A nova constituição

O STF e a inconstitucionalidade do "Escola Sem Partido"

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20 de junho de 2021, 8h01

O patrono da educação brasileira, Paulo Freire, em suas lições sobre emancipação e liberdade no contexto do ensino e aprendizado há muito já traçava uma imprescindível distinção: falava ele de uma "educação' para a 'domesticação', para a alienação, e uma educação para a liberdade; 'educação' para o homem-objeto ou educação para o homem-sujeito" [1].

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Em notável convergência com os ensinamentos de Paulo Freire, a Constituição Federal de 1988, em diversos dispositivos, assegura uma educação capaz de promover o pleno desenvolvimento da pessoa, a capacitação dos sujeitos para a cidadania e sua plena qualificação para o mercado de trabalho. Contudo, a partir do ano de 2003, passaram a ganhar força concepções de ensino em que a chamada "ideologia" é tida como um grande defeito a ser combatido, devendo o ensino ser ministrado com "neutralidade".

Surge assim o movimento Escola Sem Partido, que teve seu programa elaborado no ano de 2004, sendo seu foco principal o combate ao "uso das escolas e universidades para fins de propaganda ideológica, política e partidária" [2]. As ideias desse movimento subsidiaram a redação de diversos projetos de lei, em âmbito estadual e municipal. Segundo o mapa que registra projetos do "Escola Sem Partido" no país, em 2017, verificavam-se proposições legislativas em 15 entes da federação e 66 municípios, dentre 22 estados, de todas as regiões do Brasil [3].

O Alagoas foi o primeiro estado do Brasil a aprovar uma lei com base nos ideais desse movimento: a Lei nº 7.800/2016, proposta por um deputado estadual. Essa lei foi vetada pelo governador sob a alegação de vício de iniciativa e por inconstitucionalidade, contudo, posteriormente, a Assembleia Legislativa rejeitou o veto. Ao ensejo, foram propostas três Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.537 [4], ADI nº 5.580 e ADI nº 6.038 [5][6]  contra a referida lei, que fundou, no sistema educacional do estado de Alagoas, o programa Escola Livre.

A lei alagoana dispunha que a "neutralidade política, ideológica" [7], assim como o "direito dos pais a que seus filhos menores recebam a educação moral livre de doutrinação política, religiosa ou ideológica", seriam alguns dos princípios sobre os quais o sistema estadual de ensino deveria se fundar. Além disso, previa que "salvo nas escolas confessionais, [o professor] deverá abster-se de introduzir, em disciplina ou atividade obrigatória, conteúdos que possam estar em conflito com os princípios desta lei" [8].

Além de pressupor demasiada vulnerabilidade ao educando, colocando-o "como parte mais fraca na relação de aprendizado", vedou-se que professores e a administração escolar "imponham ou induzam aos alunos opiniões político-partidárias, religiosas ou filosóficas". De mais a mais, atribuiu-se à Secretaria Estadual de Educação a realização de cursos de ética do magistério voltados para professores da rede pública, a fim de "conscientizar os educadores, os estudantes e seus pais ou responsáveis, sobre os limites éticos e jurídicos da atividade docente, especialmente no que se refere aos princípios referidos" [9].

A Constituição brasileira consagra a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar [10], bem como o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, como princípios básicos para a ministração do ensino no Brasil. Portanto, pela simples leitura dos mencionados dispositivos da Lei nº 7.800/2016, é possível perceber que o seu conteúdo restringe a liberdade de ensino prevista no texto constitucional, pois além de colocar os estudantes numa posição passiva e acrítica, veda a discussão de simples tópicos da vida social como a política, religião e a própria filosofia.

As mencionadas ações de controle de constitucionalidade impugnaram a lei alagoana sob diferentes perspectivas: sob o aspecto formal, foi alegada violação da competência privativa da União para dispor sobre diretrizes e bases da educação, configurando-se vício de iniciativa legislativa [11]; já sob o aspecto material, sustentou-se ofensa à dignidade da pessoa humana, aos valores sociais do trabalho, ao pluralismo político, à sociedade livre, justa e solidária, ao direito à livre manifestação de pensamento e da atividade intelectual, bem como ao preparo para o exercício da cidadania, à liberdade de ensinar e aprender, ao pluralismo de ideias e concepções pedagógicas, a valorização dos profissionais da educação escolar, a gestão democrática do ensino público, o padrão da qualidade social do ensino e a autonomia didático-científica das universidades [12].

A Associação Escola Sem Partido (ESP) foi admitida no feito como amicus curiae e, nessa oportunidade, informou que a associação se originou no ano de 2015 como uma reação à "doutrinação e a propaganda política, ideológica e partidária nas salas de aula e nos livros didáticos; e a usurpação  pelo governo, pelas escolas e pelos professores  do direito dos pais dos alunos sobre a educação religiosa e moral dos seus filhos" [13].

Sob outra perspectiva, no bojo de suas razões apresentadas nos autos, a associação argumenta que seu "fim último" é fazer ser respeitado o artigo 12, inciso IV da Convenção Americana sobre Direitos Humanos  segundo o qual "os pais e, quando for o caso, os tutores, têm direito a que seus filhos e pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções". De acordo com o deputado Estadual autor da lei, se houver a possibilidade do professor aproveitar de sua audiência para cativar e promover em sala de aula suas próprias concepções políticas, ideológicas e morais, a liberdade de consciência e de aprendizado restarão violadas [14].

Diante disso é possível vislumbrar, com maior facilidade, os interesses postos em conflito: de um lado, a liberdade de cátedra e a pluralidade do ensino e; de outro, a liberdade de aprendizado com base na delimitação do conteúdo a ser ministrado e pelo respeito ao direito dos pais de educar conforme suas próprias convicções.

A lei impugnada, embasada no movimento Escola Sem Partido, faz uso de termos muito vagos e genéricos, por exemplo: "educação moral livre de doutrinação política, religiosa e ideológica" [15]; "condutas (…) que imponham ou induzam nos alunos opiniões político-partidárias, religiosas ou filosóficas" [16]; "propaganda religiosa, ideológica ou político-partidária" [17]. Todavia, a que se refere o termo "ideologia"? Quais os critérios para se definir a existência, no caso concreto, de "doutrinação"? Quem e como definir-se-iam quais conteúdos são ideológicos e quais não são? O que caracteriza uma propaganda religiosa ou ideológica?


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O alto nível de abrangência e indeterminação dos termos e as vedações genéricas do programa Escola Livre, instituído pela lei, geram riscos consideráveis para a "aplicação seletiva e parcial das normas (chilling effect), por meio da qual será possível imputar todo tipo de infrações aos professores que não partilhem da visão dominante em uma determinada escola ou que sejam menos simpáticos à sua direção". O que a história  social e constitucional  tem nos mostrado, é que as vedações genéricas às "ideologias" e "doutrinações políticas" são apenas formas de restringir, de maneira desarrazoada, a liberdade de comunicação do conhecimento no exercício do magistério.

 

Em robusta manifestação, a Procuradoria-Geral da República acertadamente assevera que a atividade de ensino não é via de mão única, a rotina em sala de aula é essencialmente dialógica, havendo espaço para os mais diferentes e variados tipos de dúvidas e inquietudes, muitas vezes até no nível pessoal ou envolvendo as temáticas de religião e política, para as quais não há respostas necessariamente fechadas ou definitivas. Para o Ministério Público, "a Constituição de 1988 adota, explicitamente, a concepção de educação como preparação para o exercício de cidadania, respeito a diversidade e convívio em sociedade plural, com múltiplas expressões religiosas, políticas, culturais e étnicas" [18].

Conforme os ensinamentos do professor Marcos Augusto Maliska, em sua obra "O Direito à Educação e a Constituição", o papel da família "pode ser compreendido como o direito prioritário dos pais de escolher o gênero de educação a dar a seus filhos e como o dever, propriamente, de assegurar a educação a eles (…) assim como um dever jurídico que se fundamenta na exigência que a Constituição faz aos pais de educar seus filhos" [19].

É fato que os pais e responsáveis, na posição de guardiões, significam pedras angulares no processo de educação, entretanto, não lhes cabe versar, no que tange à conveniência individual, sobre o ensino de determinados conteúdos e valores. Em outras palavras, os pais não podem impor à escola que não ministre determinado matéria com a qual não estão de acordo, não podem limitar o "universo informacional" de seus filhos. Nessa toada, veja-se que os objetivos de uma educação democrática, no plano internacional, estão dispostos no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (promulgado pelo Decreto 591/1992) da seguinte forma:

"Artigo 13º, 1  Os Estados partes do presente pacto reconhecem o direito de toda pessoa à educação. Concordam em que a educação deverá visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais. Concordam ainda em que a educação deverá capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz".

O Supremo Tribunal Federal decidiu pela inconstitucionalidade da Lei nº 7.800/2016 do Estado de Alagoas, tanto por reconhecer a existência dos vícios formais alegados, quanto por "violação do direito à educação com o alcance pleno e emancipatório que lhe confere a Constituição".

O Supremo Tribunal frisou, no julgamento, que a Constituição assegura, uma educação emancipadora, que habilite a pessoa para os mais diversos âmbitos da vida, como ser humano, como cidadão, como profissional. Com tal propósito, define as diretrizes que devem ser observadas pelo ensino, a fim de que tal objetivo seja alcançado, dentre elas a 1) liberdade de aprender e de ensinar; 2) o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; 3) a valorização dos profissionais da educação escolar.

A Corte também firmou que a ideia de neutralidade política e ideológica pretendida pela lei estadual é antagônica à de proteção ao pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas e à promoção da tolerância, tal como previstas na Lei de Diretrizes e Bases. Asseverou o relator que:

A imposição da neutralidade  se fosse verdadeiramente possível  impediria a afirmação de diferentes ideias e concepções políticas ou ideológicas sobre um mesmo fenômeno em sala de aula. A exigência de neutralidade política e ideológica implica, ademais, a "não tolerância de diferentes visões de mundo, ideologias e perspectivas políticas em sala" (Grifos no original).

A propósito, o ministro Roberto Barroso, relator do caso, ponderou ainda que a própria concepção que inspira a ideia da "Escola Livre"  contemplada na Lei 7800/2016  parte de preferências políticas e ideológicas [20].

Desde a primeira Constituição do Brasil, em 1824, o direito à educação era previsto, porém, àquela época, a incumbência de ensinar cabia sobretudo à família e à igreja. A Constituição de 1891 foi a responsável pela separação entre igreja e Estado, determinando laicidade aos estabelecimentos oficiais de ensino. Em contínua evolução, foi na Carta Magna de 1934 que o Estado brasileiro previu pela primeira vez a liberdade acadêmica, que permaneceu nas Constituições posteriores [21]. Sob essa perspectiva, salta aos olhos que desde a primeira Constituição do Brasil, percebe-se uma ampliação à liberdade de ensinar, sendo essa uma das garantias da democracia.

A Suprema Corte firmou que a liberdade de ensinar é um mecanismo essencial para provocar o aluno e estimulá-lo a produzir seus próprios pontos de vista. "Só pode ensinar a liberdade quem dispõe de liberdade. Só pode provocar o pensamento crítico, quem pode igualmente proferir um pensamento crítico. Para que a educação seja um instrumento de emancipação, é preciso ampliar o universo informacional e cultural do aluno, e não reduzi-lo, com a supressão de conteúdos políticos ou filosóficos, a pretexto de ser o estudante um ser 'vulnerável'. O excesso de proteção não emancipa, o excesso de proteção infantiliza".

Por fim, o STF concluiu que a lei impugnada violou o princípio da proporcionalidade, na vertente adequação, uma vez que "não constitui instrumento apto à obtenção do fim que alega perseguir". Isso porque, a lei, pela vagueza e abrangência de suas disposições, a pretexto de assegurar uma educação "neutra" e livre de "ideologias e doutrinação", pode acabar servindo ao exato oposto: a imposição ideológica e a perseguição dos que dela divergem.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Um dia depois de o Supremo Tribunal Federal declarar a inconstitucinalidade da lei do estado de Alagoas, inspirada no movimento Escola Sem partido, Miguel Nagib, o fundador do programa, anunciou o fim de sua participação no movimento ESP [22].

 

O debate acerca da Escola Livre ainda segue no STF, mas agora em sede de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 578/PR  relator o ministro Luiz Fux , para impugnar a Lei Complementar nº 9/2014, do município de Santa Cruz de Monte Castelo  Paraná, que cria, no âmbito do sistema educional municipal, o "Programa Escola Sem Partido". O caso ainda aguarda julgamento pela Corte.

A decisão do Supremo Tribunal nas ações aqui mencionadas é magistral e pedagógica na demarcação constitucional do papel emancipatório da educação. Esta serve ao desenvolvimento do pensamento crítico, da participação cidadã, do pluralismo de ideias e do respeito e tolerância ao diferente, seja às religiões, às posições políticas e partidárias ou às convicções filosóficas e morais. A educação, na dicção dos tratados internacionais, deve visar ao "pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais".

O ambiente escolar deve ser, por natureza, aberto ao debate e à pluralidade de ideias, de sorte a estimular os estudantes ao pensamento crítico e à formulação de suas próprias preferências políticas, ideológicas e filosóficas com autonomia. A suposta neutralidade pretendida pelo Movimento Escola Sem Partido é ilusória e serve, perigosamente, à perseguição dos pensamentos dissonantes e à censura  práticas características de regimes autoritários e colidentes, por conseguinte, com o Estado Democrático de Direito.


[1] FREIRE, Paulo. Educação Como Prática da Liberdade. Ed. Paz e Terra LTDA. Av. Rio Branco, Rio de Janeiro. 1967. Pág. 36.

[4] Proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimento de Ensino – CONTEE.

[5] Proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação – CNTE.

[6] Proposta pelo Partido Democrático Trabalhista – PDT.

[8] Lei nº 7.800/2016 – AL. Incs. I, V e VII do artigo 1º e Inc. V do artigo 3º.

[9] Ibid. Inc. V do artigo 1º, Caput do artigo 2º e artigo 5º.

[10] artigo 206, incisos II e III.

[11] CF. Inc. XXIV do artigo 22; inc. IX do artigo 24 e; als."b" e "c" do §1º do artigo 61.

[12] CF. Incs. III, IV e V do artigo 1º; Inc. I do artigo 3º; Incs. IV e IX do artigo 5º; Inc. XXIV do artigo 22; Inc. IX do artigo 24; Als. b e c do inc. II do artigo 61; artigo 205; Incs. II, IV, V, VI e VII do artigo 206 e; artigo 207.

[14] ALE. Justificativas do autor do Projeto de Lei nº 69/2015 do Estado de Alagoas. Disponível em: <https://sapl.al.al.leg.br/media/sapl/public/materialegislativa/2015/64/64_texto_integral.pdf>

[15] Lei nº 7.800/2016. Inc. VII do artigo 1º.

[16] Lei nº 7.800/2016. artigo 2º.

[17] Lei nº 7.800/2016. Inc. III do artigo 3º.

[18] STF. Parecer da PGR nos autos da ADI nº 5.537/AL.

[19] MALISKA, Marcos Augusto. O Direito à Educação e a Constituição. 2001. Imprenta: Porto Alegre, S.A, pág. 159.

[20] STF. ADI nº 5.537/AL. Rel. Min. Roberto Barroso. Dje: 22/08/2020. Acórdão, pág. 26.

[21] TEIXEIRA, Maria Cristina. O direito à educação nas Constituições Brasileiras. 2008. Disponível em: <https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/RFD/article/viewFile/464/460>. P. 155-157.

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