstante referido julgamento, a Câmara Municipal de Belo Horizonte, assim como outros estados e municípios, ainda mantém em vigor leis que proíbem a utilização da linguagem neutra ou não-binária.[2]

E aí vem o ponto. Tal afronta à autoridade do STF decorre da não extensão ou da não vinculação de uma decisão ao poder legislativo, assim como a impossibilidade de se utilizar reclamação constitucional contra leis de conteúdo semelhante às anteriormente já declaradas inconstitucional pelo STF nas ações de controle concentrado de constitucionalidade [3]. É sabido que a consequência processual mais importante que distingue as ações de controle concentrado das ações de controle difuso é o cabimento da reclamação constitucional (artigo 988, inciso III do CPC).

Na Reclamação 13.019/DF, o STF enfrentou diretamente a possibilidade de conhecer de reclamação contra lei de conteúdo idêntico à anterior declarada inconstitucional. Nessa linha, o acórdão rechaçou essa possibilidade tanto sob o aspecto do efeito vinculante quanto da eficácia contra todos.

No entanto, a instituição de novos mecanismos processuais ou o reforço da chamada abstrativização do controle difuso desde, ao menos, a reforma do Judiciário pela Emenda Constitucional 45/2004, trouxeram uma incoerência grave ao sistema de controle de constitucionalidade. É que o STF tem entendido que cabe reclamação, após o esgotamento das instâncias ordinárias, para o controle das teses fixadas em regime de repercussão geral [4].

Dessa forma, uma decisão proferida em regime de repercussão geral pode ser mais abrangente do que uma decisão proferida em ações de controle concentrado, uma vez que o tema extraído for, por exemplo, "nenhum Estado ou município poderá fazer X", essa "tese" teria uma abrangência ou possibilidade de abstração maior do que uma ADI contra leis que fazem a mesma coisa. Esse é o caso da proibição da linguagem neutra. Como se tratou de uma ADI contra lei estadual de determinada unidade da federação, as demais entidades federativas se sentem à vontade para continuar promulgando leis que têm o mesmo conteúdo.

Assim, as leis só mantêm sua vigência por essa grave incoerência do sistema processual. Admitir o cabimento da reclamação nessa hipótese poderia promover uma eficiência processual-constitucional e servir de desestímulo às casas legislativas que ainda teimam em afrontar a autoridade do Supremo Tribunal e editar leis que, de uma forma ou de outra, será fulminada pela inconstitucionalidade. Vale salientar que todas as leis que falam sobre "ideologia de gênero", "escola sem partido" ou "vedação à linguagem não-binária" advêm de um mesmo movimento orquestrado que possui modelos de projetos de lei, o que faz com que todas as leis, estaduais e municipais, sobre tais temas sejam virtualmente (ou mesmo literalmente) idênticas.

Supondo que, então, 1.000  dos mais de 5.000  municípios brasileiros aprovem leis assim, então o STF poderá ser chamado a ter que proferir 1.000 decisões falando exatamente a mesma coisa? Da forma como está posto hoje o controle concentrado de constitucionalidade a resposta é sim, e isso não faz o menor sentido. É uma balbúrdia.

 


[1] COÊLHO, Marcus Vinicius Furtado. O STF e a inconstitucionalidade do "Escola Sem Partido". ConJur, 20 de junho de 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-jun-20/constituicao-stf-inconstitucionalidade-escola-partido#_ftn2, acesso em 20 de agosto de 2023.

[3] Nesse sentido, ver: STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 725-726.

[4] Por exemplo: STF, 2ª Turma, Rcl 37492 AgR, rel. Edson Fachin, julgado em 22/5/2020.

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