Opinião

Reformas processuais e a advocacia: o caso da relevância da questão federal

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19 de agosto de 2023, 6h06

Em 1968, o Ato Institucional nº 5 extinguiu o Habeas Corpus para os acusados de crimes políticos [1]. Isso, porém, não impediu os advogados de continuarem utilizando a medida sob esse nome ou simplesmente sob o de "petição", para com isso obter um efeito colateral: o de localizar perseguidos pela ditadura. Explica-se: ainda que a ordem fosse denegada com fundamento no AI-5, muitas vezes a impetração obrigava o Estado a admitir que, de fato, mantinha o paciente preso. Ainda além, o conhecimento sobre a localização do preso, uma vez obtida por meio desse uso "desvirtuado" [2] do writ, não raro funcionava também para inibir sua tortura e/ou seu assassinato [3].

Do ponto de vista do direito oficial, essas impetrações manifestamente inadmissíveis poderiam até ser tachadas de abuso do direito de petição. Mas os advogados não são — ou não são apenas — meros aplicadores do direito vigente: são defensores de seus clientes conforme um direito cuja plasticidade não é uma prerrogativa jurisdicional.

Como aponta José Roberto de Castro Neves, direito e advocacia são coisas distintas. O propósito do advogado não é preponderantemente o de recorrer a silogismos jurídicos, mas "proteger os interesses de quem solicitou sua ajuda" [4]. O direito é a matéria prima de seu ofício. Quando o direito muda, o advogado se adapta, e não exatamente para divisá-lo imparcialmente, mas para defender os interesses de seu cliente em um novo tabuleiro, com novas possibilidades estratégicas.

Absolutamente não se está, aqui, a promover posturas contra legem ou de chicana. Em verdade, e este é um truísmo por vezes ocultado, o que se está a falar é que o advogado navega com maior desenvoltura nos limites de significações normativas possíveis. É quem primeiro propõe teses que poderão vir a converter-se em jurisprudência. Decerto, nem toda nova ideia merecerá chancela judicial, mas isso não desmerece — antes, enche de ainda maior beleza — a advocacia, criativa por essência. A premissa que ora se estabelece é, pois, de demonstração aritmética: se em processos em geral há ao menos duas partes, é impossível que ambas estejam inteiramente certas, o que não impede os advogados em juízo de defender com igual obstinação seus constituintes.

Nesse contexto, as reformas processuais têm especial capacidade de alterar a forma como os advogados trabalham e até como o mercado da advocacia se organiza. No artigo How changes in the legal profession reflect changes in civil procedure, Jonathan Molot argumenta que o trabalho dos advogados nos Estados Unidos se alterou substancialmente depois da instituição das Federal Rules of Civil Procedure, em 1938, e de suas modificações posteriores.

As Federal Rules permitiram a livre cumulação de pedidos e até mesmo a alteração dos pedidos após a fase de discovery. A reforma de 1970, além do mais, eliminou o requisito da "justa causa" para as requisições de documentos da parte contrária. Isso, na avaliação de Molot, criou um incentivo para pedidos iniciais com "teorias abertas", produções de prova documental extensas, trabalhosas e caras — e, para finalizar, a possibilidade de mutação do pedido, a depender do que fosse encontrado nos documentos [5]. O resultado é que litigar se tornou caro e incerto. Um percentual cada vez maior dos casos, por isso, passou a resultar em acordo antes do julgamento [6] e isso alterou o que os advogados de contencioso fazem [7].

É que a advocacia é uma atividade substancialmente preditiva [8]. Se há perspectiva de que o caso vá ser julgado por um juiz, não é estratégico que o advogado lance mão, cegamente, de quaisquer argumentos que possa encontrar em favor de seu cliente. O racional é que use aqueles argumentos que o juiz razoavelmente poderia aceitar, mesmo que não sejam os que o advogado consideraria mais adequados segundo suas próprias concepções dogmáticas [9].

De outro lado, se a perspectiva é de que não haverá a decisão judicial, a atividade de encontrar os argumentos jurídicos que um juiz razoavelmente aceitaria se torna secundária. Os acordos refletem não apenas a decisão judicial provável, mas os custos de continuar litigando. A atividade cotidiana de um advogado de contencioso nos Estados Unidos se tornou, assim, não somente a de convencer juízes, mas também a de tentar criar incerteza e custos para a parte contrária, com o fim de aumentar o poder de barganha em um futuro acordo [10]. Nos Estados Unidos, a habilidade de negociação e de avançar posições na dinâmica do acordo é mais esperada do advogado médio que a de conduzir um julgamento [11].

Esse contexto de prática profissional, é claro, afeta as habilidades desenvolvidas pelos advogados. Muito desse conhecimento é tácito (um know-how sem um know-why [12]), desenvolvido por tentativa e erro e pelo compartilhamento de experiências com outros profissionais. "Uma coisa é saber quais são as condições da ação e os pressupostos processuais", observa Alexandre Araújo Costa, "coisa diversa é saber escolher em que ordem serão feitos os pedidos alternativos ou saber quando é adequado optar por uma ação cautelar preparatória" [13].

Das táticas de enfrentamento de regimes autoritários à adaptação da prática jurídica a um "desaparecimento dos julgamentos" nos EUA, o sistema processual delimita o terreno em que os advogados exercem sua profissão; define os instrumentos de que dispõem e até mesmo as habilidades que precisam ter.

No Brasil não há de ser muito diferente. Ilustra a afirmação o fato de que a remessa recursal para os tribunais superiores tem apresentado nítida tendência de queda desde 2015, conforme aponta o Relatório Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça [14]. É possível vislumbrar algumas hipóteses. Uma delas, o funcionamento do sistema de precedentes. Outra, igualmente plausível, é de que o decréscimo possa ser resultado de uma intuição [15], por parte dos advogados, de que há um "fechamento" do acesso à corte, que reduziria sensivelmente os potenciais benefícios capazes de justificar os custos da opção pela via recursal. Ou ainda: se essa segunda hipótese for falseável, não exclui ela a possibilidade futura de que aquele efeito se verifique concretamente, notadamente com a sobrevinda da relevância da questão federal.

A propósito, com a aprovação da Emenda Constitucional nº 125, que instituiu a relevância da questão federal como requisito de admissibilidade do recurso especial, outra possível tendência [16] é que, após a regulamentação legal da emenda, a possibilidade de reversão de julgados das instâncias ordinárias pelo STJ se reduza ainda mais — e isso traz consigo algumas outras consequências táticas imediatas.

A primeira, já apontada por José Miguel Garcia Medina em entrevista à esta ConJur [17], é a intensificação do fórum shopping. É falar, se divergências "não-relevantes" passam a ser toleradas pelo sistema de justiça, então as partes poderão utilizar as regras que preveem foros concorrentes para escolher, entre as interpretações "regionais" da lei federal, aquela que lhes for mais favorável.

Outra consequência imediata é a atribuição de valor à causa e sua impugnação diante da hipótese de presunção do art. 102, § 3º, III, da CF/88 [18] — tanto para facilitar a apreciação pelo STJ quanto para dificultá-la, a depender das previsões sobre as consequências da intervenção daquele tribunal. As partes deverão considerar que, além dos riscos sucumbenciais e de antecipação de despesas, o valor da causa poderá determinar o órgão jurisdicional com palavra final sobre as questões de direito discutidas.

Mas há consequências mais profundas na redução do acesso ao STJ. Se menos temas serão julgados, a tendência, paradoxalmente, é a de que o entendimento daquele tribunal possa, sob certo prisma, reduzir seu espaço nas previsões estratégicas e na seleção de argumentos pelos advogados. Dito de outro modo, quanto a temas a respeito dos quais não se anteveja a relevância da questão federal, a noção de profundidade recursal, ao menos sob o prisma infraconstitucional, terá no segundo grau seu ponto futuro. Em verdade, esse fenômeno de um backlash sistêmico a partir de opções institucionais de redesenho da agenda decisória por parte do STJ já tem em alguma medida sido observado à luz de sua impermeabilidade à fiscalização de seus próprios precedentes [19], tendo ganhado repercussão resistência por parte de tribunais a alguns entendimentos daquela Corte Superior [20].

Se é um dado que o poder não há de deixar vácuos, ganha cada vez maior importância a perspectiva dos tribunais de segundo grau e, por consequência, os advogados se tornam mais efetivos se desenvolvem competências capazes de influenciá-los. Isto é, fatos e provas, renegados pela via recursal extraordinária, ganham definitivamente o primeiro plano.

De um ponto-de-vista realista, a atuação voltada para a construção de narrativas fáticas se torna efetiva não apenas porque os tribunais locais podem decidir sobre a ocorrência de fatos que constituem o suporte da incidência de normas jurídicas, mas porque juízes que apreciam os casos de forma ampla — ao contrário dos tribunais superiores, que os apreciam na forma de questões delimitadas e pontuais — estão mais sujeitos ao fenômeno que LoPucki chama de "realismo do caso completo" (whole-case realism). É dizer: como indivíduos em geral tendem a atribuir coerência mesmo ao que não tem coerência, os juízes que apreciam os casos de forma mais abrangente tendem a conformá-los, como um todo, a seus modelos mentais de como deve ser o direito [21]. Assim, as soluções dadas às questões se influenciam umas às outras. Mostrar que uma testemunha está mentindo pode, por exemplo, afetar a solução de uma questão de direito aparentemente desvinculada do depoimento.

Um famoso estudo de Elizabeth Loftus e John C. Palmer [22] evidenciou empiricamente que, a depender da escolha dos termos utilizados na formulação de uma pergunta para pedir a uma testemunha que estime a velocidade de um veículo visto em um mesmo vídeo ("a que velocidade estava o veículo quando esmagou/colidiu/entrou em contato/bateu no outro?"), as estimativas variam enormemente. Diante de dados como esse, como o advogado deve, estrategicamente, formular suas inquirições — sem explicitamente induzir a testemunha? Como deve apresentar visualmente suas teses? Como deve estruturar suas peças processuais? Como deverá ser sua sustentação oral? E suas audiências pessoais com magistrados? Enfim, o domínio dessas técnicas pode ser tão ou mais importante que tentativas de se contornar o enunciado 7 da Súmula do STJ…

 


[1] Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968. "Art. 10 – Fica suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular”".

[2] Uso desvirtuado no sentido de uso destoante da razão subjacente da norma que institui o habeas corpus, que é a de tutelar a liberdade de locomoção. Cf. MELLO, João Pedro de Souza. Como se vence um processo. Londrina: Thoth, 2023, p. 66.

[3] SPIELER, Paula. QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo (coord.). Advocacia em tempos difíceis: ditadura militar 1964-1985. Curitiba: Edição do Autor, 2013, p. 40-46.

[4] NEVES, José Roberto de Castro. Como os advogados salvaram o mundo. ed. 3. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2020, p. 25.

[5] MOLOT, Jonathan. How changes in the legal profession reflect changes in civil procedure. Virginia Law Review, v. 84, n. 6, p 955-1051, 1998, p. 985-988.

[6] Fenômeno bem descrito em artigo clássico de Marc Galanter. Cf. GALANTER, Marc. The vanishing trial: an examination of trials and related matters in Federal and State Courts. Journal of Empirical Legal Studies, v. 1, n. 3, p. 459-570, 2004.

[7] A esse propósito, Rafael Pitta discute as críticas e as defesas do modelo das Federal Rules, sem deixar de admitir que, para o bem o para o mau, elas significaram uma "mudança de concepção da atividade advocatícia" (cf. PITTA, Rafael Gomiero. Discovery e outros instrumentos processuais do common law. Londrina: Thoth, 2021, p. 37-38).

[8] Esse é o corolário que Jonathan Molot (A market in litigation risk. University of Chicago Law Review. v. 7, 2009, p. 368) deu à máxima de Oliver Wendell Holmes Jr. segundo a qual o direito nada mais é que o conjunto das profecias sobre aquilo que farão os tribunais (HOLMES JR., Oliver Wendell. The path of the law. Harvard Law Review, v. 110, n. 5, p. 991-1009, 1997. p. 991).

[9] MOLOT, Jonathan. How changes in the legal profession reflect changes in civil procedure. p. 968-972. Sobre a diferença entre o saber dogmático e o discurso estratégico dos advogados, cf. ARAÚJO COSTA, Alexandre. Curso de metodologia de pesquisa em direito. v. 1. Brasília, 2023, p. 91 e ss.

[10] MOLOT, Jonathan. Op. Cit. 995.

[11] Hadfield observa que um efeito colateral desse contexto é elevar a barreira de entrada para um advogado acumular experiência como "trial lawyer", já que os trials são poucos, e consequentemente valorizar os honorários dos advogados que possuem essa experiência (cf. HADFIELD, Gillian K. The price of law: how the market for lawyers distorts the justice system. Michigan Law Review, v. 98, n. 4, p. 953-1006, 2000, p. 985 e ss.

[12] Sobre o conhecimento tácito, cf. POLANYI, Michael. Personal knowledge – towards a post-critical philosophy. Londres: Routledge, 2005, p. 51 e ss.

[13] ARAÚJO COSTA, Alexandre. Op. Cit. p. 91.

[14] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em números 2022. Brasília: CNJ, 2022, p. 162.

[15] A atuação dos advogados é, geralmente, muito pautada por modelos mentais compartilhados. Cf. LOPUCKI, Lynn. Legal culture, legal strategy, and the law in lawyer's heads. Northwestern University Law Review, v. 90, p. 1498 e ss., 1996.

[16] É claro que o sistema brasileiro de precedentes pode reduzir o quantitativo absoluto de recursos alçados ao STJ sem reduzir o potencial de reforma de decisões (a afetação de um tema pode ter o condão de impedir subida de recursos, mas seus efeitos podem alcançar diversas decisões contra as quais interpostos os recursos sobrestados). Lado outro, no que toca à relevância da questão federal, o raciocínio é puramente silogístico: se o propósito declarado da relevância é, em termos de gestão, o de reduzir os próprios temas que chegam ao tribunal, logo, há tendência numérica de redução de reformas de decisões, porque o que se impede de subir não são (apenas) recursos, mas temas propriamente ditos.

[18] “Para concluir, é de se supor que os litigantes passem a adaptar suas estratégias para transpor os obstáculos para acesso ao STJ. Nas causas de valor inestimável, em que o valor da causa é fixado aleatoriamente em R$ 10 ou R$ 100 mil apenas "para efeitos fiscais", prefira-se, a partir de agora, montante superior a quinhentos salários-mínimos, de modo a atrair a hipótese de relevância presumida do inciso III do artigo 105, §3º.". SICA, Heitor Vitor Mendonça. Breves notas sobre o filtro de relevância do recurso especial. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2022-jul-18/heitor-sica-filtro-relevancia-recurso-especial>. Acesso em 10 de agosto de 2023.

[19] STJ. Rcl 36.476/SP, rel. ministra Nancy Andrighi, Corte Especial, julgado em 05/02/2020, DJe 06/03/2020.

[21] LOPUCKI, Lynn. Op. Cit. p. 1527-1528.

[22] LOFTUS, Elizabeth. PALMER, John C. Reconstruction of automobile destruction: An example of the interaction between language and memory. Journal of Verbal Learning and Verbal Behavior. v. 13, n.5, p. 585-589, 1974.

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